LAVAGEM DA RUA 13 DE MAIO É DENÚNCIA DA ‘FALSA LIBERTAÇÃO’ E PROCESSO DE ‘AUTOCURA’, DIZ BETH BELI, MESTRA E FUNDADORA DO ILÚ OBÁ DE MIN

Ato é realizado há 18 anos por grupo tradicional do carnaval de paulista formado, quase totalmente, por mulheres negras
Nesta segunda-feira (13), o grupo Ilú Obá de Min realiza a lavagem da rua 13 de maio, no bairro do Bixiga, no centro de São Paulo (SP), em alusão à data na qual a princesa Isabel aboliu formalmente a escravidão no Brasil, em 1888.
“Que liberdade é essa?”, questiona a fundadora e mestra do bloco Beth Beli em entrevista ao programa Bem Viver desta segunda.
O Ilú Obá De Min foi fundado em 2004 e já é um dos cortejos tradicionais do carnaval de rua de São Paulo. O bloco é formado por 450 pessoas, sendo apenas 10 homens. Todas as outras integrantes são mulheres negras.
Desde 2006, o grupo realiza a lavagem da rua 13 de maio, no Bixiga, bairro fundado pela população negra que vivia na capital paulista. Foi nele que surgiu a maior campeã dos desfiles de São Paulo, a Vai Vai. E antes dela, este território pertenceu ao quilombo Saracura, que tem registros arqueológicos ameaçados por conta da construção de uma linha de metrô no local.
“Você grita ‘liberdade’, mas liberdade como?”, segue Beli. “Pra ter liberdade você precisa ter identidade, você tem que ter família, você tem que trabalhar, você tem que ter direitos, a liberdade tá ligada com isso, liberdade não tá ligada com correntes, né?”
“Como diz Elisa Lucinda, estamos presos às nossas contas correntes”, cita a mestra.
Na entrevista, Beth Beli explica porquê a escolha do Bixiga como local para o ato e também os motivos que levam o Ilú Obá de Min a realizar, anualmente, o evento.
A concentração começa às 18h e a saída do cortejo está marcada para às 19h. O local é a escadaria do Bixiga, localizado na Praça Dom Orione. O evento é gratuito e aberto ao público no geral.
Confira a entrevista na íntegra
Brasil de Fato: Qual a mensagem que o Ilú quer passar com a lavagem no 13 de maio?
Beth Beli: 13 de maio eu sempre faço uma reflexão que o lance não foi 13 de maio, o lance foi 14 de maio de 1888.
Primeiro que temos que entender que nós somos escravizados, nascemos com liberdade. Isso foi um fato que custou muito caro. Nós estamos no século 21 e ainda as mazelas, maus tratos, o racismo ainda continua.
A lavagem que o Ilú faz, na verdade começa muito antes do Ilú. Quem fazia era um bloco que chamava Ori Axé, e que era regente e presidenta era Kika de Bessen, que é uma das primeiras mulheres negras, por exemplo, a dançar no Theatro Municipal [de São Paulo].
Ori é uma palavra yorubá, traduzindo é cabeça, e axé é força, então era força da cabeça. Ela me convidou para participar quando eu ainda frequentava bastante o Bixiga. Só que com o Ori Axé a gente fazia no dia 1º de abril, que é o dia da mentira. Então a gente fazia essa brincadeira, lavava a rua dessa mentira.
Com o tempo esse bloco se desfez e eu fui convocada pelo orixá Xangô, orixá da justiça, para retornar com esse bloco. O Ori Axé tinha homens e mulheres.
Hoje nós do Ilú temos homens, né? Mas nós somos majoritariamente mulheres, são mais de 400 e são apenas 10 homens que trabalham, eles danças na perna de pau. Inclusive, essa é uma ferramenta que não é europeia, a ferramenta da perna de pau é uma ferramenta dos povos do Dogoni, povo do Mali, que usava essas tecnologias e usava essa perna de pau pro ritual, então os homens podem estar nesse lugar, mas é um trabalho dirigido, pensado, coordenado por mulheres.
Hoje a totalidade são mulheres negras, porque já teve um trabalho de mulheres não negras no Ilú. A escravidão foi tão bem arquitetada que a gente tem que negrecer um trabalho negro.
Então hoje a gente entendeu que no trabalho do Ilú as protagonistas são mulheres negras. Em 2024, a gente teve essa passagem e escrevemos, claro, um manifesto para essas mulheres, que a gente entende também que elas foram a nossas parceiras, mas que agora o protagonismo total do Ilú são das mulheres negras. Isso foi um movimento importantíssimo que nós fizemos dentro do Ilú.
Voltando a falar do Ilú… Ilú é tambor, um dos tambores sagrados dentre tantos que vieram da África. Obá, é título do rei, Xangô é um Obá. Tem várias referências, Gilberto Gil é um Obá, Jorge Amado é um Obá, Carybé é um Obá. E “De Min”, que significa “mãos”.
Então, Ilú Obá De Min significa “mãos femininas que tocam para o orixá Xangô”. Sendo que a gente tem a nossa patrona, que é a Iansã, que dentro da realidade das tradições africanas do centro da África, na região hoje conhecida como Nigéria, que é o candomblé, diz que é o casal mais quente do Orun, que é o céu.
Mas se perguntar, “mas por que um bloco de feminino tem um orixá masculino?”, porque o orixá Xangô é o que carrega a justiça.
Então, a gente faz uma lavagem ao contrário. A gente faz, agora, uma lavagem, não para lavar a rua da mentira, mas para se autocuidar, autocurar.
Porque a escravidão trouxe muitas coisas, muitas doenças psíquicas. Temos que entender que o que os nossos antepassados trouxeram foi só o corpo, então ficou tudo no corpo, a memória ficou no corpo, tudo no corpo. Então agora a gente também faz a lavagem da 13 de maio, falando sobre isso, que o problema não foi 13 de maio, o grande problema que a carreta até hoje, em 2024, foi o 14 de maio.
E por que é no Bixiga?
O Bixiga que todo mundo conhece como o bairro italiano, na verdade é o bairro onde havia o quilombo Saracura, onde surgiu a Vai Vai, que também não está mais pela construção do metrô.
Imagina uma escola que tem quase 90 anos, uma escola tradicional. A gente pensa que a história acontece em meio a muitas confluências.
Eu estou aqui e quem sabe o Ilú não é uma coisa que já deve ter acontecido em séculos atrás, eu sempre penso isso também.
A gente está num bairro negro, apesar de ser italiano, isso diz muito do branqueamento do Brasil, a população toma aquele lugar, a população italiana.
:: Vai-vai, Quilombo Saracura e o metrô: obra reacende luta pela memória negra no Bixiga ::
O Bixiga está inserido no bairro da Bela Vista. Era lá que a população negra morava. Se você subir qualquer rua ali, você vai dar na Paulista. Hoje tem várias pensões, ainda algumas com arquiteturas de 1910.
Ou seja, as pessoas negras moravam embaixo, que era o Bixiga, e elas subiam para trabalhar nos casarões, dos barões, na paulista, né? Então esse bairro nunca foi italiano.
E por que temos que entender o 14 maio como a data chave? Que analogia você quer fazer com essa marcação?
Por que a gente fala em falsa libertação? Isso não foi uma coisa que a princesa Isabel refletiu e resolveu fazer algo, ou os ingleses que fizeram a primeira libertação. Foi uma pressão, mas foi a pressão de abolicionistas negros.
Tá, mas aí aconteceu a falsa libertação, e daí? Você não tem cidadania, você não tem identidade, você não tem um local…
É muito diferente quando vêm os europeus pra cá, que já tinham terra. Eles não vêm numa condição de navio negreiro, porque isso bizarro, né? Você pensar no navio negreiro. Só de pensar meu corpo reage.
E logo depois disso teve a Lei da Vagabundagem. Quem ia preso? As pessoas negras. Porque elas não tinham trabalho, elas estavam na rua, elas estavam largadas.
A gente não teve oportunidade nem de voltar, né, de retornar. Tem histórias dos retornados, mas aí o outro é um papo que a gente poderia conversar horas sobre isso.
Você grita “liberdade”, mas liberdade como? Pra ter liberdade você precisa ter identidade, você tem que ter família, você tem que trabalhar, você tem que ter direitos, a liberdade tá ligada com isso, liberdade não tá ligada com correntes, né?
Como diz Elisa Lucinda, estamos presos às nossas contas correntes.
Eu tive com a Angela Davis na Escola Florestan Fernandes em um encontro com diversas lideranças de diferentes organizações e ela falou “eu quero ouvir vocês”. E aí começamos a falar tudo. Eu até nem fiz pergunta, fiquei no meu lugar, porque às vezes a gente tá no lugar de saber e às vezes tá no lugar do aprendizado. Então eu fiquei ali na minha.
Quando acabou ela perguntou assim “bom, escutei todos vocês, mas de que igualdade vocês estão falando?” E para mim essa palavra “igualdade”, ela ficou. E eu pensei “nossa, é verdade, de que igualdade a gente está falando?”
Porque é tudo tão capitalizado que se a gente já não tem referências, acaba se perdendo. Essa África que defendemos, que lutamos, na verdade, ela só existe no nosso coração. O mundo é todo capitalizado, né?
Então eu nasci no Brasil, claro, minhas referências de trabalho, de escrevivência, de tudo é daqui. Então vamos dizer que a África é raiz e nós somos caule disso, se você pensar numa árvore, se pensar num baobá.
O problema não foi 13 de maio. O problema foi 14 de maio, 15, 16…