QUINZE MILHÕES DE VENEZUELANOS JÁ SE INSCREVERAM PARA DEFENDER O PAÍS CONTRA AMEAÇAS DOS EUA, AFIRMOU EX-DIPLOMATA CARLOS RON

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ADESÃO VOLUNTÁRIA

Ele ressalta, no entanto, que o clima não é de pânico frente a possibilidade de agressão militar

Desde o fim de agosto, o Mar do Caribe, perto da costa da Venezuela, se tornou palco de tensão. Com intenso aparato militar, os Estados Unidos têm atacado embarcações que navegam águas internacionais. Pelo menos 27 pessoas foram mortas no que o presidente Donald Trump afirma se tratar de uma ação contra cartéis de droga, que ele classifica como organizações terroristas, e ainda acusa o presidente venezuelano Nicolás Maduro de ser chefe do narcotráfico.

Nada disso vem acompanhado de provas concretas e a Venezuela responde às agressões mobilizando militares nas fronteiras e armando a população para resistir a um possível avanço estadunidense. Mas Caracas entende que o objetivo de Washinton é derrubar o governo e instituir Maria Corina como nova chefe de Estado.

O BdF Entrevista ouviu o ex vice-chanceler e principal negociador do país nos Estados Unidos Carlos Ron que descreveu o clima na capital venezuelana como de “normalidade, porém cautela”. Explicou os planos de defesa do país e avaliou as chances de um ataque dos EUA. Leia abaixo:

Brasil de Fato – Como é que está o clima, a atmosfera aí em Caracas sob a luz dessas ameaças que vêm de Donald Trump?

Carlos Ron – O país está, por enquanto, sob normalidade. O clima na rua não é de tensão, as pessoas estão tentando ter uma vida normal, mesmo que todo mundo tenha uma consciência de que estamos sob um assédio dos Estados Unidos. Já faz 26 anos que esse processo político da Venezuela, sente hostilidade por parte dos Estados Unidos, e somos conscientes de que Estados Unidos têm um histórico de intervencionismo, de violência na América Latina. De invasões e ações militares.

Esperamos que isso não aconteça, mas se acontecer, a consciência do povo venezuelano é de resistir, defender o país. A vida, no entanto, não está entrando nessa lógica de pânico, que eu acho que é uma metodologia também dos Estados Unidos, da CIA, de criar uma operação psicológica para gerar desconforto na população. Isso não está acontecendo porque temos consciência do qual é o tipo de inimigo que estamos confrontando.

Há elementos para embasar a visão de que isso é uma grande ferramenta de pressão dos EUA. Por exemplo, a autorização “secreta” que a Casa Branca teria dado para a CIA operar dentro da Venezuela, mas que acabou vazando para os jornais. Levar ao Mar do Caribe enormes armamentos, como aviões B-52, usados para campanhas grandes de guerra, mas não para uma operação de mudança de governo. Isso indicaria se a possibilidade de os EUA quererem criar melhores condições para negociar. Você, que já foi negociador de Caracas em Washington, acredita que ainda há espaço para uma solução negociada?

Vamos ver cada parte disso que você falou. É verdade que estamos vendo uma mobilização, movimentação de armamento, barcos de guerra, aviões, mas também não é a primeira vez que isso acontece na história.

Inclusive vocês no Brasil, teve um episódio no ano 1964, muito similar a Operação Brother Sam, que foi uma tentativa dos Estados Unidos de intimidar a nação, o governo e de dar uma espécie de sinal verde para os militares agirem contra o presidente Goulart. Eu acredito que o que a gente está experimentando aqui é um tipo de mudança de regime, dessa estratégia dos Estados Unidos, que transfere armas visando que uma mudança parecida aconteça dentro das forças armadas venezuelanas. Acredito que o ideal para eles seria um golpe feito pela Venezuela, dessas próprias forças armadas da Venezuela, e não uma invasão.

Mas essa lógica não é realista. As forças armadas na Venezuela têm um posicionamento importante de defesa da Constituição, defesa do país, e não esta lógica de golpe. Agora, o Trump que nós estamos assistindo hoje em dia não é o Trump do primeiro governo.

O primeiro governo do Trump também teve umas tentativas, umas ações golpistas contra a Venezuela. Ele revelou que ele tinha desejos de que houvesse uma mudança de governo, mas teve outras pessoas dentro do gabinete do Trump, dentro da estrutura dos Estados Unidos, que não deixaram ele avançar com essa ideia, deram outras opções. Vocês podem ler nas memórias do secretário de Defesa daquele momento, que inclusive eles não tinham vontade de avançar com uma intervenção militar na Venezuela e que procuraram outras fórmulas, como aquelas acusações contra o presidente Maduro na tentativa de que isso gerasse pressão para a derrubada do presidente dentro da Venezuela.

Hoje em dia não acontece isso, o gabinete do Trump não coloca essas barreiras. É uma equipe que, pelo contrário, vai até além de Trump no desejo de querer derrubar o governo venezuelano. O secretário de Estado, Marco Rubio, construiu sua carreira política com ataques à Cuba, à Venezuela e agora está fechando os caminhos diplomáticos e tentando promover essa mudança de regime.

Mas não é uma ação iminente. Acho que o primeiro objetivo deles ainda é tentar criar um caos dentro do país antes de que chegue ao ponto de invasão.

Não dá para separar a premiação da María Corina com o Nobel da Paz, na semana passada, do que está acontecendo. Como o prêmio para alguém que já pediu mais sanções e intervenção militar estrangeira – o oposto do que se imagina de um vencedor do prêmio – foi recebida aí na Venezuela?

Isso faz parte de um processo de mudança de regime, o governo Trump está utilizando o pretexto da luta contra as drogas para justificar toda essa pressão que está colocando na Venezuela. Quando você vê que a María Corina Machado, que já é uma figura muito desprestigiada aqui dentro da Venezuela, recebe esse prêmio, tudo se encaixa no plano de mudança de regime. É uma operação psicológica para colocar medo nas pessoas, pressionar a crise interna, nomear uma pessoa como liderança que poderia ser o substituto do presidente Maduro caso houvesse uma queda do governo. Eles estão criando condições para isso.

E você falou muito certo. Uma pessoa que não tem um perfil da paz, pelo contrário, talvez seja uma das pessoas na oposição venezuelana que tenha sido das mais destrutivas para o tema do diálogo nacional, as pessoas que têm questionado os processos eleitorais, o sistema eleitoral. Não questionou o resultado, mas a democracia inteira, todo o processo eleitoral, pediu que não se dialogasse com o governo. Pediu para os Estados Unidos colocarem sanções, pressão de todo tipo, inclusive militar.

É uma pessoa que faz essas ações, inclusive que tem um histórico de relacionamento com o sionismo. Dias atrás ela cumprimentou Netanyahu pela política que ele está levando à frente. Como imaginar que uma pessoa que está apoiando o genocídio palestino mereça um prêmio da paz, a não ser dentro de uma lógica de colocar uma mudança de regime na Venezuela, colocando-a na frente de um novo governo?

O quanto ela é representativa da oposição? Há forças políticas na Venezuela que se opõem ao bolivarianismo, mas ainda assim não se alinham ao imperialismo? Defendem posições republicanas?

María Corina, que recebeu o Prêmio Nobel da Paz. é aliada a Donald Trump e já defendeu intervenção militar na Venezuela. | Federico Parra/AFP

Com certeza. Quando você vê os resultados eleitorais das últimas eleições da Assembleia Nacional, você vê que os distintos grupos políticos da oposição, teve um grupo que conseguiu votação ainda maior do que esse grupo vinculado com o extremismo da María Corina Machado. Há líderes da oposição que têm criticado essa tentativa de Trump de fazer ações contra o país, contra a Venezuela, essa movimentação militar tem sido criticada.

Inclusive, houve um Conselho Nacional para a Paz e a Soberania que foi criado nas últimas semanas como um método de defesa do país e que tem um chamado de toda a sociedade venezuelana, de pessoas vinculadas com esportes, com empresários, a mídia, distintos setores da população venezuelana, onde já tem participado o principal governador da oposição, digo principal porque foi quem recebeu mais votos na última eleição de governadores e é abertamente da oposição, não é uma pessoa que tem nenhum tipo de aliança com o governo.

Tem partidos da oposição históricos como a Acção Democrática, contrário ao processo bolivariano, mas que agora estão todos acompanhando esse sentimento de não querer uma intervenção militar no país, de denunciar essa operação no Caribe como violência que não pode ser aceita. Tem uma porção importante da oposição que, mesmo com as diferenças políticas nas outras áreas da vida pública, está em contra do intervencionismo.

Importante pontuar que os Estados Unidos justificam mandar milhares de soldados, aviões, navios, helicópteros, marines para o Caribe, alegando estar combatendo o narcotráfico. Mas dados mostram que quase 90% da cocaína que vai da América do Sul para os Estados Unidos não vai pelo Oceano Atlântico, o Mar do Caribe, onde está a Venezuela. Vai pelo Pacífico. A Venezuela não tem costa no Pacífico. E como essa ligação foi vista dentro da Venezuela? Os venezuelanos entenderam que era um disparate, um absurdo esse tipo de alegação?

Todo mundo entende com muita clareza que isso aqui é uma operação para pressionar para uma mudança de governo. Não faz sentido falar disso aqui como uma operação antidroga num país que não tem cultivos de droga, da folha de coca, não tem laboratórios para a produção da cocaína. O presidente Trump fala também de fentanil, mesmo que isso nunca tem sido produzido nessa área.

O que mais preocupa a gente aqui é o que está acontecendo com esses barcos que têm sido atacados pelos Estados Unidos. Há pescadores aqui da Venezuela que não foram mortos como os outros, mas detidos por pessoal militar dos Estados Unidos e hostilizados por mais de oito horas.

Temos essa percepção de que não é um lugar seguro mais estar no Mar Caribe. O pior é que os Estados Unidos ali estão agindo com violência ao direito internacional, não tem devido processo, não é como que os barcos estão sendo detidos para interrogar o pessoal que está aí, para ver qual é a carga que eles têm. Não, eles estão tomando uma decisão aérea de que esses navios que estão atravessando o mar são narcotraficantes e aí estão atacando de maneira ilegal.

Inclusive, a narrativa de que são terroristas venezuelanos, que são narcotraficantes venezuelanos está sendo questionada, porque nem se sabe quem é que foi atingido. Tem casos de pessoas agora, nos últimos dias, que são pessoas que eram de Trinidad e Tobago, pessoas de Colômbia, de Equador, ou seja, que nem são venezuelanos para falar que faz parte de uma operação de narcotráfico desde a Venezuela. Essa tentativa política de atacar o governo venezuelano está sendo acompanhada por assassinatos. A própria ONU [Organização das Nações Unidas] está afirmando.

Existe alguma movimentação da Venezuela junto à ONU para tentar reverter essa situação, buscar ainda uma saída diplomática, ajuda de outros países, levar o assunto ao Conselho de Segurança?

embaixador da Venezuela nas Nações Unidas foi ao Conselho de Segurança, houve já uma primeira audiência sobre o tema, onde foi resposta foi essa denúncia. Na terça (21), especialistas das Nações Unidas condenaram a posição dos EUA com relatórios sobre temas como ordem internacional democrática, direitos humanos do terrorismo, execuções extrajudiciais.

Eles condenaram essas operações encobertas contra a Venezuela, o impacto humanitário negativo, o risco que representa a escalada regional com respeito ao direito internacional e à Carta da ONU. O direito internacional está reagindo. Inclusive, dentro dos Estados Unidos, tem grupos de advogados criticando essa política do Trump, porque viola as leis estadunidenses e internacionais.

O cenário diplomático é difícil, porque o governo Trump fechou a comunicação apesar de o presidente Maduro ter enviado uma carta no início do mês passado, falando de dialogo. É importante falar que o presidente Maduro sempre teve a vontade de dialogar com a oposição venezuelana e os Estados Unidos, mas que não depende dele.

É importante ver como será a reação da população dentro dos Estados Unidos, a pressão interna. Vários congressistas, senadores estão pedindo parar essa operação, porque, sendo que já está se tornando como uma espécie de guerra, é necessário, dentro das leis dos Estados Unidos, que o Congresso aprove qualquer conflito, qualquer intervenção militar desse tipo.

Há muito desconforto com essa política do Trump, inclusive no movimento Maga [Make America Great Again, ou Torne a América Grande Novamente], aquele movimento que acompanha o Trump, historicamente tem se posicionado contra as intervenções militares indefinidas em outros países. É portanto uma combinação de forças: vontade do diálogo diplomático, o questionamento dentro dos Estados Unidos, a pressão dos organismos internacionais como a ONU, podem contribuir para o fim dessa hostilidade no Caribe.

A tática de blefar para finalmente negociar estando em melhores situações é uma característica do Trump desde o seu primeiro mandato. Você acha que isso pode estar acontecendo agora de novo?

Acho difícil. O que está no fundo de toda essa situação é que Estados Unidos estão perdendo influência internacional frente a potências como a China, como a Rússia e é essencial que retomem controle sobre a América Latina do ponto de vista de recursos, até não ter governos contrariando a posição de Washington internacionalmente.

Tem pressão no resto da região. Tem uma nova intervenção militar no Haiti. No Brasil colocaram sanções contra o STF [Supremo Tribunal Federal] por uma decisão contra Bolsonaro, um assunto interno brasileiro. Expulsaram o presidente Petro da Assembleia Geral das Nações Unidas. Falaram que queriam incorporar Canadá nos Estados Unidos, a Groenlândia…

Quando você vê o cúmulo de todas as ações dos Estados Unidos contra o continente nesse ano, a gente já pode entender que faz parte dessa estratégia de recuperar a influência na região. E que o problema é que Venezuela, assim como Cuba, que colocaram também de novo na lista de países promotores do terrorismo, o que é um absurdo.

Venezuela e Cuba são países que estão se colocando muito mais firmemente em contra da política exterior dos Estados Unidos. Eles têm relacionamento importante com países como a China, a Rússia, o Irã, um desafio a essa estratégia de domínio estadunidense. Por isso que é difícil pensar em diálogo.

Esse governo do Trump já fez um ataque militar contra o Irã. Um ataque muito perigoso, inclusive, por causa da possibilidade de escalar o conflito na região. Portanto, estamos cautelosos. Sem pânico, mas cautela.

Integrantes da Milícia Nacional Bolivariana recebem documentos de venezuelanos para alistamento voluntário | Juan BARRETO / AFP

Qual o status das Forças Armadas da Venezuela nesse momento, para reagir a uma possível invasão, um ataque? O Exército tem cerca de 300 mil homens. Estão sendo ainda recrutados voluntários. Como isso está acontecendo?

Não é um recrutamento no senso clássico de de forçar uma pessoa, mas é totalmente voluntário. Na primeira rodada, oito milhões de venezuelanos se voluntariam para integrar as forças. Atualmente, este número é de cerca de 15 milhões de pessoas que se inscreveram para integrar esse corpo de reserva que chamamos de milícia, acionada caso tenhamos que enfrentar uma ameaça externa.

O Exército venezuelano também trocaram a tecnologia militar dos EUA pela de outros países, para reduzir a dependência. A história de nosso país é de paz, 200 anos de paz. Então é uma população que deseja paz, mas está preparada para defender a nação.

Essas pessoas não pensam em defender Maduro, mas na defesa do país, da família. Os problemas internos são resolvidos pelos venezuelanos segundo as leis, as normas. Uma intervenção de outro país é inaceitável.

Como é o treinamento desses milhões de pessoas?

São vários, de locais distintos do país, treinamentos aos finais de semana, sobre como usar armamentos. Mas há várias possibilidades de ser útil em outras tarefas, como medicina, logística etc. Realmente é bonita essa união, o quanto uma ameaça externa ajuda a unir a a população.

Os venezuelanos esperam mais do governo Lula nessa questão? um posicionamento mais firme, declarações mais duras?

Acho que as declarações por enquanto têm sido importantes, falar que as decisões para a Venezuela são feitas na Venezuela e que uma intervenção militar não é aceitável. Se a situação piorar, é importante que todos, não só Lula mas todos os presidentes da região tenham um pronunciamento firme de rejeitar intervenção dos Estados Unidos.

Por isso é importante que a América Latina olhe para si própria como bloco unido para enfrentar os desafios do mundo, os problemas econômicos e ambientais. Temos motivos para isso, lutas em comum. Mas Estados Unidos sempre vão procurar essa divisão para manter o domínio sobre o resto do continente.

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