! Era uma vez uma cidade em que existia um colunista social muito famoso e respeitado. Sua fama devia-se ao fato de possuir um talento invejável de transformar qualquer pessoa em personagem célebre e acima de qualquer suspeita. Contanto que tivesse dinheiro, é claro. A esposa do desembargador, o maior machado, era apresentada por ele como a mais pura e fiel mulher. Uma santa. O empresário do ramo eletro-eletrônico, um enrustido, era mostrado como o comelhão. O metro-macho da parada glamourosa. O cirurgião exibicionista, que fora um péssimo acadêmico de medicina e que se sabia não saber cortar um fio de pentelho, era o mãos milagrosas. E assim desfilava sua verve adjetivante em suas colunas e programas de TV, sempre elevando aos píncaros do high society aqueles que lhe interessavam. Um verdadeiro mundo de mentiras sociais. Certo dia, tendo sofrido um grave acidente e perdido os sentidos, fora levado a um hospital particular que em suas colunas aparecia como o templo do staf da medicina, para ser submetido a uma cirurgia de urgência. Estando sendo preparado para o início do ato cirúrgico, acordou e viu aquele que ia lhe operar: o médico mãos milagrosas. Foi sua última imagem.

!! Era uma vez um país em que havia um senador venal, crápula, corrupto e canalha. Entretanto, era tido como um justo. Certa vez, viajando feliz em um avião, se viu sentado ao lado de um jornalista. Engataram um papo e o jornalista aproveitou para entrevistá-lo. Ligou o gravador e pronto. De repente o avião começou a perder altitude, bateu um desespero total, ele gritou para o jornalista que ia morrer e precisava contar sua vida para entrar limpo no céu. O jornalista, também desesperado, se agarrou a ele, contou sua vida de lambaio do jornalismo de mercado. O avião foi caindo, caindo, caindo e… novamente alcançou altitude. Passado o susto, eles sorriram, e o senador pediu para o jornalista apagar o que havia gravado. E os dois ficaram como eram antes. Consumado o trauma, ele resolveu novamente pegar um avião. Ao seu lado sentou um rapeiro, solfejando um novo rap ao mesmo tempo que gravava. O avião trepidou, desgovernou-se de banda, perdeu altitude, e o senador agarrou-se no rapeiro e gritou que precisava se confessar. Mandou bronca. Disse que era corrupto, enriquecera junto com outros parlamentares e executivos com uma quadrilha que assaltava os cofres públicos, falou o nome de todos, os números dos processos fraudados, lavaram dinheiro, grilaram a Amazônia, contrabandearam ouro, pedras preciosas, mulheres, crianças… E o avião foi caindo, caindo, caindo e… desapareceu no mar. O rap, com sua experiência de rua, conseguiu abrir uma porta do avião, salvando a si e outros passageiros, só o senador não boiou. Dias depois, em casa, lembrou do gravador: estava tudo lá. Ligou para o editor da única revista respeitada do país, passou uma cópia e distribuiu na internet. Logo, o Hiper-Corpo do Ciber-Espaço estava contaminado com a gravação. Começou um movimento nacional e internacional para investigar os fatos e prender os facínoras. Não deu outra: com a pressão do povo nas ruas e as exigências internacionais, todos os culpados foram presos, condenados e a democracia se realizou, pela primeira vez, fora do discurso vazio.

!!! Saiu pela porta dos fundos da sua casa. Era madrugada. Iluminada por um tênue feixe de luz, viu uma corda pendurada em uma árvore. Olhou-a de sua ponta encostada no chão até a outra escondida pela copa da árvore. Era o infinito. Pensou ser a corda que os filhos brincavam com o balanço feito com um velho pneu. Mas onde estava o pneu agora? Dominado pela magia da corda que escondia o seu fim, decidiu subir na árvore por ela. chegando ao galho mais alto, notou que a corda continuava. Subiu…

…um homem descia pela corda e dizia que queria ver o mundo por dentro, queria conhcê-lo interiormente para depois ir ao fora. Gritava: queria implodir o mundo.

…continuou subindo. viu um país suspenso, onde todos choravam e se lamentavam da estupida existência que tinham. Quis descer. Não deixaram. Diziam-lhe que ficasse ali e, se possivel, continuasse a subir. Todos os governantes naquele pais jamais tinham amado, jamais amariam e jamais tinham sido amados. Viviam em uma tirania. A prova era eles e a cidade: uma completava a tristeza do outro. a alegria era proibida naquele país.

…decidiu continuar. Mais no alto, encontrou um reino onde todos viviam mudos, mas de sorrisos.

!!!! Ganhou prêmio de poesia quando estava na quarta-série – “À minha querida professora” era o título. Nunca brigou com o irmão. Sempre respeitou as leis de trânsito. Sempre produtivo. Não bebia, não fumava. Amor só de mãe, sexo só com a esposa. Multicampeão do “funcionário do Mês” da empresa. Unhas cortadas, cabelo impecável, sorriso de comercial de creme dental. Mandava flores, não esquecia o aniversário de casamento, chorava nos filmes românticos, selinho na esposa, meu amor, não esquece que te amo. Votava sempre na situação, não gostava de confusão, nem de oposição. Um dia, sentado num banco de praça, viu um pássaro, que olhou pra ele. Os dois se olhavam, e o pássaro não desviou o olhar. Ele levantou, tentou sair, o pássaro o seguia, pousava e encarava. Tentou ignorar o bicho e não conseguiu. Começou a sentir um calor na nuca, que foi subindo, subindo, subindo, até que ele desmaiou. Quando acordou, o pássaro subiu no seu peito, olhou, assobiou, cagou e levantou vôo. Levantou-se, e foi pra casa, tonto. E nunca mais foi o mesmo.

!!!!! Era encarregado de ligar uma gigantesca máquina, a qual somente ele conhecia a combinação de botões pra fazer funcionar. Todos os dias levantava cedo, e chegando ao trabalho digitava a combinação. Após um pisca-pisca, muita fumaça e uma sirene, a máquina ronronava como um motor de carro bem azeitado. Então ele ficava, até o final do dia, ao lado dela, quando desligava, com a mesma combinação, e ia pra casa. Os anos passaram e ele sempre naquele trabalho. Nunca viu seu chefe, nem perguntou pra que servia a máquina, mas morria de medo de esquecer a combinação, tinha pesadelos com a máquina parando de repente de funcionar. Um dia, recebeu uma carta: fora promovido, iria agora supervisionar trabalhadores de uma outra área da cidade. No último dia no velho posto, olhou a máquina, digitou a combinação e olhou fixamente para ela. Abraçou-a, beijou o painel onde diariamente colocava sua impressão digital, murmurou: “não”. No final do dia, outro abraço e beijo molhado, passou lascivamente a mão em um cano que saía próximo à uma engrenagem, e falou, sorrindo: “até amanhã”. No dia seguinte, levantou-se, vestiu-se e tomou o velho caminho.

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