A INDÚSTRIA ORIGINAL MORDE SEU PRÓPRIO RABO QUANDO ATACA A PIRATARIA
Quando surgiram os primeiros apetrechos neo-tecnológicos, apêndices da indústria do entretenimento, os proprietários dos meios de produção não imaginariam que as próprias crias fossem se voltar contra os “criadores”.
Quando a onda tecnológica se reduzia aos CD Players, aos Walkmans, aos microsystems, ainda não se visualizava o estrago que se faria na indústria audiovisual: é que o produto em si, a produção artístico-comercial, vinda dos artistas, esta era a real fonte de riqueza, e o industrial se interpunha entre o emissor-produtor e o receptor-consumidor.
Com a ascensão das mídias domésticas, notadamente com o CD gravável (CD-R) e o regravável (CD-RW), a ameaça se tornou visível: milhares de pessoas deram adeus às prateleiras das lojas de cedê e passaram a copiar as músicas ou obras inteiras de originais comprados por amigos e emprestados aos “piratas”.
Da pirateação individual, para deleite solitário ou em soirée com os amigos, para uma para-indústria da pirateação foi um salto. O barateamento dos equipamentos de duplicação em massa dos chamados originais só facilitou, e cada pessoa hoje pode ter uma minigravadora em casa. Como se não bastasse o baque, as ultra-novas mídias, como o mp3 player, o Ipod, os aparelhos celulares, os pen-drives e a própria internet deram o que parece ser o golpe de misericórdia na velha maneira de se comercializar música e vídeo.
A BIBLIOTECA DE ALEXANDRIA DA INDÚSTRIA DE ENTRETENIMENTO
Hoje, as principais manchetes dos jornais e suplementos de informática trazem a luta das empresas gravadoras e detentoras dos direitos de uso e reprodução de obras artísticas audiovisuais contra a comunidade “Discografias”, do Orkut, que reunia exatos 766.619 membros, no momento em que este texto foi escrito, e cuja principal atividade é a disponibilidade de links para sites de armazenamento de dados, onde se encontram arquivos que remontam a uma discoteca com incontáveis artistas musicais de todos os tempos. Em cada tópico dedicado a um artista, o visitante tem acesso a links para praticamente toda a sua discografia. Existem tantos quanto imaginar o leitor intempestivo. A comunidade é organizada por três pessoas, mas os links são postados pelos próprios participantes. Os administradores são anônimos.
A principal inimiga da “Discografias” é a APCM (Associação Antipirataria Cinema e Música), fusão de duas entidades de defesa dos interesses das indústrias fonográfica e audiovisual. A APCM tem pressionado o Google, administrador do site Orkut, a acabar com a comunidade, alegando que estaria em desacordo com a legislação do país. O Google tem feito subtrações aqui e acolá na comunidade, eliminando tópicos e deletando usuários, com a justificativa de que o site é para discussão, e não compartilhamento.
O Google chama o Orkut de site de relacionamentos. Trocar arquivos, como dantes se trocavam LP´s e depois CD´s, não é uma forma de se relacionar? Paradoxalmente, foi necessária ameaça de exclusão do Orkut da web brasileira para que fossem liberadas informações de perfis de suspeitos de troca de material de pedofilia no site, por parte da polícia federal.
Contra a lepra orkútica que assola a comunidade, os usuários lançaram um abaixo-assinado eletrônico que pretende reunir um milhão de assinaturas contra a atitude do Google.
A PROPRIEDADE E SUA USURPAÇÃO
Como já pirateado neste bloguinho, a lei deixa de ser nomos (potência-comunalidade efeito da composição racional dos seres humanos em coletividade) para ser tirania quando as leis servem menos à produção de comunidades mais vastas do que à conservação de interesses econômicos.
A propriedade, seja ela física ou “intelectual” – como querem as indústrias do entretenimento – é sempre uma corrupção das relações com o outro. Um produto é o resultado do trabalho, que é sempre coletivo, ainda que realizado por um homem apenas. É coletivo porque envolve saberes e a capacidade humana de transformação da matéria, características comuns a todos os humanos, uma vez que são desenvolvidas em convívio. E o produto do trabalho é sempre coletivo, na medida em que este trabalho remete a uma coletividade de humanos. Até mesmo Platão, em Atenas, na Grécia, sacou essa, quando afirmou em sua Res Publica (coisa pública) a necessidade de levar em conta as profissões e habilidade dos cidadãos na construção de uma democracia.
Na propriedade, corruptela do produzir, é necessário esvaziar do objeto o seu caráter de finalidade. Todo produto remete a um fim, a sua instrumentalidade ou finalidade. Na transfiguração do objeto-produto em objeto-mercadoria, perde-se a sua finalidade. Para o capitalista ou o agente do mercado capitalista, o arroz não tem a função de alimento: sobrepõe-se a esta a sua valoração abstrata como ente absoluto no reino das relações humanas. O capitalista não compra o arroz para comer, mas para transformá-lo em lucro, trocando-o pelo objeto-mor do mercado do valor relativo: o dinheiro.
Assim, o desespero empresarial em torno da troca de mídias audiovisuais nos meios da novíssima tecnologia é o medo do déjà vu: o já-visto. Quando uma gravadora se “apossa” de uma música, ou no caso, de todo o catálogo de obras de um artista, ela se apropria não como entidade socialmente engajada na comun-ação desta obra, mas como mercado capitalista de produção de lucro: a mais-valia produzida pelo artista.
Com as mídias, há um curto-circuito na segmentaridade e no fluxograma do lucro empresarial: sem as distâncias e sem a limitação tecnológica, o fã chega ao artista sem ter que passar pela loja de discos ou videoteca. Pela internet, baixa o filme do diretor preferido, seja ele cinegrafista ou cinegástrico, e ainda descola as legendas na língua natal feitas por algum multilíngue solidário que fez o arquivo de legendas. Podem ainda comprar as músicas ou baixá-las gratuitamente, de zil sites e blogue. E caso ainda não tenha sido abraçado pela inclusão digital, pode comprar os cedês e devedês a preço módico no camelô da esquina.
As campanhas recentes das indústrias tentam aproximar o comércio da pirataria com o mercado das chamadas drogas. Consumir produto pirata é financiar o tráfico. Mas tampouco comprar aquele cedê daquela artista das pernas grossas e da voz fina é compactuar menos com o tráfico: não é por acaso a indústria do mainstream, dos holofotes e do lusco-fusco das superstars e seus produtores e gravadores-engravatados um dos que mais consomem os produtos do mercado do barato?
Dois outros argumentos mostram-se tão fracos quanto o anterior: o primeiro é aquele que afirma o prejuízo financeiro ao idolatrado-querido artista, que ficaria sem o seu quinhão da venda dos cedês “originais” a cinquenta e poucos Reais (dos quais ele recebe generosos 5 centavos, quando muito). O Radiohead faturou mais com o seu pague-o-quanto-quiser “In Rainbows” do que com os dois discos anteriores. Os artistas paraenses Calypso e Wanderley Andrade (dentre outros) distribuem os lançamentos diretamente aos camelôs, e vivem dos shows que fazem, e que jamais lotariam se os fãs não tivessem acesso facilitado às obras.
O segundo argumento é o que afirma que a indústria pirata lucra, não paga impostos e não gera empregos. Então não seria o caso de incentivar a sua legalização? Ou será que, mesmo pagando impostos, os comerciantes piratas continuariam vendendo os cedês e devedês muito mais barato do que a indústria original? Não que não haja conglomerados piratas que exploram a mão-de-obra “camelozal”, não se trata disso: é a indústria original é que não é nenhuma vestal, muito menos tem mais direito de explorar a mão-de-obra artística do que seus “primos pobres”.
“NÓS SOMOS OS POBRES!”
O revolucionário não está na indústria pirata, que é apenas uma outra face da moeda do mercado capitalista, mas na produção da riqueza: riqueza aqui no sentido que o filósofo Toni Negri dá à palavra, marxeando-a: modos de produções de relações materiais e imateriais produtoras de novas relações e produtos no mundo. Produção de outros modos de existir. A parafernália tecnológica foi criada com o intuito de capturar e imobilizar ainda mais o consumidor nas suas relações de dependência com a indústria tradicional. Eis que, a partir da potência criadora, estes consumidores, o elo mais fraco da corrente, os pobres, criam novos caminhos, desviam, cavam buracos, escapam, furam a parede, e quando a indústria se dá conta, os aparelhos de capturação são usados para a libertação da dependência econômica dela, na produção de outros tipos de relação e até de uma nova forma de solidariedade. Resta a esta indústria se adaptar ou fenecer.