FILÓSOFO JOSÉ ALCIMAR*: A POLÍTICA COMO FORÇA TEÓRICA DO POVO E O PODER DOS BECOS, RUAS E PRAÇAS

José Alcimar de Oliveira *
O bem comum da humanidade não é solúvel na privatização do mundo (Daniel Bensaïd).
01. A política encontra no povo a sua força material. O povo
encontra na política a sua força teórica. É somente a praça que pode unir o
povo e a política. Não haverá democracia no parlamento enquanto becos,
ruas e praças permanecerem vazias. A verdade da democracia do povo
implica dois direitos sempre negados pela democracia burguesa: 1) a
isonomia como igualdade coletiva diante da lei e 2) a isegoria como o
direito coletivo ao uso público da palavra. Enquanto o parlamento seguir
controlado de forma direta e explicita pelos representantes da burguesia e,
de forma indireta e velada (e venal), pelo poder do capital (o poder que de
fato controla o Estado e seus aparatos ideológicos), a democracia restará
formal, vazia e a envenenar a consciência do povo com a crença de que ele
governa quando vota.
02. Em seu artigo primeiro a Constituição da República Federativa
do Brasil, denominada de Constituição Cidadã, cujo texto foi promulgado
em 05 de outubro de 1988, assim formalmente estabelece: “A República
Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de
direito (…)”. Não podemos prescindir da positivação de conquistas formais.
E o Brasil estaria em situação ainda mais regressiva se o povo não tivesse,
no embate desigual e desleal entre as forças do capital e a luta da classe
trabalhadora, conquistado o que formalmente se inscreve na Constituição
de 1988. Não podemos retroceder de conquistas formais, mas estas, por si,
ainda não garantem a materialização da cidadania.
03. Um dos princípios fundamentais da tradição dialética,
materialista e histórica, do pensamento e a precedência ontológica do real
sobre o formal. Este princípio, mesmo que expresso num esquematismo
formal, já está presente na teoria do conhecimento de Immanuel Kant:
conceitos sem experiência são vazios. Experiência sem conceito é cega.
Hegel deu um passo além ao introduzir a história no esquematismo
hegeliano e desbloquear a passagem do fenômeno para o númeno, da
aparência para a essência. Mas em Hegel o devir da história é limitado pelo
idealmente definido, a ponto de considerar que o “Estado (burguês, no
caso) é a realidade em acto da Ideia moral objectiva, o espírito como
vontade substancial revelada, clara para si mesma, que se conhece e se
pensa, e realiza o que sabe e porque sabe”.
04. É somente com Marx e Engels, ao introduzirem materialidade na
compreensão idealizada de Hegel sobre o Estado burguês, que pela
primeira vez na história a face oculta dos interesses da burguesia é
desvelada, posta a nu em seu descaramento, já que foram rasgadas as luvas
ideológicas que cobriam suas mãos pretensamente invisíveis. Mãos
invisíveis e sanguinária exploração real. Ainda jovens, os dois geniais
parceiros de teoria e militância seguraram Hegel pela mão (ao menos nas
ideias, pois o mestre de Iena já havia partido em 1831) e conduziram sua
teoria idealista pelo caminho materialista da dialética e da história. Kant,
Hegel, Marx e Engels são figuras teórica e politicamente incontornáveis
para quem deseja pensar e libertar o Brasil encalacrado e engabelado pela
autocracia burguesa.
05. O Estado burguês, privatista em sua essência, atenta contra o
conceito de república. O privatismo que move a consciência burguesa
implica um duplo atentado político: à república, que nunca será presidida
pelo princípio da coisa pública, e à democracia, que nunca será o espaço do
exercício do poder do povo. Vale sempre trazer à memória a definição
redonda de Marx e Engels do Estado burguês inscrita no Manifesto de
1848: “O executivo do Estado moderno não é mais do que um comitê para
administrar os negócios coletivos de toda a classe burguesa”. Algo a ver
com o Brasil de 2021? A Constituição brasileira de 1988, pouco avançou
da conquista formal para a materialização constitucional de direitos sociais.
Regressivamente o Brasil, de fato, resiste como um Estado Oligárquico de
Privilégios.
06. A filósofa política Agnes Heller define a história como “a
substância da sociedade. A sociedade não dispõe de nenhuma substância
além do homem, pois os homens são os portadores da objetividade social,
cabendo-lhes exclusivamente a construção e transmissão de cada estrutura
social”. À burguesia interessa uma objetividade social sob o controle
ideológico de sua classe parasitária e predatória. A burguesia é coerente e
absolutamente ciosa de seus interesses. Por isso, ela falsifica a história,
atenta contra a verdade, destrói a memória social da luta da classe
trabalhadora, promove o ódio ao conhecimento, mobiliza a circulação
privatista de consumidores em shopping centers e criminaliza a ocupação
de becos, ruas e praças como espaço político da consciência e da luta dos
trabalhadores.
07. Ontem, 19 de junho de 2021, em Manaus e em centenas de
cidades brasileiras, o povo ocupou becos, ruas e praças, sob a ordem do
espírito democrático e em defesa da vida. Praças e feiras são espaços
públicos de afirmação da cidadania coletiva. Espaços abertos, muito
diferentes de shopping centers e condomínios. O Brasil não é um
condomínio. Aprendemos com Aristóteles que os ricos são mais perigosos
para a cidade, a pólis, do que os pobres, a classe subalternizada, que vive
do trabalho. Fora da ágora restará a trama rasteira, no espaço tríplice dos
poderes, a solapar os direitos coletivos. Em seu De Republica, Cícero
indaga: Quid est enim civitas nisi iuris societas? O que é, na verdade, um
Estado, senão uma sociedade de direito? Das ruas, becos e praças o povo
não recuará.
* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do
Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA – Seção Sindical e filho do
cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 20 dias de junho do ano (ainda) coronavirano de 2021.