“PRÓXIMO ANO SERÁ AINDA MELHOR”, AFIRMOU, ANA ROSA TENDLER, FILHA DE SÍLVIO TENDLER SOBRE MOMENTO DO CINEMA BRASILEIRO
afinsophia 23/12/2025 0
BEM VIVER
Ana Rosa Tendler relata ações para manter vivo o legado do pai e a busca de recursos para finalizar projetos inacabados
Um dos aspectos mais positivos para o Brasil em 2025 foi o fortalecimento do cinema nacional, que adquiriu ainda mais relevância internacionalmente após ser premiado com o Globo de Ouro e o Oscar, e nos festivais de Berlim e Cannes, mas também vivenciou um processo de reestruturação com o governo Lula após anos de desmonte do Ministério da Cultura nas gestões anteriores.
Boa parte dos filmes referenciados e que lotaram as salas de cinema tratam sobre assuntos historicamente importantes para o país, como a ditadura militar. Um dos maiores defensores de que o cinema deveria contribuir para a conscientização da população, Silvio Tendler, morreu em 2025 deixando um enorme legado para a produção audiovisual do Brasil.
Tendler fez filmes sobre o presidente Jango, Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves, Josué de Castro, Oswaldo Cruz, Milton Santos e, mais recentemente, retratou o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a luta contra o agronegócio e os agrotóxicos.
Ana Rosa Tendler, filha do cineasta e produtora audiovisual que atuava com o pai, explica qual era o objetivo dele com essas produções.
“O Veneno Está na Mesa foi uma ruptura, pois passamos a buscar filmes com temáticas mais sociais. Meu pai queria falar do processo de redemocratização e o fez através do Jango. Ele queria falar da globalização e o fez através do Milton Santos. Ele buscava personagens para serem porta-vozes de temas maiores que gostaria de retratar. Ele era acusado de ser um cineasta didático, mas esse era o objetivo dele. Como professor, queria contar histórias que as pessoas realmente entendessem, e não algo restrito apenas aos críticos”, explica, ao Conversa Bem Viver.
Sobre o “boom” atual do cinema nacional, ela acredita que 2026 pode guardar ainda mais surpresas, já que o setor vem passando por um processo de reestruturação.
“Tem uma energia, um astral positivo fluindo. O Ministério da Cultura e o governo encontraram terras arrasadas. Tiveram que refazer todo o arranjo interno para as coisas voltarem a andar. Acredito que o próximo ano será ainda melhor, pois tudo havia sido destruído. Meu pai acompanhava aflito o que acontecia com a estrutura do cinema”, comenta Ana Rosa Tendler.
A filha do cineasta também relata as ações que constrói para manter vivos o legado e a história do pai, além da busca de recursos para finalizar projetos que ele deixou inacabados.
“A assistente dele brinca que descobrimos vários “filhos fora do casamento”, projetos e ideias que ele trocava com amigos próximos e que agora teremos que adotar e realizar”, brinca.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato – Um colega afirmou que “Silvio Tendler pautou a utopia no cinema e documentou a história no Brasil”. Ele também ficou marcado como o “cineasta dos sonhos interrompidos”. Essas são boas formas de se referir à obra dele?
Ana Rosa Tendler – Quem deu esse apelido para ele foi um parceiro e grande amigo, o embaixador Arnaldo Carrilho, que já faleceu também. O Carrilho foi uma pessoa muito importante na vida do meu pai. Foi presidente da RioFilme e chegaram a morar juntos por um tempo.
Ele deu esse apelido porque meu pai retratou muitas personalidades que morreram muito cedo, como Glauber Rocha, Castro Alves e o próprio Milton Santos — que não era tão novo, mas que ainda tinha uma produção intelectual muito forte e morreu de câncer precocemente.
Ele não tinha nenhuma grande questão com o apelido. Contudo, ele se assinava ultimamente como “cineasta utopista”. Eu acho que “utopia” é um adjetivo muito melhor para caracterizá-lo ou nomeá-lo do que “sonhos interrompidos”, porque ele estava buscando a utopia mais do que os sonhos que ficaram interrompidos.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Tendler falou sobre os encontros que teve com Eduardo Galeano. Você sabe como foi esse encontro?
É engraçado porque imagino que, para o público do Brasil de Fato, um dos filmes mais importantes do meu pai seja o que fizemos sobre a questão dos agrotóxicos, O Veneno Está na Mesa. Esse filme nasceu de uma conversa com Galeano. Foram esses “rolês aleatórios” da vida: dois ícones, cada um com sua cultura e representatividade, conversando.
Galeano disse a ele: “Olha, a gente come veneno. Você acha que está comendo saudável porque está comendo uma saladinha, mas não, você está se envenenando”. Esse era um tema que meu pai nunca tinha pensado, e ele começou a ter aquela inquietação.
As obras surgem sobretudo a partir da inquietação. É muito difícil surgir um filme incrível se a vida estiver toda organizada. Ele ficou inquieto e foi conversar com João Pedro Stedile. O Stedile reforçou a informação que o Galeano havia passado e, juntos, conseguiram financiamento na Fiocruz para fazer o filme.
Então, as conversas com Galeano não foram apenas diálogos entre dois intelectuais, mas conversas que geraram uma obra que é referência para nós. Em uma homenagem que recebi em nome dele no Congresso de Agroecologia, mencionei que O Veneno Está na Mesa nos trouxe verdadeiramente para o movimento social.
Antes, falávamos de personagens icônicos. Milton Santos já havia nos trazido para essa descentralização e para a periferia, criando um elo maior com os movimentos sociais, mas foi O Veneno Está na Mesa que nos colocou com o “pé na terra”.
Retratar grandes personalidades, como Josué de Castro, Milton Santos e Jango, é importante em um contexto em que a história brasileira corre o risco de ser apagada. Fazer isso representou uma virada na carreira do seu pai como cineasta?
Sim, acho que fez muita diferença na nossa forma de produzir e no que começamos a buscar. O Veneno Está na Mesa foi uma ruptura, pois passamos a buscar filmes com temáticas mais sociais. Eu sempre digo que meu pai queria falar do processo de redemocratização e o fez através do Jango.
Ele queria falar da globalização e o fez através do Milton Santos. Ele buscava personagens para serem porta-vozes de temas maiores que gostaria de retratar. Mas em O Veneno Está na Mesa, ele focou diretamente no agrotóxico, não foi através de um personagem. Depois, fizemos filmes sobre o SUS e sobre a financeirização da economia. Começamos a falar através de temas.
Tendler também foi perseguido pela ditadura e se exilou, passando pelo México e pela Europa. Como foi esse processo?
Ele foi para o Chile também, antes da Europa. Na verdade, ele se autoexilou porque não queria correr o risco de ser preso. Dizia que não tinha estrutura emocional para o “desbunde” nem para pegar em armas. Então, preferiu o autoexílio.
Um dia, a polícia bateu na casa da minha avó e ela teve uma presença de espírito muito grande. Não havia ninguém em casa, nem ele, nem os dois irmãos. A polícia ficou lá esperando que ele chegasse. Quando ele chegou, o porteiro interfonou para avisá-la. Ao subir, o policial perguntou: “Este é o Silvio?”. Ela respondeu: “Não, não, este é o Sérgio”. Ele entendeu tudo.
Ele saiu pelos fundos e, quando o Sérgio — o irmão dele — chegou, a polícia percebeu o que havia acontecido e levou minha avó detida. Ela ficou na mesma prisão que o Rubens Paiva. Depois conseguiram soltá-la, mas ela ficou alguns dias detida.
Tendler morreu uma semana depois da condenação definitiva de Jair Bolsonaro e de militares de alta patente pela tentativa de golpe, algo inédito no Brasil. Ele acompanhou esse processo?
Ele ficou muito tempo internado, então, nessa reta final, estava um pouco mais desligado, o que os médicos chamam de “pouco responsivo”. Colocamos o julgamento na televisão para ele, que apontava e indicava com a cabeça, mas já não estava falando. Não sabemos exatamente o que ele entendeu daquele momento.
Mas foram datas muito emblemáticas: ele morreu no dia 5 e foi enterrado no dia 7 de setembro. No dia da celebração do sétimo dia — que foi em um cinema aqui no Rio de Janeiro —, foi o dia da condenação. Houve outra homenagem no Estação que coincidiu com o veredito final dos militares presos. Sempre há eventos marcantes em homenagem ao meu pai em dias emblemáticos da política recente.
Se olharmos para 2025 pelo prisma do cinema, é um ano histórico, pelo sucesso de bilheteria, mas também por termos ganhado o Oscar com um filme que fala da ditadura e de Rubens Paiva. Como você avalia esse cenário?
Tem uma energia, um astral positivo fluindo. Ele chegou a ver Ainda Estou Aqui e gostou bastante. Foram anos muito difíceis para a cultura e para o cinema brasileiro. O Ministério da Cultura e o governo encontraram terras arrasadas.
O governo chegou, mas de forma um pouco lenta para quem vê de fora, pois tiveram que refazer todo o arranjo interno para as coisas voltarem a andar. Acredito que o próximo ano será ainda melhor, pois tudo havia sido destruído. Ele chegou a vivenciar isso e acompanhava aflito o que acontecia com a estrutura do cinema.
Qual era o filme favorito de Tendler, entre suas próprias produções?
Acho que ele gostava de todos, pois não colocava nada na tela sem realmente gostar. Mas acredito que o mais emblemático para ele foi o Jango, que o lançou para o mundo e foi um grande sucesso de crítica e público.
Você colocaria Jango como o filme que mais reverberou e fez o país tremer?
Acredito que sim. Eu tinha apenas 4 anos na época, então falo pelo que estudo e pelos relatos. Mas tivemos filmes recentes muito importantes: Glauber Rocha foi para Cannes e ganhou o prêmio do Júri Popular no Festival de Brasília. Ele gostava mais de ganhar o júri popular do que o oficial.
Ele era acusado de ser um cineasta didático, mas esse era o objetivo dele. Como professor, queria contar histórias que as pessoas realmente entendessem, e não algo restrito apenas aos críticos. Milton Santos e Dedo na Ferida também ganharam prêmios de júri popular. Esses prêmios o deixavam mais orgulhoso, pois significavam o entendimento do público, e não apenas de especialistas. Eram todos filmes muito políticos reverberando em salas lotadas.
Ele achou o equilíbrio entre entretenimento e politização? Ele tinha vontade de se comunicar e “furar a bolha”?
Sim. No caso de O Veneno Está na Mesa, estima-se que 5 milhões de pessoas assistiram. Na época do DVD, distribuímos milhares em assentamentos e depois colocamos no YouTube. Todos os filmes que não possuem restrições contratuais nós disponibilizamos no YouTube, pois queremos que as pessoas vejam e discutam temas como agrotóxicos, financeirização e democracia.
Como as pessoas podem acessar as obras hoje? Existe algum plano para criar uma plataforma ou festival?
Cerca de 90% dos nossos filmes estão no YouTube da produtora, o canal Cinema e Conteúdo. Na verdade, temos dois canais, porque um foi bloqueado pelo YouTube por motivos que nunca descobrimos. O canal existe, mas não conseguimos subir nada novo. Por isso, criamos um segundo canal para as obras recentes.
Pretendo criar um instituto para fomentar novos talentos e premiar documentários políticos. Também estamos buscando recursos para finalizar os filmes que ele deixou inacabados. A assistente dele brinca que descobrimos vários “filhos fora do casamento”, projetos e ideias que ele trocava com amigos próximos e que agora teremos que adotar e realizar.
Tomei como missão continuar o trabalho. É também para preservar a memória e o legado. Esses momentos de homenagem e de conversa servem para isso: para externarmos o que estamos fazendo com o que ele deixou inacabado e que vamos finalizar, e também para falar um pouco sobre a história dele, para quem não conhece ou para quem já conhece, a fim de rememorar e seguir.