DO FARDAMENTO COMO MARCADOR DE PODER
Diferentemente do imperativo hierárquico da Idade Média, as formas de dominação na modernidade funcionam por uma marcação milimétrica e minuciosa do espaço e do tempo para subjugar o corpo. E, como ensina Spinoza, aquilo que ocorre ao corpo se estende à alma. Um dos detalhes utilizados tanto para incluir uns quanto para excluir outros é o fardamento. Através dele se decide quem pode entrar, sair, dar ordens, realizar determinadas atividades, etc. As justificativas para a rigorosidade no traje nas instituições são, geralmente, as mais absurdas. Por exemplo, nas escolas é para diferenciar quem é aluno e quem não é por medidas de segurança. E quase sempre, quanto mais rigorosa sua atenção, este expediente numa instituição funciona para maquiar, criar um rosto belo e encantador onde existe apenas vazio, insegurança, simulação.
NUMA ESCOLA DE MANAUS
Um exemplo desse tipo de cuidado excessivo com o fardamento vem sendo denunciado neste bloguinho intempestivo por pais e responsáveis de alunos da Escola Estadual Ernesto Penafort. Segundo eles, hoje pela manhã, ao levar os filhos para a escola, cerca de 80 crianças foram barradas na entrada devido à calça comprida que trajavam. Segundo o vigia e outros funcionários, a ordem da diretora da escola, Graciete Simão, era somente permitir a entrada dos alunos trajando calça comprida jeans azul ou preta. Segundo pais, o rigor era tão forte que se a calça tivesse algum outro tipo de coloração — um pouco esverdeada, um jeans envelhecido, arroxeado, etc — não era permitida a entrada, parecendo-lhe um critério na verdade muito abstrato. Segundo pais, havia uma dificuldade dos funcionários em verificar a cor de calça de determinadas crianças, que, embora estando totalmente dentro dos critérios adotados, foram impedidos de entrar. Outros dizem que, sabendo-se a dificuldade de se encontrar em lojas de Manaus calças jeans as mais básicas possíveis, será difícil enquadrar as crianças no fardamento exigido na escola.
Detalhe, as crianças estavam todas usando camisa de farda “comprada” da escola. Algo comum em Manaus, onde, mesmo sendo obrigatória a distribuição de fardamento gratuito na rede pública de ensino, as escolas adotam outra farda “particular” para diferenciar-se notoriamente das outras.
Depois de acalorada discussão no portão da escola Ernesto Penafort, na qual os pais e responsáveis presentes acusaram a direção da escola de “irresponsabilidade”, “abuso de poder” e “discriminação”, somente quando um grupo de mães, indignadas, resolveram derrubar o portão foi que o acesso das crianças foi permitido. Uma das mães filmou a ocorrência, e os pais pretendem organizar-se e fazer denúncia formal da situação. Segundo eles, amanhã estarão preparados novamente pela manhã à frente da escola.
Como quase todas as escolas de Manaus se avultam entre as melhores do estado do Amazonas, a escola Ernesto Penafort há muitos anos se autointitula entre estas. Enquanto isso, o Amazonas vai garantindo a lanterna do Enem, enquanto esse rosto mascarado, formado por detalhes como fardamento, esconde a fraude de um sistema educacional defasado e inconsistente. Como diria Michel Foucault, o poder é muito frágil, por isso ele necessita de uma infinidade de nós para se manter, mas qualquer sopro pode fazer desmoroná-lo.