FILÓSOFO JOSÉ ALCIMAR*: A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS PRECEDIDA E AGRAVADA PELA PANDEMIA DA DESIGUALDADE SOCIAL

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Por José Alcimar

A pandemia de Covid-19 pode induzir consciências a um grave equívoco epistemológico: naturalizar relações marcadas pela miséria das desigualdades sociais produzidas pelo sociometabolismo do capital. Num de seus sábios e precisos fragmentos o Filósofo Heráclito afirma que a natureza gosta de se esconder. Apresentado pela burguesia biocida como um fenômeno imprevisível e inelutável, o coronavírus é instrumentalizado como um operador ideológico de naturalização e ocultação da pandemia social que o precede e potencializa: a indecente e degradada desigualdade social. A luta social é também epistêmica, sobretudo para o militante da esquerda classista.

 

Nessa frente é necessário explicitar o quanto é fundamental reforçar o caminho da práxis. Somente por esse caminho, assentado num devir dialético materialista e histórico, a classe que vive do trabalho e produz riqueza, poderá construir relações sociais capazes de assegurar e materializar o conceito de saúde coletiva. Pelo caminho emancipador da práxis o conhecimento, mais do que um processo intelectual ou uma operação teórica, se transforma em poderoso instrumento de intervenção com um alcance a um só tempo duplo:

1) converte-se (para usar uma sábia referência marxiana), ao ser assimilado pelo proletariado, em força material;

2) gera exigências coletivamente saudáveis e civilizadas.

 

Sob a férrea e venal lógica das relações capitalistas o direito à saúde se transforma em serviço, eufemismo para omitir o conceito de mercadoria. E a medicina, submetida ao sistema do valor de troca, passa a ser presidida pelo paradigma curativo. Investe-se prioritariamente na doença, não na saúde. Investe-se no indivíduo como consumidor de fármacos, não na cidadania e na saúde coletiva.

 

A saúde coletiva é um tema marginal nos cursos de medicina. Que lugar tem hoje o paradigma da medicina preventiva nas Universidades e Faculdades, públicas ou privadas? Cria-se e alimenta-se, por essa via, um circuito integrado e pervertido: a precedência do paradigma da cura sobre o da prevenção reforça e alimenta a indústria farmacêutica e esta, por sua vez, incentiva a medicina curativa. Lucra-se com a doença. Como a cura é centralizada na figura do médico há uma desvalorização dos outros profissionais da saúde: enfermeiros, técnicos, farmacêuticos, bioquímicos, fisioterapeutas, dentre outros.

 

Que interesse há em investir na formação de agentes coletivos de saúde? Mesmo numa observação aleatória não deixa de ser espantoso o número, sempre crescente, de drogarias existentes em Manaus. Esse dado é indicador de saúde ou de doença? Não haverá lugar para indivíduos saudáveis numa coletividade presidida por relações sociais adoecidas.

*José Alcimar é filósofo, escritor, analista-político, teólogo-não-ortodoxo, doutor, e professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

Manaus, 29 de janeiro de 2021

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