A MORDAÇA DO SISTEMA EDUCACIONAL
“Provavelmente toda educação consiste em duas coisas: em primeiro lugar conter o assalto impetuoso da criança ignorante para a verdade e em seguida iniciar, de modo suave, imperceptível, gradual, a criança humilhada na mentira.” Franz Kafka
A professora Júlia, da Escola Municipal Padre João D’vries, na zona Leste de Manaus, não conseguindo conter a “bagunça” de dois alunos, resolve colar fita adesiva na boca de ambos. A Secretaria Municipal de Educação – SEMED afastou-a por tempo indeterminado e abriu um processo administrativo para investigar sua conduta.
Mais do que um caso particular ocorrido no início do ano letivo numa escola de Manaus, essa punição expõe a disciplina sofisticada e liga-a ao suplício moral-exemplar, demonstrando as três primeiras partes da obra de Michel Foucault, Vigiar e Punir. Mas como o evento aí se cristalizou, ao contrário do que gostaria a secretária de Educação, Terezinha Ruiz, vamos analisá-lo a partir de Manaus.
AS CRIANÇAS INSUBORDINADAS
Passa pelo corpo de uma criança (mas também pode ser de uma mulher, de um velho, etc) um devir, um movimento contínuo, uma linha de movimentação intensiva, criativa, nômade, imperceptível e incapturável. Devir-Criança (Deleuze e Guattari). A família começa seu papel de domesticação, impondo sutilmente (às vezes, nem tão sutil) time, religião, opção sexual. “Meu campeão!” É preciso senilizar o velho, a mulher, a criança. Infantilização. A cada dengo-chantagem, a cada mimo-chantagem, ou pode ser também a cada beliscão, a cada verdadeira sessão de tortura a criança embranquece os cabelos, como diria Nietzsche, e passa a jogar o jogo-do-não-jogar. Crianças que com dois anos de idade dão um show de malabarismos sociais para a família reunida num domingo à tarde. É por isso que Simone de Beauvoir diz que “é muito fácil transformar uma criança num macaco”. Ou, ao contrário, crianças mudas, intimidadas. E eis que, de uma forma ou de outra, a criança está apta a galgar uma etapa. Vai à escola. E é enganosamente que lá dir-lhe-ão: “Você não está mais em sua casa.” Como assinala Foucault, a linha é a mesma. Mas, de alguma forma, a criança resiste. Formas essas inumeráveis e imperceptíveis (ainda bem!) para a maioria dos professores, e que muitas vezes transparece na chamada “bagunça”. Uma criança, duas crianças que não se submetem à ordem de “parar” numa escola na periferia de Manaus. É uma guerra; ou melhor, é um massacre. “Mata-se uma criança.” Por isso: pular, gritar, conversar, brigar, correr, chorar, jogar papel…
A EDUCASTRAÇÃO
Primeiro, o esquadrinhamento do tempo e do espaço. “Meu lugar”, horário de entrar, rezar, urinar, merendar, brincar, sair, etc. Havendo desvios — e porventura sempre os há —, coloca-se na parede ou na acústica ambiente toda uma pedagogia pautada em palavras de ordem monossilábicas em cores gritantes ou gritos fulminantes: “Você pensa que eu sou sua mãe?” “Sente-se!” “Não saia da fila” “Atenção!” “Saia!” “SILÊNCIO!” Quem já conviveu no dia-a-dia de uma escola de Manaus (e tememos que em muitos outros lugares daria no mesmo) sabe que o que de mais comum existe nesse espaço é professores gritando contra os alunos, principalmente crianças das primeiras séries. Mas as crianças percebem as mudanças legais, sabem e passam a fazer uso dos substitutivos de leis que as protegem antes mesmo que os adultos percebam. De vez em quando uma professora não consegue ser eficientemente autoritária pela suave disciplina — ou seja, não consegue lançar uma armadilha “premiada” ou interceptar a trajetória do devir — e extrapola o limite da punição, das sanções normatizadoras, levando-a aonde sempre esteve ligada: o suplício, que se diferencia da punição pela violência física impingida a um determinado corpo. “A fita adesiva foi uma brincadeira com eles. Não fiz de uma forma proposital. Foi um gesto impulsivo”. Mas as técnicas de suplício, sejam as execuções medievais ou o amordaçamento de uma criança, tem um efeito contrário do pretendido pelas instituições, que é o do exemplo moral, ao contrário, os vitimados por essas técnicas passam a gozar de uma certa excentricidade perante os outros. Nesse momento, a punição, que deveria “ter efeitos mais intensos naqueles que não cometeram as faltas” (Foucault), foi reorientada e passa a exercer um fascínio, expondo a impotência do corpo docente e do sistema educacional instituído. Pela indisciplina, pela insubordinação, pela bagunça a criança escapa, instintivamente, como um bicho escapa da jaula.
O SISTEMA EDUCACIONAL INSUPORTÁVEL
Para além do microfascismo cotidiano nas instituições escolares públicas e particulares por todos os recantos do Brasil e outras partes do mundo na relação professor-aluno, há um macrofascismo do sistema educacional com todos. A situação física das escolas. A ausência de concepções educacionais reais. Em Manaus, Terezinha Ruiz é a eterna secretária de vários governos e sempre fez e faz parte disso. A formação dos professores é tíbia e não tem continuação de fato, como aponta o estudo do movimento Todos pela Educação: “A formação continuada que é oferecida a esses professores é dada em geral por universidades que estão desacopladas da realidade da escola pública. Não há diretrizes claras entre o que está sendo formado durante a capacitação e aquilo que deve ser ensinado na sala de aula, há um completo hiato entre a formação e a preparação real.”
As crianças, vitimadas. “As crianças são vítimas muito fáceis”, diz o cinema de Hadja Bharadwaj, Closet Land. A professora, vitimada. “A sala tem 35 alunos.” Uma criança, duas numa casa às vezes colocam pais em desespero, imagina 35 em espaço fechado e com reduzidos atrativos. O caso da professora Júlia é apenas um que emergiu à luz da notícia na Folha de São Paulo, para o qual a professora apenas informou: “Não tenho nada para falar”. A frase não deixa de ser irônica, ela, que amordaçou as crianças é que não tem nada para dizer. O que falar para a sequelada Folha, que tem num Gilberto Dimenstein o supra-sumo do entendimento pedagógico? Na verdade, grande parte dos professores nunca falaram nada, nunca sequer professaram nada, apenas repetem, enquanto tristes sujeitos sujeitados, as verdades do sistema educacional degradado/degradante.
Já a SEMED, prontamente falou por ela: “Foi uma atitude agressiva porque as crianças sofreram maus tratos. Agora falta saber os motivos dela. Nesse primeiro momento, pode não ter sido uma atitude deliberada e, sim, motivada por fatores como estresse.” E a chefe do Núcleo de Serviço Social da secretaria, Graça Cardoso, afirmou que as crianças terão acompanhamento psicológico. Quer dizer que um dos três psicólogos concursados da SEMED será disponibilizado particularmente para esse caso? A questão não é psicológica, é de ordem prática em um realidade constituída que atravessa os séculos da instituição escolar.
A quarta e última parte de Vigiar e Punir está reservada à prisão, que é o caso da detenção de um menor, caso ele não se submeta às leis da sala de aula, da fábrica, da miséria física e/ou epistemológica, ou de uma professora, que abandonará a sala de aula por um hospital com a depauperação das cordas vocais de tanto gritar ou acometida por distúrbios psicológicos. Jamais o sistema educacional será responsabilizado pela ordem constituída, apenas reorganizará suas forças a cada caso que saia das sombras momentaneamente para a luz. É isso que apresenta a volta de Terezinha Ruiz à SEMED em Manaus, com a temporária prefeitura de Amazonino.