Para alguns, a palavra policial remete imediatamente ao seu significado mais banal, que é o aparelho policial. O policial Fulano, a Polícia Militar. Para alguns, a palavra significa perder o sono, porque remete imediatamente ao significado Polícia Federal.

No entanto, num plano filo-sociológico, a palavra policial e polícia carrega compreensões diferentes.

Polícia se refere ao agir do poder policial, que corporifica o Estado na sua função de segurança pública. O policial deve agir no sentido garantir esta segurança, e que, na chamada modernidade, está ligada diretamente à manutenção da existência. Assim, o trabalho da polícia é – deveria ser – muito mais de proteção e prevenção, uma vez que cabe ao Estado garantir outros aspectos da segurança pública: educação, saúde, renda, informação… A segurança pública não se reduz ao combater dos sintomas da falência do Estado capitalista (a chamada violência social), mas passa por impedir que as causas deste efeito surjam, produzindo uma cidade onde seja possível modos de existência autônomos e livres para a criação comunitária.

Quando o Estado não garante as condições mínimas para um existir autônomo, quando as produções estéticas em coletividade são capturadas pela subjetividade laminadora de um Estado que garante sua manutenção às custas da diminuição da potência de agir de seus membros, então temos configurado um Estado Policial. O cerceamento não das liberdades no sentido do movimento extensivo (ir e vir, expressão, escolha), mas envolvendo este direito de liberdade extensiva, mais importante para este Estado é garantir o controle sobre a liberdade intensiva de seus membros. As produções estéticas das pessoas, modos de existir diversos da lógica do consumo são capturadas, selecionadas e rotuladas, e tudo que for contrário a lógica do consumo é eliminado. Como sintoma (efeito) a violência social, o desemprego…

GILMAR MENDES E O ESTADO POLICIAL-MIDIÁTICO

O ministro da justiça, Tarso Genro, após o sorriso amarelo e os afagos no ministro do STF, Gilmar ‘Escuta’ Mendes, afirmou, contrariamente às críticas do próprio ‘Escuta’, que o Brasil não vive um Estado policial.

Mendes defende o que ele chama de Estado Democrático de Direito, que, pelo entendido até agora, significa não algemar, não investigar e não prender homens de bem, empreendedores e geradores de emprego no país, como Daniel Dantas, por exemplo. Ele criticou a midiotização das operações da PF – seis anos depois delas começarem a acontecer – entendendo que a exposição representa uma ameaça à reputação dos investigados, e uma condenação prévia e sem direito a defesa pelo tribunal nacional midiático.

De certa maneira, ao criticar a atuação da mídia, Mendes tem razão. Mas não é uma razão engendrada por uma análise, mas pelo receio de ser ele o próximo julgado pelas lentes paranoicizantes das câmeras e pelo olhar sincronizado dos videotas brasileiros. Outro ministro, Joaquim Barbosa, aquele que acusou Mendes de usar o “jeitinho brasileiro” para atuar no STF, teme, segundo a revista Carta Capital, que o órgão já tenha passado pelo banco dos réus da chamada (erroneamente) opinião pública.

O ministro Gilmar Mendes tem aparecido cada vez mais como um porta-voz da direita quando se trata de atacar o governo. Mendes assumiu com presteza o papel que, até o início do ano, era de outro ministro, Marco Aurélio de Mello. Teria a direitaça, a auto-alcunhada oposição, se tocado com os sucessivos insucessos eleitorais ao criticar Lula diretamente, e passado a usar agentes que não podem perder os cargos por intervenção direta da população?

De qualquer sorte, Mendes é um agente do Estado policial, fortalecendo o regime de signos imobilizadores. Sua atuação não é danosa apenas no momento em que usa seu cargo para atuar individualmente em favor de Dantas e seus asseclas, mas sua atuação causa uma corrosão na institucionalidade do Estado, enfraquece seu aspecto democrático, fortalecendo a idéia de que nele, o que prevalece é a lógica do “meu pirão primeiro”. As facilidades de Mendes a DanDan são mais danosas do que sonha a vã jurisprudência de seus críticos.

OS MILITARES E O ESTADO (AMERICANO) DE DIREITO

Bastou o ministro Tarso Genro divulgar que o governo pretende atuar no julgamento dos agentes de Estado que torturaram e violaram direitos humanos na ditadura militar brasileira para que os generais de listras (dos pijamas) se erguessem, invocando a lei de anistia e declarando-se perseguidos.

Alegando que “do outro lado” haviam terroristas de esquerda que também torturava e matavam, os generais pretendem espantar a onda de “caça às bruxas” que ensaia acontecer no Brasil, e que, em outros países, como o Chile e a Argentina, já aconteceu há muito tempo. Enquanto no Chile o general Pinochet teve que responder na justiça até depois de morto, no Brasil, em cada capital brasileira, há pelo menos uma avenida General Castelo Branco, ruas de nome Garrastazu Médici, cidades com o nome de Presidente Figueiredo, e por aí vai.

O clamor das vítimas por reparação teve dois ecos importantes que levaram a discussão até a esplanada dos ministérios. Um foi a caravana de reparações das vítimas da ditadura, empreendida pelo poder judiciário em parceria com o governo federal, que em cada capital julga os casos de indenização para os torturados e desaparecidos na época das lutas.

O outro foi a excelente série de reportagens da revista Carta Capital, que identificou e encontrou vários torturadores “menores”, a maioria subordinados à época ao famoso coronel Brilhante Ustra. Muitos deles continuam atuando como agentes públicos.

Dentro da própria esplanada dos ministérios, os militares têm quem os defenda: o ministro da defesa, Nelson Jobim, veio imediatamente a público afirmar que a lei de anistia não pode ser revogada ou alterada. Desfaçatez do ex-juiz e agora ministro, uma vez que ele sabe: somente as cláusulas pétreas da constituição (os direitos básicos garantidos por lei) são irrevogáveis.

Se o maior argumento dos militares é afirmar que agiram no cumprimento do seu dever cívico, cabe questionar – uma vez que documentos e depoimentos recentes, incluindo os que investigam a Operação Condor, provam a intervenção direta do governo estadunidense nas ditaduras sudamericanas da segunda metade do século XX – a que Estado serviram efetivamente estes militares.

A memória, no plano da democracia, tem duas funções: uma, através de lembranças alegres, aumentar a potência de agir comunitária, engendrando o nascimento do novo. A outra, através das lembranças tristes, às quais se remetem a acontecimentos que devem ser compreendidos a fim de que não se fique preso aos afetos tristes decorrentes destes maus encontros. Portanto, questionar juridicamente a ação dos militares e não-militares colaboradores do regime que transformou o país em quintal dos interesses do capital internacional é válida, e só pode ser feita a partir de um governo que tirou o país desta condição econômica e social na qual estava há mais de meio século.

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