CONVERSAS DO ILÉ AŞÉ DO PAI GILMAR

Enquanto se dava a preparação do barracão para um bori, a raspagem da cabeça, a iniciação de um yaô, Pai Gilmar nos recebeu e nos falou de diversos assuntos que vão desde acontecimentos das duas magníficas festas que colocamos aqui no bloguinho, e indo até questões políticas como a que envolveu o Parque dos Orixás, e outras inúmeras questões que dizem respeito ao Candomblé.

Pra começar, pedimos ao Pai Gilmar para nos contar um itã de Oxumaré e de Obaluaê:

Oxumaré é o deus do arco-íris. Algumas pessoas falam que Oxumaré seria empregado de Xangô. Oxumaré não é empregado de Xangô. Oxumaré é um serviçal entre o céu (Orun) e a terra (Ayê), que leva a água para o palácio de Xangô. Ele faz um favor. Tem pessoas também que acham que Oxumaré é gay, também não tem nada a ver. O símbolo de Oxumaré é o arco-íris, é a cor do arco-íris, que é a cor que se usa na bandeira GLBT. Isso ocorre, além disso, por pessoas acharem que Oxumaré é seis meses macho e seis meses fêmea. Não, Oxumaré é os doze meses do ano masculino, ele não é masculino e feminino. Só que Oxumaré é uma cobra (Dan, em yorubá), e cobra não tem sexo. Aí tem que ver, quando ele vem, como é que ele vem: se ele vem masculino ou se ele vem feminino.

Obaluaê é o deus da cura, é o médico do Candomblé. É ele que cura. Obá significa rei. Aê é a terra. Obaluaê: Rei da Terra. Tem um itã (“história”, em yorubá) que diz que Obaluaê é filho de Nanã. A mãe dele é Nanã, não Iemanjá, como muitos falam. Iemanjá é mãe dele por criação, e ele respeita mais Iemanjá do que Nanã, que o pariu. Nanã teve vários filhos, e um deles é Obaluaê, e quando ele nasceu foi num período de varíola. Ao nascer, ele já nasceu com a varíola, todo coberto de ferida, e Nanã o rejeitou na beira da praia. Iemanjá viu aquela criança chorando e pegou-a pra criar. Mas como as crianças da época viam, riam dele e tinham medo, e ela não tinha como cobrir ele, porque ela é a dona das águas, os únicos tecidos que ela usava eram molhados, com muita renda, ela usa nada de roupa pesada, é muito vaidosa, então não tinha como cobri-lo, primeiro porque se o cobrisse com um tecido muito grosso, iria machucá-lo. Então ela começou a tratar com ervas do fundo do mar, e as ervas secavam, e ela amarrava e cobria ele com as algas. E na beira da praia tem muito pé de coqueiro, palmeiras. Então ela pegava e fazia roupa pra ele de palha, porque eram frescas; escondiam ele, mas sempre ele ficava fresquinho por debaixo. As pessoas ficam com medo porque ele está com a cara coberta, ninguém sabe o que tem debaixo, as pessoas tem muito medo desse orixá, mas de todos os orixás ele é o mais bonito que existe, é o mais belo.

Obaluaê, Obalorixá

Obaluaê, Atoto

Obalorixá é rei

O imponente babalorixá terminou o belo itã de Obaluaê emocionado. Passamos então a desenvolver várias questões onde Pai Gilmar toma posição sobre temas como a história do Candomblé em Manaus, o homossexualismo e o Candomblé, acontecimentos importantes para seu barracão, e analisa de forma lúcida e contundente a “inconstitucionalidade” na CMM a respeito do projeto de criação do Parque dos Orixás.

Sendo candomblecista, como o senhor vê as tradições culturais, religiosas em Manaus?

Em outros lugares, além de ter muitos templos, culturalmente é mais aberto, se eu sou feito, você é meu irmão, você já me acompanha; seu filho, que é meu sobrinho, também já acompanha, mesmo que não seja iniciado no santo, não seja um filho de santo, mas gosta de ver, gosta de freqüentar ou escutou já dentro de casa. É diferente daqui de Manaus. Em Manaus, o Candomblé já existe há muitos anos, só que ele se expandiu ou veio a público a cerca de 35, 40 anos. Mas o povo saber, se manifestar, abrir terreiros de Candomblé, somente há uns 25 anos se muito. Eu tenho 21 anos de santo, fiz agora, dia 27 de agosto, mas havia, creio eu, umas 4 ou 5 casas, que é o que eu conhecia. Agora, não, devem ter umas cento e poucas. Em 20 anos surgiram muitas casas, muitas. E nesse ano que vem devem abrir pelo menos mais umas 10 casas. Tem muita gente da Umbanda passando para o Candomblé, está havendo uma necessidade deles incorporarem o que eles sabem para dentro da religião africana, o Candomblé, raspar o santo; muitas dessas pessoas são muito conhecidas na cidade, que está tendo algum problema com o santo, com o orixá e tem que mudar para o Candomblé, seja ele Angola, Ketu, para continuar sua vida espiritual.

Recentemente o senhor foi ao Maranhão, receber um cargo, como foi isso?

Eu fui receber um posto sacerdotal. É como se fosse uma congratulação, uma comenda. Eu fui agraciado numa casa que é muito antiga, que inclusive no próximo janeiro a casa vai fazer 50 anos, jubileu de ouro. Eu fui agraciado por um vodum que se chama vereketi, porque há 18 anos eu recebo uma encantada chamada Dona Erondina, que é turca, filha do rei da Turquia, que é irmã de Dona Mariana, e ela faz todos os anos em minha cabeça uma festa à Vereketi e procissão, com carreata, para São Benedito. Como eu tenho um grande amigo, que ainda está lá, que é filho de lá dessa casa, que é o Miguel de Vondoreji, e o pessoal se empolgou, gostou do que ele falava sobre mim e me convidaram para que eu fosse ser agraciado na casa com essa comenda.

Como o senhor tocou, quando falou sobre Oxumaré, na questão da homossexualidade, parece que no Candomblé não há preconceito…

Creio eu, salvo engano, que o Candomblé é a única religião, universal, que não discrimina nada, principalmente a sua opção sexual. Você pode ser gay masculino, você pode ser gay feminino, você pode ser hétero, você pode ser puta, pode ser ladrão, pode ser o que for. Sua opção sexual só a você pertence. Isso aí ninguém muda. Não existe religião, não existe guru, não existe padre, não existe pastor que mude a opção sexual de ninguém. Agora se você quer mudar, ou acha que deve mudar, quem tem de mudar é o seu eu interior. Eu sou gay, e estou muito bem, muito feliz. Não é porque eu fiz santo que eu mudei. Quando eu fiz santo, eu já era gay. Não foi Iemanjá que me transformou em ‘veado’ de jeito nenhum. Veado pra mim é um bichinho que anda no mato.

Já na festa de Obaluaê houve umas obrigações, qual o significado delas?

Tivemos três obrigações de 7, que foram a da dona Graça de Obaluaê e a de dona Ana de Obaluaê, e mais a obrigação de Roberto, também de Obaluaê, só que a obrigação dele foi com Odum Ejé, com cargo. Ele se formou sacerdote.

Ele já pode abrir um terreiro?

Ele já foi formado, ele foi formado para isso. Do dia que ele fez o santo até o dia de ele tomar obrigação, ele é chamado de yaô (filho, em yorubá). Ele era meu yaô, e continua sendo; mas ele atingiu a maturidade, e está livre pra abrir o terreiro dele e começar a fazer a flora dele: ogans, ekedis…, os yaôs dele, que serão meus netos. E para isso ele tinha de receber aquilo, que se chama igbá axé, ou cuia de axé, ou popularmente chamado por um nome errôneo, mas que todo mundo usa, que se chama decar. Lá dentro do igbá axé é que vem tudo que é necessário: vem o jogo de búzio, vem facas onde ele vai cortar os bichos em oferenda e holocausto a seus orixás, onde vem a tesoura com a qual ele vai cortar o cabelo, lá vem a navalha com a qual ele vai raspar, vem as favas necessárias, vem as folhas, todos os apetrechos que se usa dentro de um quarto de santo e fora também no salão, aquela sineta, que se chama adjá, com a qual você invoca os orixás, além dos mantra que são cantados.

Já que outro dia, na Festa de Oxumaré, o senhor falou que é de briga, de luta, no sentido político, sobre o Parque dos Orixás…

É o seguinte, com o apoio da vereadora Lúcia Antony, do vereador Zé Ricardo, nós fizemos um projeto, onde queríamos uma área do município ou do estado, no qual construiríamos um Parque dos Orixás. Pra quê? Para que não fosse mais necessário as pessoas estarem nas esquinas das ruas, nas encruzilhadas, arriando trabalho, jogando cachaça, acendendo vela, que alguns segmentos religiosos africanos precisam desse espaço. Nós do Candomblé não fazemos isso, nós temos casa de Exu, temos quarto de orixá, temos quarto pra Egum, que é culto aos mortos, dependendo da nação, mas tem algumas coisas que é realmente preciso fazer fora, geralmente o pessoal da Umbanda, da Quimbanda usa. Ela fez esse projeto junto com a gente e a bancada evangélica, liderada pela Cláudia Janjão, juntamente com outros, pastores, que não recordo bem os nomes, brecaram. Não deixaram nem ser lido em plenária. E a gente sabe que isso é inconstitucional, porque eles podiam brecar quando fosse à votação. Mas o projeto não foi nem lido. A gente está reformulando o projeto, e vamos entrar novamente, agora com apoio de mais gente. É um projeto muito bom, até mesmo para parar com esse negócio de deixar material pelo meio da rua, garrafa quebrada, como lá no Tarumã. Nossa reivindicação é para que não se polua a esquina A e a esquina B.

A partir daí, que medidas vocês tomaram?

Foi denunciado ao Ministério Público, à própria Prefeitura, ao Governo do Estado, que a gente quer uma resposta. Até agora nós não recebemos nenhuma sobre essa inconstitucionalidade que há aí. Nós não elaboramos o projeto sozinhos, nós fizemos um pedido, a própria Câmara aceitou o pedido, ela própria, inclusive junto com órgãos da própria Prefeitura foi quem elaborou o projeto, teve apoio de vereadores, de secretarias, da URBAM, do IMPLAM…

E foi tudo devido à bancada evangélica?

É, mais eles são hipócritas. Mas eles não lembram que há 40 anos atrás mais ou menos eles também eram criticados, fechavam-se templos deles, porque não era uma religião conhecida no Brasil. Eles são hipócritas, porque não lembram das histórias deles. Nós lembramos da nossa, desde há 500 anos atrás quando o Brasil foi descoberto, e até hoje nós cultuamos nossa cultura. Religião nenhuma pentecostal ou católica não tem sabonete de arruda, não tem caminho de sal pra descarregar, não tem rosa benta, não tem nada. Eles estão pegando isso de outras religiões, de outras denominações religiosas, mentindo ao povo, enganando o povo e dizendo que a religião africana, a Umbanda, o Candomblé são religiões satânicas. É muito fácil você ir aí pelas encruzilhadas, matar uma galinha, um bode, uma criança, e dizer que a culpa é de pai-de-santo, do macumbeiro, como é vulgarmente usado. Mas na nossa religião não existe isso. O Parque dos Orixás seria um local maravilhoso, primeiro porque seria um local limpo, um local de oferendar os nossos orixás, um local de preservação da natureza, todos iriam lucrar, porque daqui há 10, 15, 20 anos nós teríamos um local ainda com folha virgem. Não iríamos fazer como o próprio governo fez com o Nova Cidade, que acabou com tudo. Nós iríamos tirar o mínimo possível. É uma preocupação ecológica porque pra nós sem folha não tem vida. Sem folha não tem nada. Sem água nós não trabalhamos. Sem terra nós não trabalhamos. Seria um local pra culto, pra preservação da natureza, para que não se suje mais a rua.

E hoje haverá a saída do yaô Carlos de Guian, ao qual acompanhamos na quarta-feira passada, mas que não era permitido documentar, a raspagem de sua cabeça. A partir das 18h, então será o ritual de sua aparição pública, na rua Bom Jesus, n°09 — Jorge Teixeira.