MANAUS: UM PASSEIO PELA NÃO-CIDADE
Aproveitando o mote do feriado, esta coluna convida os leitores intempestivos a conhecerem a companheira Dulcilene Gomes Batista, ou Dulce para os amigos. Filósofa, militante dos movimentos sociais, amiga de Nestor Nascimento, Dulce falou sobre suas trajetórias e sobre o movimento negro no Amazonas. A entrevista foi originalmente publicada no vetor literário Phylum, da Associação Filosofia Itinerante (que você pode adquirir de grátis através do emeio da AFIN), no final do ano passado:
A FILÓSOFA DULCE: UM DEVIR-MULHER NEGRA
PHYLUM – Começando pelo meio?
Dulce: Começando pelo meio. Nasci no Gama, em Brasília, depois fui para o Rio de Janeiro, onde fiz minha formação. Minha família, formada por meus pais e mais seis irmãos, todos saudáveis, também mora no Rio, na Ilha do Governador, onde em verdade me criei. Em 89 entrei para a Congregação das Filhas da Caridade, fiz noviciado, votos para São Vicente de Paula, fiquei irmã durante oito anos, trabalhei no Espírito Santo, no Rio, e por último em Taubaté, São Paulo, que tinha um projeto com a igreja de Borba chamado Igrejas Irmãs. O Bispo de Borba tinha feito um apelo para que fosse enviado missionários para lá para assessorar pastorais. Como já estava pensando em deixar a Congregação, porque eu achava que não era possível continuar por uma questão de ideologia pessoal e de projeto de vida – aquilo que eu queria para mim mesma – então resolvi sair da comunidade e aceitei um convite de um padre amigo, que já trabalhava aqui a mais de um ano, para vir trabalhar no Amazonas. Então fizemos um contato com Dom José Afonso Ribeiro, que é Bispo de Borba, e vim como leiga missionária para a prelazia de Borba.
Em Taubaté tive uma experiência riquíssima, que foi primeiro trabalho com o acampamento do MST (Movimento dos Sem Terra), na região de Tremembé, que é conhecida até hoje como um projeto de grande força existencial pela forma como trabalham com a educação das crianças, a organização da comunidade, coleta coletiva de lixo. Depois, uma outra experiência interessante foi o estudo da Teologia no Instituto Sagrado Coração de Jesus, que hoje é Faculdade, onde os leigos da igreja de Taubaté estavam na linha de frente das políticas públicas: uma igreja emergente inserida nas lutas sociais. Foi um momento muito importante para ampliação dos meus entendimentos. Outro movimento que participei em Taubaté, foi o CEBI (Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos), que reunia várias religiões que faziam a leitura ecumênica e transformadora da bíblia. Seria as origens dos povos bíblicos, a situação social, econômica, política e a estrutura da Palestina em que nasceu Jesus. Uma leitura bem histórica, colocando a Bíblia no lugar dela. Era um grupo bastante animado e onde se teve a primeira reflexão sobre a Negritude. O CEBI NEGRO, que era um instituto que tinha uma organização muito importante.
P – E a vinda para o Amazonas?
D: Vindo para o Amazonas, em 95, eu não tinha a mínima idéia como se vivia aqui, para onde eu ia, a distância, o que eu ia fazer, não tinha perspectiva de salário, pois vim como voluntária por dois anos para viver com uma comunidade.
P – Lá em Borba?
D: Novo Aripuanã. Eu fui para Borba, mas como o Bispo tinha uma conhecida em Novo Aripuanã, uma cidade de uma realidade com bastante conflito, me mandou para paróquia de lá. Cheguei com a esperança idealista de encontrar uma igreja missionária e encontrei uma igreja tal qual a de São Paulo. Inclusive, pastoralmente, muito aquém do que oficialmente a igreja estava dizendo em termos de catequese, liturgia, de tudo. Um padre que estava mais de vinte e cinco anos na mesma paróquia…
P – Era o dono.
D: Era o dono e eu tive pouco espaço de atuação. Demorei muito a perceber, mas de cara ele teve uma grande antipatia por mim.
P – Percepção psicológica alesada.
D: Isto. Mas a população percebeu logo.
P – Prova de que a percepção coletiva não é alesada.
D: Isto mesmo. O que foi interessante foi meu contato com toda natureza daquele lugar. Nunca tinha visto tanto verde em minha vida. Tanta árvore, tanto rio, tantos animais, pássaros… Outro acontecimento interessante foi a experiência de dormir em rede, viajar de barco, tudo isso foi novo para mim. Bem, depois de dois anos trabalhando nas pastorais sociais eu decidi, por opção, me afastar das atividades da igreja e voltar para o Rio. Eu tinha uma proposta do Bispo Dom Vital, um religioso bastante engajado nas causas sociais na região sul do Rio, para trabalhar na arquidiocese de lá com um contrato e salário. Mas enquanto estava me preparando para voltar, me envolvi na campanha política do prefeito que era do PL. Como no interior não se tem ideologia política e prevalecem as pessoas, famílias, eu achei que naquele momento, politicamente, era esse candidato o melhor indicado, já que tinha uma história de vida interessante na cidade.
P – Como era o nome dele?
D: Raimundo Sobrinho, conhecido como Raiz. Então, ele me convidou para trabalhar na Secretaria de Ação Social. Aí passei a trabalhar, inclusive com os mesmos grupos, só que sem ideologia religiosa. Durante os quatro anos tive uma atividade intensa, trabalhando em quase todas as comunidades, que eram 62, navegando por quase todos os rios, menos no rio Acari, porque é de difícil acesso. Nestes quatro anos eu construí uma casa, fui colaboradora na formação da Associação dos Deficientes, que me deu muito prazer e conhecimento. Foi um projeto aprovado por uma ONG da Espanha tal a sua eficácia e originalidade, já que diziam não haver deficientes na cidade; entretanto, os deficientes eram tratados como loucos.
P – Quer dizer: existiam, mas o diagnóstico indicava outro.
D: Como eu havia trabalhado, também, na educação, eu vim participar em um congresso na UFAM sobre portadores de necessidades educativas especiais. Então, fiquei muito animada e tirei da gaveta um projeto que havia elaborado já há algum tempo. Começamos algumas reuniões com as lideranças da cidade, mas a primeira tentativa não foi adiante. Estavam envolvidos os vereadores, o juiz, etc. Então, comecei a trabalhar com os pais das crianças deficientes. Em uma reunião que compareceram oitenta famílias, nós tiramos uma comissão de quinze pessoas que começaram a trabalhar com seminários sobre deficientes. Trabalhamos um ano com levantamento, cadastro, visitas, elaboramos um Seminário com apoio do prefeito. Convidamos a ADEFA (Associação dos Deficientes Físicos do Amazonas) e depois do Seminário instituímos a nossa associação, ADENA (Associação dos Deficientes de Novo Aripuanã). Conseguimos um terreno para a sede própria, mas o prefeito posterior tomou-o. Outro trabalho importante foi o treinamento de algumas pessoas, inclusive uma deficiente, para lidar com estimulação precoce. Estimulação para síndrome de Down, já tínhamos cinco crianças para serem atendidas. Entretanto, segundo nossas observações, fomos levados a acreditar que, em razão de várias famílias realizarem casamentos consangüíneos, haviam outros casos, e que era preciso um estudo mais aprofundado sobre este tema. Trabalhamos também com pré-natal. Em seis anos fizemos duas turmas de pré-natal por ano. Depois, o contato com a ONG da Espanha, Pelas Crianças do Amazonas, onde fiz o curso de Organização Hospitalar com a Dra. Juana Romã. Essa ONG construiu um Centro Básico de Saúde e eu, como estava trabalhando na coordenação com os agentes de saúde, fui indicada. Então fui para a Espanha.
P – Que lugar da Espanha?
D: Palma de Mallorca. Voltando, tentei fazer um trabalho de saúde, mas a parceria não foi feliz com a Igreja. Bem, depois destes quatro anos me mudei para Manaus, porque estava decidida a entrar na Universidade.
P – E o Nestor, quando tu conheceste?
D: Em 96, antes de entrar para a prefeitura. Ele era assessor jurídico do padre e estava fazendo adoção de uma criança por um casal da Espanha. Quando vim para Manaus, vim junto com este casal, que se hospedou na casa dele, e eu, a seu pedido, também fiquei na casa e ele foi morar em outro lugar. Construímos uma grande amizade. Antes de tudo isso, uma amiga me falou muito sobre ele. Disse que ele havia tido uma forte atividade política em Manaus. E que tinha sido o fundador do primeiro movimento negro no Amazonas. O MOAM (Movimento Alma Negra do Amazonas). Aí, meu interesse por ele cresceu muito. Comecei a me interessar por sua produção literária sobre os negros, sobre a discriminação. Sua assessoria jurídica pioneira aos movimentos Gay. Entrei em contato com um belo artigo que ele escreveu sobre a Praça 14, que inclusive ele me deu e está bem guardado. Outra vez quando voltei para Manaus para passar dois meses de férias fiquei morando na casa dele. Então, começamos a namorar. Quando ele ia para Novo Aripuanã, ficava em minha casa. Ele queria casar comigo. Chegou a falar com meus pais, mas eu não pensava assim. Eu tinha na verdade uma grande admiração por ele. Por sua militância. Sua intelectualidade. Seu despojamento com as coisas materiais. E principalmente sua força de amizade.
P – E tua entrada no movimento negro?
D: Depois que voltei de vez para Manaus, comecei a participar do CEBI, que também tem essa leitura de gênero na linha política, ecológica, etc. E o CEBI, desde 2003, começou a programar o Seminário de Negritude em nível nacional. Não saiu; mas realizamos o local. Eu tinha contato com pessoas que estavam envolvidas com a questão negra. Sempre pesquisei e estudei o assunto. Além de sempre ser convidada para proferir palestras em escolas e centros comunitários. Quando o CEBI lançou a questão de Bíblia e Negritude, em 2004 nós preparamos o Seminário de Bíblia e Negritude. Só que eu achei que pelo fato de ser Bíblia e Negritude, limitaria. Então, resolvemos deixar somente Negritude. Daí, passamos a convidar pessoas que estavam envolvidas com a causa e criamos um grupo que se transformou no Fórum e se encontrou desde setembro até novembro de 2004 quando do evento do Seminário. Depois aconteceu o Fórum de Negritude, que serve de referências para aqueles que estão envolvidos com a questão ou não.
P – E a prefeitura tem uma atuação real e convincente nestes acontecimentos?
D: Não. O prefeito Serafim, que foi apoiado pelos movimentos populares e que representava um desejo de mudança, hoje nós sentimos uma grande distância dele do diálogo do movimento popular. Inclusive na UFAM ele se reuniu conosco, porque havia um grupo da filosofia que estava discutindo a implementação do ensino de filosofia no Ensino Fundamental. E ele afirmou que havia muita possibilidade de realizar essa necessidade. Depois que foi eleito, ele não nos procurou para um diálogo. Ele ainda chegou a participar de uma reunião dos movimentos sociais com paróquias, onde ratificou o apoio às lutas, a questão da gestão democrática que era o que a gente esperava. Mas a gente sentiu um distanciamento dele dos movimentos que o elegeram. Por exemplo: o fórum do orçamento participativo, o pessoal questiona como foi feito. Nós esperávamos que fosse outro processo, que outros grupos fossem chamados, os grupos de luta por moradia e tudo mais. Outra coisa que a gente questiona é que há mais orçamento alocado na propaganda, na mídia, que na área social.
P – E a relação de vocês com o governo estadual?
D: É uma relação que se dá com alguns projetos. Na verdade a Cáritas é também uma captadora de recursos para alguns projetos sociais da igreja católica e a relação se dá quase nesse nível. Não há uma relação de parceria construtiva. Inclusive nós estamos na implementação dos Conselhos Estaduais com muita dificuldade de dialogar com o governo, se não forçarmos com os movimentos populares praticamente não há diálogo.
P – Como tu estás entendendo a discussão sobre a mestiçagem?
D: A primeira vez que ouvi falar sobre o movimento mestiçagem no Brasil foi no Seminário Negritude. Porque a gente sabe que movimento mestiçagem existe na Europa, que são imigrantes estrangeiros, e nos Estados Unidos, os latinos americanos. No Brasil, se existe, não conheço. Aqui em Manaus, eu não conheço um grupo mestiço. Na verdade, eu conheço quatro pessoas que se dizem mestiças e se assumem como mestiças. Eles participaram das reuniões do Fórum de Negritude. Inclusive houve uma discussão que o Fórum de Negritude deveria ser um Fórum da igualdade racial, e o movimento negro achou que não. Já que o que era proposto era a discussão política-social dos negros. Foi aí que os mestiços se desvincularam, porque a ideologia deles não batia com a do movimento negro; muito menos com a do movimento nacional, que está muito avançado nas políticas de afirmação, que é o movimento de reparação de 48% da população brasileira negra excluída.
P – Como tu vês a política do governo federal nesta questão?
D: Eu vejo por um lado muito positiva. Já que pela primeira vez um governo se preocupou em discutir a questão racial. Por outro lado, a maneira como está sendo executada, vamos ter que discutir muito. Desde 1888, desde que se fala em “libertação da escravatura”, nunca nenhum governo discutiu esta questão no Brasil. Considerando que o Brasil é a segunda nação negra do mundo, só perdendo para a Nigéria, nós estamos no mínimo trezentos anos atrasados.
P – Há uma democracia racial?
D: Nós vivemos numa falsa democracia racial, que afirma que não há discriminação racial quando o preconceito salta aos olhos. Até cego vê. Eu já fui muitas vezes discriminada.
P – Tu percebes discriminação na Universidade?
D: A Universidade é discriminatória. Exemplo: na minha turma de filosofia de 60 alunos, eu era a única negra.