PSICANALISTA VERA IACONELLI, SOBRE OS MASSACRES NAS FAVELAS: “ESSES TRAUMAS NÃO SÃO FATOS ISOLADOS”
Vera Iaconelli alerta que massacres reforçam a sensação de desamparo coletivo e deixam marcas duradouras
Psicanalista Vera Iaconelli afirmou que o trauma da violência nas favelas se acumula historicamente e impede que a sociedade elabore o luto – Tomaz Silva/Agência Brasil
Segundo Iaconelli, a violência sistemática contra as populações periféricas e negras faz parte de um ciclo histórico de adoecimento. “Nós estamos falando de uma violência reiterada com as comunidades periféricas negras, e que parece que estão sempre pagando a mesma conta de uma sociedade que não enxerga a si mesma”, afirmou.
A psicanalista destacou o impacto profundo e duradouro sobre as crianças que crescem em territórios marcados por confrontos armados. “Elas se acostumam, naturalizam a experiência de violência, e aquilo faz parte da vida delas”, explicou. “São crianças que estão sempre alertas, têm o sono e a alimentação prejudicados. Um rojão que estoura, para elas, sempre pode ser uma bala. São crianças que sabem que podem morrer dentro de casa, assistindo televisão”, relatou.
Iaconelli observou que o estresse contínuo se traduz em doenças físicas e mentais ao longo da vida. “Vai cobrar em adoecimento, em depressões, em suicídios, em doenças psicossomáticas, em distúrbios de sono. Elas têm uma vida, mas é uma vida profundamente atravessada pela violência perene”, lamentou.
‘Não há luto do que não acabou’
Ao abordar o luto coletivo, a psicanalista destacou que as comunidades afetadas por chacinas têm o processo de elaboração interrompido pela ausência de reconhecimento social e institucional das perdas. “O luto é uma espécie de cicatrização psíquica. Ele implica em algumas condições: aquele evento tem que ter ficado no passado, ele não pode ser contínuo. Você não tem como fazer luto de uma coisa que não acabou”, esclareceu.
Ela acrescentou que o direito ao luto está ligado à dignidade das vítimas e ao reconhecimento público do ocorrido. “O que vemos é que todas essas questões são negadas a essas pessoas. Não é só a trágica perda de um ente querido, mas a forma como ignoramos”, apontou, comparando o apagamento atual à impunidade dos crimes da ditadura.
Uma sociedade adoecida
Iaconelli também chamou atenção para o fato de que a violência que atinge as favelas deveria comover toda a sociedade brasileira. Mas isso não acontece. “Hoje, todos os brasileiros têm que acordar um pouco envergonhados, com um pouco de luto ou muito de luto, porque é a nossa sociedade que está sofrendo tudo isso”, disse. “As comunidades não são alheias à cidade, são grandes bairros onde o governo não entra para oferecer asfalto, hospital, escola, luz elétrica e deixa esses locais ao Deus dará”, reforçou.
Para ela, a repetição de massacres é expressão de uma mentalidade vingativa, não de políticas de segurança pública eficazes. “O que parece nesse tipo de ação é uma grande vingança histórica, uma raiva, mas não tem nenhuma inteligência por trás. Quer dizer, não tem nenhuma investigação, não tem nenhuma operação que demonstre que as pessoas estão realmente querendo resolver o problema”, destacou.
Conservadorismo e banalização da violência
A psicanalista também analisou o contexto político que sustenta narrativas de ódio e extermínio. “O brasileiro é conservador, no geral, não é nada progressista, tem medo de mudanças. Isso nos representa. Precisamos olhar para isso com mais carinho”, indicou. Segundo ela, o avanço das redes sociais agrava ainda mais a banalização da violência. “As imagens de corpos amontoados se misturam ao cotidiano das pessoas. Isso te dessensibiliza”, alertou.
Por fim, Iaconelli defendeu que a sociedade e o Estado repensem a forma de lidar com a segurança pública e com a regulação das plataformas digitais. “Temos que entender esse problema e parar de atuar violentamente justamente porque não entende o que está em jogo nessas situações”, sugeriu.
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