MANAUS: UM PASSEIO PELA NÃO-CIDADE
Na coluna ‘Manaus: um passeio pela não-cidade’ da semana passada, o estudante Carlos falou sobre suas movimentações pelo social, enfrentando a linha dura da subjetividade da educação de mercado da UEA. Hoje, na segunda e última parte desta entrevista, Carlos Alberto Rocha fala sobre Manaus: transporte, política, atuação no movimento dos deficientes, e conta um pouco de sua história, que entrecruza tantas outras linhas existenciais, e com elas toca e faz reverberar os afetos que aumentam as potências de agir das pessoas.
Não-Cidade: Falando agora sobre a cidade, como foi tua chegada a Manaus?
Carlos: Desde que cheguei aqui, tomei conhecimento das entidades que trabalham com a deficiência visual, e fui à procura. Encontrei vários amigos que me ajudaram no momento em que estava me adaptando à cidade, conheci a Escola [Estadual] Joanna Rodrigues Vieira, que é uma escola bem acolhedora em relação aos deficientes visuais, e a outra foi a Biblioteca Braille, que faz parte da Biblioteca Pública do Amazonas, e que me deu o maior apoio na área educacional, o que me possibilitou passar em dois concursos, um da prefeitura e outro do Estado, além de passar no vestibular. Lá eles dão todo o aparato pra gente: livros falados, em Braille, apoio pedagógico, ledores, e isso fez com que eu me aprofundasse mais no conhecimento. Eu batalho muito para conseguir o meu objetivo.
NC: E como tu sente a cidade?
Carlos: Embora eu tenha uma grande dificuldade em enxergar, dá pra ver que as coisas não funcionam do jeito que a gente quer. O trânsito, na cidade, é muito perigoso, é preciso muita atenção. Como eu sou uma pessoa independente, que anda sozinha, então não sou diferente de qualquer outra pessoa. Fico chateado quando tenho que dividir a calçada com os carros. A gente não tem mais esse espaço para andar aqui em Manaus. As calçadas, quando existem, não são adaptadas para o deficiente. As ruas parecem que não foram finalizadas, e a gente não pode atravessar sozinho. E o trânsito daqui não respeita o cidadão. Nenhum cidadão é respeitado.
NC: Falando em trânsito, e o transporte coletivo?
Carlos: (Ri.) Transporte, esse é outro problema que eu venho batendo na tecla: a questão de catraca na frente, e o deficiente ter que entrar por trás. Ele pega o ônibus lotado, e quando precisa sair, não tem a ajuda nem do motorista nem do cobrador. Fica difícil informar ao motorista qual o ponto em que ele quer ficar, para que o motorista pare. Várias vezes eu passei da parada porque entrei pela porta de trás, e muitas vezes eles não querem levar a gente na frente. Isso é um problema muito sério pra gente. E as pessoas, os passageiros, quase todos não tem respeito, quando a gente pergunta fazem que não sabem, ignoram, então as melhores pessoas pra dar essa informação seriam o motorista e o cobrador, e a gente acaba ficando longe deles.
NC: E as entidades representativas dos deficientes?
Carlos: eu sou sócio efetivo da ADVAM, mas estou um pouco afastado por causa da falta de tempo e da distância que ela tem do meu itinerário cotidiano. Mas eles são muito atenciosos para com o deficiente. Eu não quis jogar esse meu caso para eles, não quis que a ADVAM ficasse à frente, quis lutar sozinho, mas se precisar, eu vou acionar eles, que estão sempre prontos a ajudar. A outra, como eu já disse, é a Biblioteca Pública do Amazonas, que tem a Biblioteca Braille, que nos dá muito apoio nesta parte pedagógica. Tem a Escola Estadual Joanna Rodrigues Vieira, que atende o deficiente, mas ela só atende de 1ª a 4ª série, na adaptação do deficiente que perde a visão depois de adulto ou preparando a criança desde que ela nasce até que ela tenha o conhecimento do Braille. Ela trabalha com o que a gente chama de reabilitação. Ela me ajudou muito, porque o Braille eu já conhecia, porque fiz magistério e lá aprendi em Educação Especial, mas lá eu aprendi a ter mobilidade pra andar sozinho, pegar ônibus, andar sem precisar do apoio de ninguém. Lá eu tive esse apoio. As outras entidades eu não conheço, não tenho nenhuma relação. Tá surgindo aí uma entidade, parece que o nome é ADEVIMA, que é dos deficientes só de Manaus, já que a ADVAM é do Amazonas. Mas isso é uma questão de política deles, de um grupo, da disputa pelo poder. Eu não sei como está a relação entre a ADEVIMA e a ADVAM. Mas espero que eles entendam que uma vai depender da outra, não tem como fugir.
NC: E falando em política, como tu percebes a atuação dos políticos no Amazonas em relação às questões dos deficientes?
Carlos: Eu acho que essa atuação está muito a desejar. Porque falar bonito, todo mundo fala. Mas a dificuldade está em colocar na prática. E a gente não vê a preocupação deles em discutir qualquer tipo de benefício. Abriu-se vagas no mercado de trabalho, mas isso ainda está em processo de adaptação, nas escolas ainda não chegou a inclusão, falta uma política mais abrangente, não apenas colocar o aluno ali, mas fornecer para ele o aparato, e dar as condições.
NC: Fala um pouco da tua história, como foi a perda da percepção visual?
Carlos: Como eu já falei, sou do Pará, da cidade de Óbidos, que é uma cidade mais próxima de Manaus do que de Belém. E lá eu era professor. De 1998 para 1999, começou o processo de diminuição da visão, pelo processo de glaucoma, que é genético e hereditário. Tenho irmãos, tios e tias que são cegos. E como eu sabia que eu chegaria nessa condição, eu comecei o meu preparo psicológico. Quando trabalhava no distrito de Curuá, fui percebendo que a visão estava quase sumindo. Numa tarde, eu estava em casa, tinha chegado do trabalho, fui olhar na janela, e vi tipo como se fosse um relâmpago. Aí perdi a visão por completo. Então eu liguei pra minha irmã, que conversou com a prefeitura de lá, e assim eu vim para Manaus, no final de 1998, onde existe mais recursos para tratamento da doença. Eu estava cursando o segundo período de Matemática, e tive que abandonar tudo, emprego, a cidade, e inclusive meus filhos. Vinha para cá à procura das clínicas de olhos, com a ajuda do meu tio, que morava aqui e era sócio da ADVAM. No final de 2001, eu vim fazer um tratamento, e fiquei de vez. No meu primeiro vestibular aqui, que foi realizado na biblioteca Braille, eu conheci o Gilson, que é o gerente da biblioteca, até hoje. Ele me deu grande incentivo e apoio, me ajudou a recuperar minha auto-estima. Eu vi que o mundo não parou pra mim. Eu comecei a freqüentar a biblioteca e a escola Joanna Rodrigues, e com todo esse apoio foi que eu consegui passar no vestibular. Foi também quando eu dei continuidade à minha vida de atleta, eu sou corredor. Sou praticamente do Gobol, pelo qual eu viajei, na seleção amazonense, e conheci outros deficientes, com os quais eu me comunico por e-mail, por telefone, e isso abriu um leque que ampliou a minha vida. Em 2004 eu passei no concurso da SEDUC para professor e no da SEMED para administrativo. Optei pela SEMED, porque meu certificado de magistério ainda estava no Pará. Hoje sou administrador da biblioteca de uma escola municipal, na Lagoa Verde.
E-mail do Carlos, para quem quiser contactá-lo: kalbert_rocha@hotmail.com
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