EURÍPEDES ENCONTRA WALDICK SORIANO
Amanhã eu vou embora
Vou por esse mundo afora
Procurar um grande amor
Todo mundo neste mundo
Tem direito a ser feliz…

Nasceu com nome e destino de teatrólogo grego. Foi aos 13 dias de maio de 1953 que Eurípedes Waldick Soriano veio há muitos séculos atrás pela espuma do mar e pelo sangue do Pelourinho ou outras paragens baianas e seguiu sua trajetória. Como todas as crianças que habitam os interiores e pequenas cidades do Brasil, foi explorado na lavoura agrícola. Alguns psicólogos podem até aventar que o “abandono de lar” por sua mãe o levariam a compor suas canções posteriormente. Na adolescência, como gostava de dançar e cantar, beber e namorar chamaram-lhe posteriormente de “boêmio”. Mas se é nisso que consiste a boêmia. É uma posição existencial: consiste em não ser um “homem de bem” como prevê a moral burguesa. Durante o dia se virava na lavoura e passou um tempo no garimpo. Como muitos que tinham e têm certeza da singularidade que carregam — e isto é real — ou apenas como mais um retirante tentando fugir das adversidades climáticas/econômicas/políticas, foi para São Paulo em 1958, onde subvivia como engraxate, motorista de caminhão, faxineiro, servente de pedreiro e o que aparecesse como bico para o boião. Como era notado pela diferença na interpretação de canções entre os cantores populares e já eram popularmente conhecidas algumas de suas composições, os radialistas alienavam-lhe. Foi assim que na época de sua aparição ele era visto sempre numa comparação, para eles, com Bienvenido Granda, Nelson Gonçalves, Anísio Silva ou Vicente Celestino. Pegou do faroeste Durango Kid o chapéu preto e, em vez do lenço do personagem, acrescentou o grande óculos preto. Foi assim que ele gravou Quem és tu? (abaixo), de sua autoria, na Chantecler (“a gravadora do galinho da madrugada”), e não teve mais interrupção nas mais de 500 canções gravadas e muitas estórias nas entrelinhas.
Quem és tu?
Para querer manchar meu nome
Quem és tu?
Se fui eu quem matou tua fome
Quem és tu? Não és ninguém, não és nada
Quando eu te conheci
Vivias pelas ruas sempre desprezada
Tive pena, de te ver no abandono
Sem amor, sem guarida
Um coração sem dono
Foste dona do meu lar
Limpei o teu nome
Quem és tu?
Para manchar meu nome.
Depois que cantou no Chacrinha, foi sucesso imediato. Dizem que era um mulherengo: teve 18 casamentos. Mas era também ligado a lugares. De nossa parte manoniquim, entre as muitas estórias que serão colhidas nas suas biografias poderá ser uma que ocorreu em Manaus. Dizem que Waldick envolveu-se por uma namorada do Tigre da Amazônia, um dos primeiros, grandes e famosos lutadores de luta livre na princesinha do norte. Rola a estória de que Waldick teve de se enfrentar com punhos o temido lutador e ainda levou a bela namorada da fera embora de Manaus. Também uma tia de um afinado, a tia Maria, agora na casa dos 70, afirma saudosa e rindo que na juventude foi namorada do cantor. É certo que Waldick tenha gostado destas paragens, já que em 1963 lançava o LP Manaus, meu paraíso. Ele vinha três ou quatro vezes ao ano em Manaus. Era grande freqüentador da boite, popularmente chamada de puteiro, Shangri-La. O maior ídolo do pessoal do bairro dos Educandos, onde sempre ia quando ia vinha à cidade, especialmente freqüentava a peixaria São Francisco. Na música, como em todo o Brasil, aqui havia brigas homéricas entre Abílio Farias e Nunes Filho, ambos querendo-se o Waldick Soriano do Amazonas. Este último afirma até hoje que sua inspiração maior é realmente o cantor do chapéu e imensos óculos pretos.
Adeus, Manaus!
Está chegando a hora da partida
Adeus Manaus
Meu adeus será por toda minha vida.
Waldick até se refere aos episódios com as mulheres, mas de forma ambígua: “E eu tive tantas mulheres na minha vida. Porque todo homem tem suas ilusões”. Em São Paulo, foi um escândalo quando se descobriu que ele estava tendo um affair com a socialite Beck Kablin. Há quem diga que uma de suas paixões mais avassaladoras foi uma prostituta paraense e que morreu dois meses depois que se conheceram. Uma relação amorosa e artisticamente duradoura foi com a cantora Claudia Barroso, que até participou, cantando ao lado de Waldick, do seu último CD, gravado no ano passado. No entanto, para quem conviveu de perto com o cantor, ele não tinha esse sentimentalismo que muitos tentarão impingir-lhe. Ao contrário, era constantemente irônico e até considerado mau-humorado para quem gostaria que ele vivesse suas composições como tristeza e empatia de um mero realista e não como descrição de relações amorosas em situações naturalistas. Hoje talvez muitos intelectuais estarão no enterro de Waldick, mas os ditos intelectuais tiveram que flexibilizar suas rasas opiniões para poder compreender que ele carregava uma outra forma de cantar, que não era a do folclore nordestino e nem a dos cult dos anos de chumbo da ditadura militar. Apesar disso, a maioria desses cantores, que não são citados nos livros oficiais, tiveram músicas censuradas. Como diz Odair José: “Só não era censurado quem não dizia nada”. A música Tortura de Amor (abaixo), de Waldick Soriano, por exemplo, foi censurada, apesar de ter sido composta e gravada em 1961, pois os militares não aceitavam que a palavra “tortura” fosse empregada em uma música.
Hoje que a noite está calma
E que minh’alma esperava por ti
Apareceste afinal
Torturando este ser que te adora
Volta fica comigo
Só mais uma noite
Quero viver junto a ti
Volta, meu amor
Fica comigo, não me desprezes
A noite é nossa
E o meu amor pertence a ti
Hoje eu quero paz
Quero ternura em nossas vidas
Quero viver por toda vida
Pensando em ti
Já em 1972, Egídio Eccio filmou Paixão de um homem, sobre a vida do cantor, e, em seguida veio O poderoso garanhão, dirigido por Antônio B. Thomé, de 1973. Waldick continuou cantando, principalmente no norte/nordeste, recebendo denominações como “música de puteiro” e “música de empregada doméstica”, mas recentemente suas músicas passaram a ser interpretadas por cantores que vão desde intelectuais da chamada MPB até remix de hip-hop. Na verdade, juntamente a outros como Odair José, Carlos Alexandre, Bartô Galeno, Genival Santos, Maurício Reis e tantos outros, Waldick Soriano é inclassificável dentro de um padrão musical melódico palatável pelo bom ouvido classe-média, não podendo ser catalogado, inclusive, no globolálico jargão “brega”.
Para quem quiser baixar músicas de Waldick pela internet, há uma amostra de músicas numa seleção que passa por toda a sua trajetória discográfica, pode baixar o último CD gravado, gravado ao vivo, ano passado, quando do documentário sobre sua vida, realizado e dirigido por Patrícia Pilar. O material internético não parece abrangente; existem algumas seleções, mas os discos originais não foram convertidos para arquivos para baixar, parece-nos. Por enquanto, para tomar aquela Da Melhor, só ouvindo no vinil…
Deixei minha cidade tão humilde e pequenina
Pra buscar felicidade e cumprir a minha sina
Eu sonhava ser cantor e ninguém acreditava em mim
Mas eu tinha o meu valor
Lutei muito e agradecido canto assim…
Conheci o Valdick na redação da Folha de S. Paulo e curtimos muitas feijoadas, altas madrugada, no Papai da São João. Ahhhh…que saudade! Era um cara fabuloso, mas também temperamental e irônico. Numa dessas feijoadas bancadas pela Beck Klabin, milionária que o Chacrinha jogou em seus braços pra pagar as contas das madrugadas depois dos programas gerados em S. Paulo, eu brinquei com ele. – Você ainda não comeu a velha. Uma hora desta ela vai estrilar e não paga mais porra nenhuma, ao que ele serenamente respondeu: Pois então tá difícil. Essa velha tem que ser comida por negão. O negão é como o urubu, é chegado numa carniça. há há há, riu estrondosamente. Saudades do Valdick e também no Papai da São João, literalmente fechado há mais de 15 anos. Aquele pedaço de São Paulo, nunca mais. Abraços
Legal, o Waldick era um cara sensacional, muito diferente desses caras exibidos, era um sujeito autêntico e amigo; pena que o viam como cantor brega de terceira categoria, quando na realidade não era nada disso.