PÁTIOS ESCOLARES E O MAPA INVISÍVEL DA DESIGUALDADE DE GÊNERO

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Pesquisas revelam como o design dos espaços impacta a participação de meninas, e como isso molda desigualdades que seguem na vida adulta

 

No recreio, aparentemente um detalhe inocente: meninos correm, jogam bola e ocupam o centro do pátio. As meninas, por sua vez, permanecem nas bordas, perto das escadas, paredes ou cantos onde se sentem mais seguras. Esse padrão, repetido em escolas de diferentes países, revela uma desigualdade silenciosa. O espaço físico educa, e educa de forma desigual.

“No recreio, os meninos ocupam o centro. As meninas ficam nas bordas. Parece só detalhe, mas pesquisas de urbanismo mostram que esse padrão se repete em muitas escolas. Meninos correm soltos, jogam bola, dominam o espaço. Muitas meninas preferem escadas, paredes e cantos — lugares onde se sentem mais seguras”, explica Gabriela Augusto, especialista em diversidade e inclusão reconhecida pela Forbes Under 30, em análise publicada nas redes sociais sobre dois estudos aos quais o GGN teve acesso.

A experiência de Barcelona: quando o pátio muda, o comportamento muda

O mapa à esquerda e à direita rastreiam os padrões de movimento dos meninos (em azul) e das meninas (em vermelho), respetivamente. Os meninos podem ser vistos ocupando a área central, que foi programada com instalações desportivas, enquanto as meninas se reúnem nas margens (ou arredores), onde estão localizadas a pista de caminhada e as escadas. Esses espaços permitem que as meninas ‘passeiem’ e socializem, mas sem serem o centro das atenções. Honorata Grzesikowska, urbanista e pesquisadora.

“Esses mapas vêm de uma pesquisa sobre pátios escolares feita pelas urbanistas Honorata Grzesikowska e Ewelina Jaskulska, documentada em projetos como Transforming the Schoolyards (Barcelona, 2023). Durante um ano, elas rastrearam os caminhos das crianças em duas escolas da Catalunha. O resultado foi claro: azul = meninos no centro; vermelho = meninas nas bordas”, explica Gabriela Augusto, no Instagram, ao analisar os estudos.

A especialista se refere ao estudo Transformem els patis (2023), que investigou como o espaço físico influencia a forma de brincar. Em parceria com o governo local, urbanistas intervieram em oito escolas primárias de Barcelona, reformulando os pátios para torná-los mais inclusivos.

As mudanças incluíram a introdução de elementos naturais, mobiliário variado, pavimentos menos rígidos e zonas de sombra e descanso. Após a transformação, observou-se um aumento no jogo ativo entre meninas, uma redução da segregação por gênero e um crescimento nas interações cooperativas.

Os meninos também passaram a diversificar suas brincadeiras — o jogo não competitivo e imaginativo aumentou, e o futebol deixou de ser o eixo central da atividade.

As pesquisadoras notaram ainda que, nos novos pátios, as meninas deixaram de ser espectadoras e passaram a ocupar o espaço. A simples reorganização do ambiente gerou efeitos diretos sobre participação, socialização e confiança.

Do pátio à cidade: meninas e o direito ao espaço público

A desigualdade não termina no recreio. O estudo Girls Just Wanna Have Fun (Perkins&Will Research, 2024) ampliou o olhar para o espaço urbano e ouviu meninas entre 13 e 18 anos sobre o uso das praças, parques e ruas.

Os resultados mostram que a cidade também ensina quem pode ocupar o centro. Barreiras como medo da violência, iluminação precária, ausência de banheiros e estigma social fazem com que meninas evitem lugares públicos, especialmente à noite ou em áreas dominadas por meninos e homens.

A pesquisa evidencia que o planejamento urbano precisa considerar as necessidades das meninas e jovens mulheres. O desenho das cidades, de praças a paradas de ônibus, deve promover pertencimento, visibilidade e segurança.

“Isso não significa que todas as meninas ajam de um jeito e todos os meninos de outro. São padrões sociais, não naturais, reforçados pelo design dos espaços”, ressalta Gabriela Augusto.

O pátio como metáfora da vida

O que começa como desigualdade espacial se transforma em desigualdade estrutural. “Quando meninas internalizam que o centro não é para elas, esse recado ecoa no mundo adulto. Não por acaso, somos apenas cerca de 18% no Congresso Nacional e 16% nos conselhos de administração no Brasil”, compara a especialista.

O pátio da escola, portanto, é um ensaio da vida adulta. “Quem ocupa o centro lá atrás, segue ocupando o centro aqui fora. E se queremos mais mulheres em posições de poder, precisamos repensar até os espaços de brincar”, conclui Gabriela Augusto.

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