Sentado desolado no banco da praça, ficou a considerar seus momentos inquietos. Como em um solilóquio, considerou como tudo era engraçado. Em todos os natais que passou sem grana, a festa familiar fora maravilhosa. Nada de onda, de vexame, tudo muito cristão. Este ano foi o contrário. Estava abonado. Bastou no dia vinte e três ganhar só três otários para encher os bolsos, e ainda se dar ao luxo de não assaltar mais ninguém e lhe conceder uma folga. Gente era que não faltava se oferecendo para ser assaltada. Todo mundo estava endinheirado, por cima do jaraqui frito. Coisa nunca vista em nenhum fim de ano. Ia ser o melhor natal. Dentro do táxi, o motorista, feliz com a féria da quadra natalina, comentou a quantidade de pessoas comprando como grande feito do governo Lula. Ao que concordou com um “podes crer”. Chegou em casa carregado de compras e convidou os familiares e amigos para a comemoração ao nascimento do filho de Maria. A noite do vinte quatro era só alegria e solidariedade. Porém, quando bateu meia-noite, o momento da comunhão natalina maior, a bebida subiu-lhe a cabeça, olhou com ódio ao pai, e não deu outra: partiu para cima do patriarca e sapecou-lhe um direto no meio da cara. Senhor de um porte físico invejado, nem sentiu a ousadia filial. Levantou-o pela gola da camisa, deu-lhe quatro tabefes e arrastou-o até a delegacia, que ficava perto da casa. Envolvido nos mistérios familiares-cristãos, viu passando uma jovem e lembrou sua primeira namorada. E junto com a lembrança ecoou  a frase que ela  dissera no momento em que lhe abandonou: “O teu problema é que tu não entendes o sistema capitalista”.

!! De jeito nenhum aceitava se transformar em alguém que espera a morte morto em vida. Era assim que se encontrava depois do atropelamento provocado por um carro dirigido por um pastor e que lhe deixara paraplégico. Não! Jamais aceitaria uma vida improdutiva, confinada em uma cama sem poder se locomover para outros lugares por não possuir uma cadeira de rodas. Só porque não tinha dinheiro para comprá-la? Mesmo assim não aceitava a injusta realidade. Tentara reverter o quadro. Recorreu a vereador, deputado, senador, prefeito e governador, e nada. Só promessa. As eleições estavam chegando, quem sabe não conseguiria. Mas esperar até outubro? E o tempo que perderia sem produzir nada até lá? Certa noite, assistindo a um programa de uma igreja evangélica, teve uma idéia boa. Chamou um primo, que era motorista, e pediu que ele lhe levasse no outro dia à tal igreja, pois era dia de milagre. O primo ainda tentou demovê-lo da idéia boa, afirmando que tudo não passava de picaretagem, que os tais religiosos só enganavam os otários para ficarem ricos, mas nada disso mudou sua decisão. No outro dia, o primo zarpou com ele para a igreja. Chegando dentro da igreja pediu ao primo para deixá-lo perto das pessoas aleijadas que iam receber os milagres. O pastor mandou bronca. Amaciou as ovelhinhas e anunciou que ia começar a sessão dos milagres. Ele atento, viu um aleijado em uma luzente e novíssima cadeira de rodas motorizada. O pastor começou as orações, foi aumentando o tom da voz, uma música enrockcida emaranhou-se com a voz milagrosa, e ele berrou que os irmãos largassem as muletas, deixassem as cadeiras de rodas e corressem para junto dele, como prova da cura. Nisto que os ex-aleijados correram, ele chamou o primo e pediu para, ligeiro, colocá-lo na luzente e novíssima cadeira de rodas motorizada. O primo taludinho, pois era nas horas vagas carregador de sacos no porto, não contou conversa: colocou-o fácil, fácil na cadeira. Sentadinho, sorrindo feliz, ele ligou o motor da cadeira e se mandou pelas ruas vislumbrando uma nova vida. Quando foi chegando em casa, uma vizinha ao vê-lo, falou contagiada de fervor que até que enfim Deus ouvira suas preces.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.