‘CHAGÃO!’: PEQUENA CRÔNICA ESPORTIVO-EXISTENCIAL

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Algumas partidas de futebol conseguem escapar da desertificação do criar intensivo que diferencia o futebol dos outros esportes, e por vezes mostrar porque para entender o mundo, é necessário entender o futebol.

A partida entre o clube português Sporting Braga e o Milan, na Itália, pela Copa UEFA, trouxe um pouco desse elemento intempestivo, ainda que descambe para o clichê mais vulgar do enredo futebolístico.

O time lusitano dominou durante todo o primeiro tempo, com um futebol que não chega a ser belo, mas é insinuante, com bons jogadores no meio de campo, jogadores aliás buscados ao Brasil e à América do Sul em geral. Na meiuca dos lusos do Norte português estavam um brasileiro, um uruguaio, na defesa, um peruano, no ataque, um colombiano. Durante a partida ainda entrariam mais dois brasileiros.

Os jogadores brasileiros Alan, nascido na Bahia, e que jogou no Ipatinga há distantes seis anos atrás, o atacante Paulo César, que jogou no São Caetano, o volante Vandinho, e no segundo tempo, ainda entrou Matheus. Faltou apenas Mossoró dar o ar de sua graça. Destes, Alan foi o dono da meia-direita, deitando e rolando sobre os marcadores multimilionários do time rossonero.

No ataque, principalmente no primeiro tempo, o colombiano Rentería, de saudosa lembrança dos rubros gaúchos, abusou de fazer aquilo que aprendeu com a nova geração de jogadores do seu país: perder gols. Conseguiu perder mais gols do que na partida da seleção cafetera contra o Brasil. No segundo tempo, uma tentativa de assassinato travestida de joelhaço por parte do lenhador suíço Senderos quase tirou o Saci de campo. Ele se recuperou, mas não foi mais o mesmo. Ainda assim, perdeu gols feitos.

O time do Braga cansou de perder gols, deitou e rolou, colocou o Milan na roda, e mostrou que os lusos, quando vem ao Brasil, sabem escolher, com olhar clínico, os jogadores que para lá levarão. Ou isso, ou acertam pelo cansaço, já que já são centenas de repatriados, pé-de-obra que foram tentar a sorte na Pátria Mãe Gentil, de Cabral até hoje. Alan certamente teria lugar em qualquer time da primeira divisão do campeonato brasileiro.

O time luso envolveu os italianos, e enervava a torcida, já que perdia gols com a mesma frequência que os perdulários investidores perdiam dinheiro na bolsa de valores. É daqueles times que estimulam a bile do torcedor, faz raiva pelo excesso de preciosismo ou pela falta de cuidado com a finalização dos lances. Por vezes estonteada, a defesa milanesa apenas assistia o time de negro chegar ao gol, e perdê-lo, melhor seria dizer não o fazê-lo, já que não se perde o que não se tem.

O treinador, na contramão dos “cerebrais” (sem intelecto) técnicos mundo afora, trocou meio-campo por atacante, e quis a vitória. Jorge Jesus, é o nome dele, e só se equivocou no momento em que, contrariando a si mesmo que foi até os minutos finais da partida, tirou um meia ofensivo e efetivo para colocar um defensor, que entrou em campo mas não entrou no jogo. Equívoco fatal. Foi pelo flanco direito, desprotegido, não pela ausência de um jogador, que lá estava o João Pereira, a substituir o meia Alan, mas pela ausência do próprio Alan, que segurou com maestria as descidas ofensivas do Milan por ali. Foi lá que o meia Seedorf, holandês casado com brasileira, mostrou que o diferencial do Milan não é Ronaldinho, Kaká, Pato ou qualquer outro vertebrado da Ilha de Vera Cruz, vulgo Brasil. Foi ele o grande responsável por manter a escrita do discurso supersticioso futebolístico: “quem não faz, leva”.

No apagar das luzes, Seedorf faz jogada pela direita, e num bate-rebate, a bola sobra para Ronaldinho, o queridinho da narração esportiva local, que sequer havia tocado na bola, mas, como predestinado fosse, estava “no lugar certo e na hora certa”. Outro enunciado supersticioso, que encontrou nos acasos uma confirmação quase religiosa. Com um chute, Ronaldinho arrancou o pontinho que o Sporting levaria – injustamente, pois que merecia os três – deixando-os no San Siro.

Pobres dos lusitanos, que torcem por um time que joga bem, não faz gols, e ainda é vítima das artimanhas mais velhas e velhacas das quatro linhas: o óbvio do óbvio. Presos ao acaso dos encontros – se por um acaso um joelho ou uma testa encontrasse a bola e fizesse-a encontrar as redes do fundo do gol de Dida – eles não fazem a própria sorte, e vão para casa com o sapo berlusconiano engatado na garganta, a ver os medíocres milionários do Milan sorrir no final. Como consolo aos corações marejados de tristeza do fado braguista, deixamo-los com os versos do também luso Ruy Guerra e do Vera Cruzense Chico Buarque:

Meu coração tem um sereno jeito

E as minhas mãos o golpe duro e presto

De tal maneira que, depois de feito

Desencontrado, eu mesmo me contesto


Se trago as mãos distantes do meu peito

É que há distância entre intenção e gesto

E se o meu coração nas mãos estreito

Me assombra a súbita impressão de incesto


Quando me encontro no calor da luta

Ostento a aguda empunhadura à proa

Mas o meu peito se desabotoa


E se a sentença se anuncia bruta

Mais que depressa a mão cega executa

Pois que senão o coração perdoa”

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