CASO HENRIQUE OLIVEIRA: QUANDO A ARMADILHA POLÍTICA TENTA SE PASSAR POR JUSTIÇA

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Uma cidade, é preciso dizê-lo ainda, em que a paz é efeito da inércia dos súditos conduzidos como um rebanho e formados unicamente na servidão, merece mais o nome de solidão que o de cidade”. (Spinoza, Tratato Político)

Um fato que chamou a atenção esta semana foi o pedido de vistas feito pelo ministro do TSE, Joaquim Barbosa, em relação ao “caso Henrique Oliveira”, julgado nesta terça-feira, no plenário do Tribunal Superior Eleitoral.

A discussão entre os ministros girou em torno de uma pretensa dicotomia entre o direito a se organizar politicamente, garantido constitucionalmente pelo artigo 5o, e o código eleitoral, em seu artigo 366, que proíbe o servidor público da justiça eleitoral de se filiar a partidos políticos.

Alegando a necessidade de votar de acordo com a verdadeira justiça, e classificando o caso como “complexo”, o ministro Barbosa colocou a situação de Henrique – e da própria ordem legal e jurídica da cidade de Manaus – em um limbo sem data para encerrar-se.

RESTRIÇÃO DO CÓDIGO versus GARANTIA CONSTITUCIONAL: E A POLÍTICA, ONDE FICA?

O tema central da aparente oposição entre o código eleitoral e a garantia constitucional da liberdade para associação política é a medida do justo para o individual ou para o coletivo. O que deve predominar?

O direito constitucional à associatividade político-partidária de um servidor público é a garantia da possibilidade, em qualquer tempo, e sob qualquer governo, de participar ativamente da vida social e política de seu país, um direito inalienável.

Por outro lado, o código eleitoral não apenas se encarrega de organizar o processo eleitoral, cerne da chamada democracia representativa, como também o de gerantir a sua lisura. Por princípio moral e legal, não se pode ser partícipe e árbitro numa mesma questão: daí a necessidade de se impedir o ingresso de funcionários do judiciário eleitoral na política partidária.

A questão, no entanto, não está nesta equivocada dicotomia.

A POLÍTICA E A DEGENERAÇÃO: OS TELE-MISERABILISTAS E O INTERESSE COMUM

Afirma o filósofo luso-holandês Baruch de Spinoza, em seu Tratado Político, que a virtude maior de um Estado democrático é a segurança. Não se trata aqui de segurança no seu sentido estrito, disseminado e estereotipificado, a saber, a questão da segurança como garantia da integridade física e patrimonial dos cidadãos.

Segurança, num plano político-democrático significa que o interesse Comum, produto da Razão, não pode ser submetido a interesses particulares, ainda que sejam os interesses do ocupante do cargo mais importante desta estrutura. A partir do momento em que sai do Direito Natural para o Civil, pela necessidade de con-viver, a potência de agir de uma cidade passa a compor com a segurança: a garantia de que a potência de muitos é maior que a de um apenas. O aumento desta potência de agir – a potência democrática – ocorre tanto mais exista a segurança como certeza da possibilidade do ato individual em comum-unidade ser regido pelo interesse comum.

Não se trata de uma conformação, mas de uma ética democratizante, que leva em conta que o interesse comum eleva a potência de agir dos súditos de uma cidade (aqueles que estão sujeitos à lei comum). Assim, é a atividade, a produtividade, o poder criador de seus habitantes é que faz com que uma cidade seja mais ou menos democrática. E justa.

Uma cidade onde os seus habitantes sentem-se seguros existencialmente, a ponto de produzirem ativamente seus modos de existir, é uma cidade democrática. E uma cidade democrática é aquela onde a lei comum é uma produção coletiva ao mesmo tempo em que determina o que pertence a cada um, de acordo com as suas necessidades. Daí, ser um ato justo todo aquele que se esforça por garantir que cada um tenha acesso àquilo que lhe é necessário, e injusto todo o ato que procura apossar-se daquilo que pertence aos outros.

Fácil perceber, portanto, que o modo de produção capitalístico, ao permitir que uns se apoderem dos objetos sociais (os meios de produção) e da força de trabalho de outros, submetendo-a a interesses alheios aos trabalhadores, não pode jamais produzir justiça e democracia.

Daí chegar à conclusão de que a chamada política na democracia representativa capitalista trata menos do Comum do que do particular. Daí Spinoza afirmar que os políticos “estão mais ocupados em preparar armadilhas aos homens do que em dirigi-los pelo melhor, e pensa-se serem mais hábeis que prudentes”.

Por isso, foi esclarecedora a fala do ministro Arnaldo Versiani que, desmontando as “elucubrações” dos colegas – em particular Marcelo Ribeiro, mas também Carlos Ayres e o próprio Barbosa num primeiro momento – “saiu às ruas” e trouxe elementos de ordem dos acontecimentos para o julgamento, como mostrou este bloguinho:

(…) foi a vez do ministro Arnaldo Versiani entrar na discussão e lembrar os colegas de que o réu é filiado à partido político desde há duas eleições anteriores, e não pediu afastamento sequer da função, já tendo sofrido processo administrativo pelo mesmo TRE/AM que o absolveu agora. Versiani pontuou que os benefícios de acumular cargo público e mandato eletivo são daninhos ao bolso do contribuinte, além de ressaltar que, inconstitucional ou não, o Artigo 366 do Código Eleitoral ainda está em vigor.” (aqui).

O que Versiani evidencia no rastro da sua lúcida fala é o aspecto “político” da atuação do ainda-vereador, sintoma de uma sociedade onde a democracia e a justiça não fazem morada.

A eleição do tele-miserabilismo como predominante no legislativo manauense é apenas um sintoma de uma sociedade onde os súditos são constantemente capturados pelas armadilhas dos políticos profissionais. Eleito a partir da exploração midiótica da miséria social – como muitos outros que vieram antes dele, como a família Souza – Henrique se aproveita da ausência da Segurança, ausência essa que, como causa, provoca o efeito da miséria social, e é ela própria efeito da ausência da predominância do interesse comum nas instâncias governamentais, para estabelecer uma relação daninha e avessa à democracia e à justiça. Ao se apresentar como substituto do poder público na resolução dos problemas urgentes da população – sem resolvê-los na prática – Henrique, como de resto todos os tele-miserabilistas, tenta apropriar-se daquilo que pertence ao outro: a autonomia e o direito ao exercício racional do exame político e da atuação transformadora que faz do cidadão um corpo constitutivo do Corpo Social – a Cidade. Faz prevalecer o interesse particular ao Comum. Nega a Cidade como corpo político, diminuindo a sua potência de agir.

Ao utilizar-se de recursos escusos para eleger-se, tal como ocultar o seu vínculo com o Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas, Henrique evidencia mais uma vez a prevalência – nele! – do interesse particular sobre o comum. Degeneração do político. O que compreendeu muito bem o procurador-geral eleitoral, Dr. Edmilson Barreiros, ao afirmar que a cassação do político corrupto tem um efeito pedagógico que contamina positivamente a sociedade. Daí sua luta – que não é sua, mas do interesse comum! – em fazer predominar os códigos da norma social que garantem ao menos o bom funcionamento da democracia representativa.

Sem política, não pode haver justiça. Sem justiça, não há democracia. A armadilha, neste caso, está posta: uma falsa questão sobre direitos e garantias constitucionais. Resta saber se os ministros cairão nela.

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