E A HOMOFOBIA? É CASADA? TEM FILHOS?

Leitor intempestivo, até onde vai a sua homofobia? Tem certeza de que sabe onde ela começa e onde ela termina? Em que situações ela se manifesta, e como ela, a homofobia, esse nó constituído da moralidade de classe, perpassa a sua consciência e em quantos planos e em que intensidade consegue se manifestar?

As perguntas surgem a partir da reação de parte da chamada comunidade LGBT em relação ao episódio que ficou conhecido como “propaganda eleitoral homofóbica” na campanha de Marta Suplicy à prefeitura de São Paulo.

A MORALIDADE: “O” MODO DE EXISTIR

A moralidade de classe (de onde sai a homofobia) é um enunciado: significa que carrega valores, dizeres e supostos saberes sobre o mundo e as coisas. Ela enuncia um modo de existir. Um modo peculiar, que não suporta elementos diversos daqueles que o compõem. O filósofo Michel Foucault estudou as contradições do capitalismo a partir da forma como seus dispositivos e produções servem à manutenção deste modo de existir. Deleuze e Guattari, apontados por alguns como continuadores da obra foucautiana – melhor seria dizer “descontinuadores” – mostraram como as produções não-convencionais, a loucura, a arte, o desejo fora dos ditames da “boa ordem” são capturados pelo capitalismo, domesticados, no sentido de seus valores e signos “rebeldes” serem eliminados ou esvaziados da sua potência revolucionária, até se transformarem em parte do “sistema”. O que os freudianos (não Freud) entenderam como sendo a sublimação.

A HOMOFOBIA: DISCURSO SAÍDO DO ENUNCIADO MORAL

Daí o discurso homofóbico partir de um juízo de valor sobre quaisquer práticas estéticas/eróticas sobre o corpo e a partir dele, que apresentem-se como diversas do padrão teo-bio-lógico, que pretendeu – e conseguiu, até certo ponto – clivar nas “ferramentas da sexualidade” uma função e um móbil bem definidos. A procriação e um prazer “familiares”. Prazer este que “deslocou” o gozo da mulher do clitóris para a vagina, e que condenou à não-existência a estimulação prazeirosa por quaisquer outros meios. Mesmo a pornografia de mercado, neste sentido, é ainda uma moralidade do corpo, pois à sobrevivência do capitalismo, é necessário simular o seu oposto. Opostos iguais, ambos desprovidos da potência Eros, a estética do Si produtora de afectos que aumentem a potência de agir.

É CASADO? TEM FILHOS?”

A quem incomodaria estas duas perguntas, que são feitas cotidianamente, de uma entrevista de emprego a uma paquera? Quantas conotações ela é capaz de assumir, dependendo da situação, e que pruridos morais ela movimenta por debaixo da mesa? Vejamos um exemplo: o carinha conhece uma carinha, fica a fim dela na balada, encosta, vai batendo um papo, xavecando, o interesse é mútuo e não fica apenas em uma transa ou uma ficada. Haverá o momento em que ele ou ela perguntarão ao outro: “tens filhos?” Aí pinta a angústia, principalmente das mulheres: boa parte dos homens não pretende assumir compromissos com mulheres solteiras e com filhos. É o complexo de Jacamim ao contrário. Por trás das zil desculpas para não assumir o namoro, os valores morais que a sociedade burguesa adesiva às mulheres solteiras com filhos: o complexo do fracasso – não constituiu família, não casou, não “se deu bem”.

No caso da pergunta da campanha de Marta, ainda que estes fatores sejam importantes politicamente, e que não se reduzam à “privacidade” dos candidatos a políticos profissionais, houve um equívoco, e por uma razão. Marta, psicóloga, militante dos movimentos sociais, que já defendia o direito LGBT décadas antes disso virar IN nas rodas eleitorais até dos partidos de direita, não leu a sociedade paulista, a imprensa paulista, uma das mais retrógradas do Brasil, grande responsável historicamente pelas desigualdades sociais e econômicas do país, a chamada “elite branca”, criticada até pelo seu ex-governador, Cláudio Lembo, do direitista DEM. Se por omissão (ela alega não ter sabido a tempo que o comercial iria ao ar daquele jeito) ou por descuido, o fato é que entregou munição ao adversário, bem mais aparelhado do ponto de vista midiático. Mas a falha não foi uma suposta homofobia de Marta, mas a de utilizar um expediente bem “à direita” de suas tradicionais campanhas: o de atingir o público conservador paulista em um de seus alicerces, a família. Décadas atrasada em sua análise da sociedade de consumo, Marta não sacou que este conceito, em termos políticos e de administração pública, só é importante nos delirantes nichos da ultra-super-übber direita-esquerda, à Lá Heloísa Helena, Jean Marie Le Pen, etc. Usar a intimidade de maneira escatológica é modus operandi deles: a homofobia partiu da interpretação do episódio feita pela imprensa kassabista.

O DISCRETO CHARME DA HOMOFOBIA

A homofobia foi manifestada sim, pela imprensa paulista, que deu tons cinzentos ao cor-de-rosa de parte do movimento LGBT, incluindo o do PT paulista, que se jogou (“te joga, looouca!”) na esparrela-armadilha homofóbica.

As palavras “casamento” e “filhos”, neste contexto, são marcadores de poder. Determinam territórios, fronteiras e estabelecem valores e definições. Ser casado e ter filhos do ponto de vista usado pela imprensa e pela campanha de Kassab, remete-se menos a uma condição jurídica do que a uma condição social-moral: significa ter seguido “o bom caminho”, ter sido justo, certo, reto, honesto, não ser errado, estranho, bizarro, anormal, desviado, viado. Se se é casado e tem filhos, na miopia da moral se está salvo: ufa, não sou gay, pederasta, pedófilo. Se não é, o que será? Tudo, menos um igual. E o que não é igual é perigoso.

A homofobia de cada um nem sempre se manifesta de maneira direta. Se alguém chama outra pessoa de “bicha” em tom de insulto, é um ato homofóbico direto, manifesto, claro. Mas não é homofobia também acreditar no casamento como instituição social-afetiva como única panacéia para todos os males emocionais? Quantos homoeróticos sonham em fazer bodas de ouro, prata, diamante, e não desconfiam do turbilhão de maldições, de ressentimentos, de dores, de censura mútua, de pequenos e grandes ódios, do assassinato frio, premeditado e prolongado das singularidades e potências-ativas de um casal que comemora 50 anos de casados? O que não se esconderá por detrás dos olhinhos brilhantes, dos elogios falsos dos amigos e parentes? Quantas concessões um fez ao outro nesses 50 anos, matando a potência criadora, quantos clones perdidos mundo afora daquilo que cada um quis fazer e não o fez, em nome da preservação desta instituição? Quantos casais têm filhos como apêndices de si, como válvulas de escape para alguma frustração de infância ou adolescência? Quantos cobram dos filhos que façam aquilo que eles próprios não fizeram quando tiveram a chance? Quantos se sentem fracassados quando estes filhos não correspondem às expectativas (incluindo o desejo de que não sejam gays)? Quantos, no afã de não repetir com os filhos a relação fracassada que tiveram com os pais, acabam por fazer igual? Quantas crianças de cabelos brancos, já adultos no seu fazer e se exprimir, no ocaso dos seus 4 anos vemos por aí?

A LUTA DA CIDADANIA CONTRA A HOMOFOBIA É A LUTA DO DESEJO CONTRA A PRIVAÇÃO

Se é para fazer igual ao modelo familiar burguês, esta coluna não é a favor do casamento gay. É a favor sim, de novas relações, não presas a estes territórios áridos, independente de como se chamá-la. E a favor do casamento do ponto de vista jurídico, a fim de preservar as conquistas, os direitos civis e o patrimônio social e econômico conquistado em comum. Um casamento em comum-unidade, comunalidade, expansivo, transbordante, e não paranóide, exclusor e normatizante. O mesmo vale para os filhos, que sejam vistos como pessoas convidadas a este mundo e a transformá-lo com a singularidade que cada criança traz a ele.

Imaginem vocês, leitores intempestivos, agora, se o PLC 122/06 já estivesse em vigor, e os grupos LGBT resolvessem processar a campanha de Marta? Cometeriam um enorme equívoco, pois a homofobia não saiu da campanha, mas da interpretação que a direita fez dela, evocando seus próprios valores, e ativando a homofobia que perpassa ainda muitos movimentos sociais pró-LGBT.

Daí a insistência: a homofobia se combate no plano dos enunciados, culturalmente, o que inclui o aspecto legal (daí esta coluna ser favorável ao PLC 122/06), mas também afetivo, de transformação das relações sociais. O que a psicóloga, política e cidadã Marta Suplicy sabe bem e defende, desde a década de 1970.

A homofobia se constrói na privação: todo preconceito é produto da estupidez, e toda estupidez é produto da repressão. Privação intelectual, afetiva, de participação, de pertencimento. É só ampliando a possibilidade de conexões sociais e existenciais e produzindo o aumento da potência de agir é que se pode combatê-la. Em todos os territórios.

Ufa! Valeu! Na próxima semana retornam as notícias!

Beijucas, até a próxima, e lembrem-se, menin@s:

FAÇA O MUNDO GAY!

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