FILÓSOFO VICTOR LEANDRO*: MORO, O JUIZ CAFTIANO

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Esqueça a angústia de Josef K., a atmosfera nebulosa e os vazios gritantes que o cercam. Ignore o não-crime com castigo, a acusação inominada, o processo obtuso, a indiferença dos carrascos. Isso não pertence à tosca estética jurídica de Sérgio Moro. Na sua inanição intelectiva, não há espaço para a profundidade do absurdo. O que tem significado não lhe passa por perto.
Agora, substitua a tensão trágico-existencial por uma estúpida comédia. Ou melhor, por uma farsa das mais malfeitas, cuja personagem central é um juiz que teve incutida pelo pai a ideia de que seria o herói da nação, e que para isso teria de se livrar dos inimigos vermelhos, encarcerando o algoz barbudo por meio de uma trama de trapaças e fingimento cínico, isso tendo o apoio de um grupo seleto de políticos ignorantes e hipócritas, que vivem de pregar seu falso moralismo para uma massa de indivíduos hipnotizados pelo feitiço que emana de suas pequenas telas luminosas.
Nesse enredo, que poderia muito bem ter surgido de uma corrente de Whatsapp ou das performances grotescas de Weintraub, os culpados são confundidos com inocentes, e papéis não assinados valem como atestado de culpa. A lei não passa de uma formalidade, e pode ser ignorada ao sabor dos interesses e acontecimentos. Porém,  mais uma vez, não há aqui o que lembre os paradoxos legais do gênio Tcheco: tudo não passa de uma mentira picaresca.
Mas o fracasso chega cedo para as obras ruins. O que era O processo tornou-se O conje, e Kafka virou um prato otomano. Resta ao protagonista agora deixar-se perder a memória, a fim de lembrar-se apenas de seus momentos de conquistas enganosas. Nada conseguiria ser mais caftiano. 
*Victor Leandro é filósofo, doutor e professor da Universidade Estadual do Amazonas (UEA). 

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