IVO HERZOG, FILHO DE VLADIMIR: “QUANDO SE PERDE ALGUÉM DE FORMA INJUSTA, O LUTO NÃO SE COMPLETA”
Quando o jornalista foi assassinado pela ditadura militar, seu filho tinha nove anos
Ivo Herzog e sua mãe Clarice Herzog transformaram a dor em ação, a memória em construção. – Arquivo/IVH
Ivo tinha nove anos quando viu o pai pela última vez. No dia 25 de outubro de 1975, Vladimir foi até o prédio do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), em São Paulo, para prestar um depoimento sobre a sua ligação com o Partido Comunista Brasileiro, que atuava na ilegalidade durante o regime militar. De lá, o jornalista nunca mais voltou. Ele foi torturado e assassinado por homens que, depois do crime, forjaram uma cena de suicídio.
Na manhã seguinte, Ivo e o irmão André receberam a notícia. “Minha mãe entrou no quarto e disse que ele havia morrido”, lembra. Num primeiro momento, a mãe, Clarice Herzog, contou às crianças que Vlado havia sido vítima de um acidente de carro. “Eu e meu irmão não entendíamos muito bem, mas logo percebemos que havia algo muito errado”, diz Ivo, que atualmente é presidente do conselho do Instituto Vladimir Herzog (IVH), organização da sociedade civil criada em junho de 2009 para celebrar a vida e o legado de Vlado.
Nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Ivo retoma as últimas memórias que tem do pai, celebra o trabalho do IVH e denuncia a ausência de justiça nos crimes cometidos pela ditadura militar no Brasil. Mesmo após um longo trabalho de investigação da Comissão Nacional da Verdade e de uma denúncia apresentada à Justiça pelo Ministério Público Federal (MPF) contra seis pessoas envolvidas na morte de Herzog, nenhum dos acusados foi responsabilizado.
“Nenhum país se torna verdadeiramente democrático sem reconhecer e julgar os seus crimes de Estado”, alerta Ivo, que hoje dedica seus dias à tarefa de salvaguarda da memória de Vlado, um homem que, “mesmo vivendo em tempos duros, acreditava na luz, no conhecimento e na liberdade”.
Brasil de Fato – Qual é a última lembrança que você tem do seu pai?
Ivo Herzog – Minha última lembrança do meu pai é muito simples, cotidiana. Era uma época tranquila, de rotina familiar. Lembro dele em casa, com aquele jeito sereno, e, principalmente, nos fins de semana no sítio da família. Ele gostava de criar pombas e coelhos, observar o céu à noite, nos chamar para ver a lua e os anéis de saturno. Ele tinha um olhar curioso sobre o mundo, era alguém que contemplava as coisas. Acho que essa imagem dele, olhando o céu com o meu avô, é a última e também a mais simbólica. Um homem que, mesmo vivendo em tempos duros, acreditava na luz, no conhecimento e na liberdade.
Você se lembra de qual foi o momento em que entendeu o que havia acontecido com ele? Como foi isso?
Eu tinha nove anos. Na manhã seguinte à morte do meu pai, minha mãe entrou no quarto e disse que ele havia morrido. Num primeiro momento, falou que tinha sido um acidente de carro. Eu e meu irmão não entendíamos muito bem, mas logo percebemos que havia algo muito errado. As horas e os dias que vieram depois foram uma avalanche. O velório cheio, o enterro conturbado, o choro da minha mãe. Aquilo não era uma morte comum. Com o tempo, entendemos o que tinha acontecido — e foi muito doloroso. Acho que a ficha só caiu completamente anos depois, quando percebi que o assassinato do meu pai não era só uma tragédia pessoal, mas um crime político que dizia respeito a todo o país.

Qual é a maior dificuldade de se conviver com uma ausência como essa?
A ausência do meu pai é algo que nunca se preenche. Quando se perde alguém de forma violenta e injusta, o luto não se completa. É uma ferida que cicatriza por fora, mas continua sensível por dentro. Acho que o mais difícil é o que não vivemos: as conversas que não tivemos, as histórias que ele não contou, o tempo que não existiu. Mas ao mesmo tempo, essa ausência acabou se transformando em presença — no sentido de que o legado dele, a memória e o que ele representa para o Brasil se tornaram uma parte da minha vida. Aprendi a lidar com a falta transformando-a em ação.
Em certo momento, você passa a se dedicar integralmente ao Instituto Vladimir Herzog. Como foi essa decisão?
O Instituto nasceu quase que naturalmente. Durante muito tempo, achei que a história do meu pai seria esquecida, mas a cada aniversário da morte dele a imprensa voltava a nos procurar. Então, em 2008, no 30º Prêmio Vladimir Herzog, percebi que havia uma responsabilidade maior ali — que era organizar essa memória, contar a história com precisão, e fazer disso uma ferramenta de educação democrática. Decidi me dedicar integralmente porque entendi que o Instituto podia transformar a dor em ação, memória em construção. Hoje trabalhamos com educação, jornalismo e direitos humanos, e ver o impacto disso nas escolas, nos professores, nas crianças é algo que dá sentido à minha vida e à história da minha família.
Você avalia que o Brasil teve progressos no campo da reparação e justiça para as vítimas da ditadura militar?
Sim, houve avanços importantes, mas ainda muito aquém do necessário. Tivemos o reconhecimento do Estado pela morte do meu pai, a Comissão da Verdade, as políticas de anistia e reparação financeira — tudo isso foi significativo. Mas justiça, no sentido pleno, nunca houve. Nenhum dos responsáveis foi punido. E a Lei da Anistia, interpretada de forma equivocada, ainda protege criminosos. A reparação não pode ser só econômica; ela precisa ser moral, simbólica e judicial. Houve progresso, mas o Brasil ainda deve muito às vítimas da ditadura e às famílias que lutaram pela verdade.
Por que o Brasil tem dificuldade em responsabilizar judicialmente os responsáveis por crimes na ditadura?
Porque o Brasil é um país que nunca enfrentou de fato o seu passado. Sempre optamos por conciliação, por virar a página sem ler o que estava escrito. A transição democrática foi negociada, e o preço disso foi a impunidade. Nenhum país se torna verdadeiramente democrático sem reconhecer e julgar os seus crimes de Estado. A Argentina e o Chile mostraram isso. Aqui, a interpretação da Lei da Anistia foi usada para proteger torturadores, o que é um absurdo do ponto de vista jurídico e moral. Essa omissão alimenta o autoritarismo até hoje. Quando o país não pune, ele ensina que o crime compensa. E é por isso que, décadas depois, ainda enfrentamos ameaças golpistas.
Recentemente, a Justiça concedeu à sua mãe o direito à pensão de indenização. O que essa decisão representa para o Brasil? Como vocês, familiares, receberam essa decisão?
Essa decisão foi muito significativa. Primeiro porque reconhece oficialmente o que aconteceu: que Vladimir Herzog foi vítima de um crime de Estado. E também porque é um gesto de reparação simbólica à minha mãe, Clarice, que dedicou a vida à busca pela verdade. Ela sempre recusou qualquer tipo de indenização financeira — o que ela queria era justiça. Quando a doença a impediu de continuar, nós, os filhos, pedimos a anistia política do meu pai para garantir o cuidado que ela merecia. Receber essa pensão não é uma vitória pessoal, é o Estado brasileiro reconhecendo, ainda que tardiamente, sua dívida moral com as vítimas da ditadura. É um passo importante, mas ainda faltam muitos.
Qual a maior conquista ou um trabalho que mereça destaque do Instituto Vladimir Herzog, na sua opinião?
O Instituto tem muitas conquistas, mas talvez a mais transformadora seja o trabalho de educação em direitos humanos nas escolas públicas de São Paulo. Hoje, temos um programa que já alcançou mais de 1,5 mil escolas e mais de um milhão de alunos. Formamos professores em cultura de paz, memória e democracia. Isso é um legado vivo, que vai além do caso do meu pai — é sobre o país que queremos construir. Além disso, o Prêmio Vladimir Herzog continua sendo um dos símbolos mais fortes da liberdade de imprensa no Brasil. Eu diria que o maior mérito do Instituto é ter transformado uma tragédia em uma plataforma de aprendizado, empatia e compromisso coletivo com a verdade.