20 ANOS DO ‘NÃO À ALCA’: O GESTO HEROICO DOS POVOS DA AMÉRICA LATINA

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LUTAS SOCIAIS

Mar del Plata 2005: quando líderes, movimentos sociais e sindicatos selaram a derrota do projeto de livre comércio

Em 5 de novembro de 2005, a cidade costeira argentina de Mar del Plata se tornou o túmulo do — até então — mais ambicioso projeto de recolonização do continente pelos Estados Unidos: a Área de Livre Comércio das Américas (Alca).

Após um longo processo que se estendeu por quase uma década, os chefes de Estado de todo o continente viajaram à Argentina para participar da IV Cúpula das Américas — com exceção de Cuba, excluída da OEA. A Cúpula representava uma oportunidade para que o então presidente republicano George W. Bush (filho) acelerasse a implementação da Alca, cuja primeira proposta havia sido elaborada por seu pai, no início da década de 1990.

Cenário de enormes mobilizações sociais, a cidade fervilhava. Sob os gritos de “Não a Bush”, que já era considerado criminoso de guerra após a invasão estadunidense ao Iraque, e “não à Alca”, os atos políticos e as intervenções culturais se multiplicavam em cada canto de Mar del Plata.

Enquanto George W. Bush, acompanhado pelos presidentes Vicente Fox, do México, Martín Torrijos Espino, do Panamá, e George Maxwell Richards, de Trinidad e Tobago, pressionava para acelerar a assinatura do acordo, movimentos sociais, sindicatos e ativistas de todo o continente se reuniam na III Cúpula dos Povos, uma anti-cúpula que exigia que os governos não assinassem o tratado, considerado uma entrega total da soberania nacional e uma ameaça à autonomia econômica e social dos países.

Naqueles dias, Mar del Plata transformou-se no palco de um dos embates políticos mais importantes de todo o continente. A cidade foi, durante a primeira metade do século 20 o balneário das classes dominantes do país, para depois se tornar um símbolo das conquistas da classe trabalhadora durante o peronismo.

Sob uma chuva persistente, horas antes do início oficial da reunião presidencial no luxuoso hotel Hermitage, uma multidão liderada pelas Mães da Plaza de Mayo marchou pelas ruas da cidade. Dezenas de milhares de pessoas — camponeses, povos originários, sindicalistas e militantes de movimentos sociais — vindas de diferentes pontos do continente, lotaram o Estádio Mundialista para participar do ato central da Cúpula dos Povos.

A presidente da associação “Madres de Plaza de Mayo”, Hebe de Bonafini, grita slogans ao lado do líder camponês boliviano e candidato à presidência Evo Morales durante a marcha da “Cúpula dos Povos” – Foto de JUAN MABROMATA / AFP

O discurso principal ficou a cargo de Hugo Chávez. Acompanhado por Diego Maradona, que havia viajado à cidade em um trem que transportava manifestantes, Hebe de Bonafini e o então líder social e candidato presidencial boliviano Evo Morales, Chávez afirmou: “Cada um de nós chegou aqui com uma pá, uma pá de coveiro, porque em Mar del Plata está o túmulo da Alca”. Sua intervenção se estendeu por quase duas horas e meia.

O ato alternava a voz do locutor Quique Pesoa, que apresentava os participantes, com as interpretações de Silvio Rodríguez, Daniel Viglietti e Vicente Feliú, entre outros, em um concerto onde a música se misturava aos cânticos da multidão: “Não à Alca!” e “Alca, al Carajo!”. No palco, um imenso estandarte com o retrato de Ernesto Che Guevara.

A encarregada de ler as conclusões da III Cúpula dos Povos foi a escritora e dirigente indígena equatoriana Blanca Chancoso, de nacionalidade kichwa-otavalo, que primeiro saudou a multidão em quíchua e depois em espanhol.

Algumas horas depois, ao solicitar que fossem feitas cópias do documento do encontro para entregá-las aos presidentes, Chávez anunciou: “Vou para a outra cúpula, vou levar as palavras de vocês” e acrescentou: “Chegou a hora da segunda independência dos povos”.

No dia seguinte, em meio às imensas mobilizações que haviam tomado a cidade, o presidente Lula foi um dos primeiros a se manifestar na reunião de presidentes, ressaltando que a Alca limitava a possibilidade de implementar políticas industriais e tecnológicas nos países, o que provocou um embate com o presidente Fox.

Durante várias horas de debate, os presidentes Lula, Néstor Kirchner, da Argentina, Tabaré Vázquez, do Uruguai, e Hugo Chávez, da Venezuela, lideraram um bloco de rejeição à Alca. Segundo a crônica do jornalista Eduardo Barcelona, após demonstrar seu cansaço com o debate, Bush teria declarado não entender por que havia tanto alvoroço. Em suas palavras, tratava-se apenas de construir uma “defesa da China”.

Finalmente, os países do Mercosul, junto com vários países do Caribe, declararam que “não existem condições para alcançar um acordo de livre comércio hemisférico”.

Manifestantes seguram uma faixa com retratos dos presidentes (da esquerda para a direita) de Cuba, Fidel Castro; da Venezuela, Hugo Chávez; da Argentina, Néstor Kirchner; do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva; e do Uruguai, Tabaré Vázquez, em 4 de novembro de 2005 – DANIEL GARCIA / AFP

Alca (Alca al Carajo)

A ALCA foi apresentada oficialmente em 1994, durante a primeira Cúpula das Américas, realizada em Miami, no contexto do auge do Consenso de Washington, após a assinatura do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (TLCAN) — que estabeleceu uma área de livre comércio entre Estados Unidos, Canadá e México —, que entrou em vigor naquele mesmo ano. A Alca buscava estender e aprofundar o que Washington havia experimentado com o TLCAN para todo o continente.

Durante essa primeira reunião, os chefes de Estado de 34 países americanos se comprometeram, sem qualquer tipo de consulta às organizações da sociedade civil de seus respectivos países, a implementar a Alca “o mais tardar” em 2005.

Impulsionado pelos Estados Unidos, o projeto da Alca buscava criar uma grande zona de livre comércio que abrangesse todo o continente americano, com exceção de Cuba. Para isso, os países deveriam eliminar impostos ou tarifas sobre bens e serviços, suprimir subsídios e barreiras antidumping, e modificar regulamentações sobre investimento estrangeiro, entre outras medidas.

Dessa forma, os países do continente perderiam a possibilidade de proteger suas indústrias e controlar seus recursos naturais, enquanto os Estados Unidos asseguravam um enorme mercado para seus produtos e um vasto controle sobre os recursos da região.

Durante a III Cúpula das Américas, realizada em 2001 em Quebec, Canadá, todos os países presentes — com a única exceção da Venezuela, cujo presidente era Hugo Chávez — haviam votado a favor de avançar com a Alca. Por isso, a Cúpula de Mar del Plata se apresentava como o corolário natural desse processo.

Resistências sociais

A derrota da Alca foi resultado de um longo processo de acumulação de lutas sociais e aprendizados coletivos que, em coordenação com diversos governos da região, permitiu consumar uma das gestas populares mais importantes do continente.

Se, para Washington, o TLCAN representou um precedente imediato através do qual se experimentou uma engenharia de subordinação econômica, as resistências sociais ao TLCAN — com seus debates e aprendizados — serviram de referência para que os movimentos sociais do continente articulassem mecanismos de luta contra a Alca.

Durante a década de 1990, movimentos sociais e sindicatos do continente tiveram acesso aos documentos e debates que detalhavam a natureza da Alca, compreendendo que se tratava de uma tentativa de recolonização da América Latina e do Caribe.

Na segunda metade da década, Fidel Castro alertava sobre os perigos que a Alca representava para a região, sendo sua voz uma das poucas dissonantes entre os chefes de Estado do continente. Assim, durante um encontro com a União Nacional de Estudantes, realizado em 1º de julho de 1999 em Belo Horizonte, advertiu aos jovens militantes que “os Estados Unidos desejam engolir inteirinha a América Latina e o Caribe, por meio do chamado ALCA, Acordo de Livre Comércio das Américas”.

Nesse contexto, em Cuba, Fidel Castro encarregou a Central de Trabalhadores de Cuba (CTC) e o Centro Martin Luther King (CMLK) da organização, em novembro de 2001, do Primeiro Encontro Hemisférico de Luta contra a Alca. Após anos de intensas lutas sociais, esse encontro reuniu movimentos sociais e sindicais de todo o continente, consolidando um espaço de protagonismo dos atores populares. Desde então, o encontro passou a se repetir anualmente em Havana.

Esses encontros, junto com o Fórum Social Mundial, permitiram articular distintos espaços que convergiram na III Cúpula dos Povos em Mar del Plata, constituindo-se em um ponto-chave para a derrota da Alca.

A agenda técnica e de conteúdo da Alca afetava múltiplos âmbitos da vida social e política, chegando a colocar em risco a soberania dos países. Seus impactos se estendiam desde a depredação dos recursos naturais até os direitos ambientais, trabalhistas e econômicos, o que possibilitou a convergência de uma grande diversidade de atores com agendas distintas.

Aqueles encontros hemisféricos desempenharam um papel central na avaliação e reflexão sobre os conteúdos da proposta colonizadora da Alca, bem como na organização da mobilização na América Latina que, coordenada com vários governos da região, acabou enterrando o acordo. A derrota da Alca abriu, assim, uma década inédita na história do continente, marcada por avanços significativos na integração regional.

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