O TEATRO DO OUTREM DISCRIMINADO
Em sua Ontologia Existencialista, o filósofo Sartre apresenta a fenomenologia do outrem como uma estrutura posicional do mundo fundada pelo olhar. O olhar do outrem sobre mim me posiciona no mundo como objeto revelado, ao mesmo tempo que ele, como sujeito do olhar, torna-se consciência manifesta. O mesmo ocorre comigo quando me torno sujeito do olhar sobre outrem, objeto a ser revelado no mundo. Para Sartre, não há como escapar: somos consciências/mundos. Sempre dados reflexivos aos outros. O que nos torna existencialmente sujeitos/históricos. Já para o filósofo Deleuze, o outrem não surge como objeto constituído por meu olhar, objeto no campo de minha percepção, ou sujeito a me perceber, mas aquele que exprime a estrutura do possível. Estrutura que apreendo como realidade revelada distinta de minha consciência, e que, como possível que lhe corresponde, explico, desenvolvo e realizo. Tornando-me um passado diante deste revelado. Se estou triste e outrem me surge alegre, minha tristeza é deslocada diante do possível, apresentado pela estrutura outrem alegre: a imposição do real. Ele me assegura a preexistência do mundo em seu campo de virtualidades e me dispõe a ativar minhas potencialidades como transições no mundo, pois sem ele desmoronam todos os possíveis e sou tragado pela força do mundo sem sua presença. De qualquer sorte, mesmo com as diferenças de proposições filosóficas dos dois franceses, entende-se que outrem é a potência fundadora da constituição do mundo como transições ontológicas produtivas.
O TEATRO DISCRIMINADOR
Compreendendo o outrem como fundação ontológica do mundo, os negros teceram seus movimentos como forma de constituir sua realidade nas alternâncias com as múltiplas representações políticas e sociais. Entendendo-se como sujeitos históricos ativos, não só lutaram por seus direitos étnicos, mas também por suas participações nas temáticas gerais do mundo. O outrem, que não só transporta seus desejos singulares, mas também efetiva ações coletivas. Assim, deixaram o papel de coadjuvante-substituível e passaram a ser autores, intérpretes, diretores e, quando por suas próprias vontades, público. Ou seja, engajados no hipertexto do mundo da estética como sensibilidade geral e da estética como arte real. Foi neste percurso étnico/ontológico que Abdias do Nascimento, depois de assistir em 1941, no Teatro Municipal de Lima, a peça O Imperador Jones, de Eugene O’ Neil, interpretada por um ator branco brochado de preto, resolveu criar o Teatro Experimental do Negro, que tinha como pensamento não só defender os diretos cênicos dos artistas negros em um país com imensa população negra, mas também posicionar altercações filosóficas, políticas e sociais sobre a condição do negro no Brasil. Não se tratava somente de não permitir brancos tingidos de preto — como o ator Sérgio Cardoso interpretando Othelo — interpretarem personagens negros, e sim analisar o quanto havia de perversão no ato de ocultar outrem. Cujo efeito não ficava só na ação da tinta, mas tornava visível a opressão e a discriminação da existência real dos negros. Entretanto, esta perversão étnica ainda não foi debelada do teatro arte real. O grupo Teatro História do Teatro Amazonas, que apresenta aos turistas a história do fálico recinto cênico sob o impulso do Ciclo da Borracha, dominado pela ilusão do realismo ingênuo, tinge de preto o ator que faz o alegórico governador do Amazonas na época, Eduardo Ribeiro, que era negro, mostrando em público que o teatro oficial e o teatro digestivo no Amazonas estão longe da epistemologia de Brecht. Nesta dança, continua fortalecendo a alienação e a opressão do outrem, ao mesmo tempo que impede o florescimento do teatro como arte essencialmente política.