Assim como inventou um conceito de Deus e de Natureza à sua imagem e semelhança, o homem também estabeleceu relações com os objetos do mundo a partir de si: a antropomorfização. Ver o mundo a partir da ótica das paixões humanas, e atribuir o que lhe pertence a outrem.

Com raras exceções, como Esopo, cuja pedagogia fabulística permite a exposição das paixões a partir da imagem animal/objetos cotidianos, sem no entanto desterritoriaizá-las do plano das relações entre os humanos, os animais – melhor, o conceito antropomorfizado dos animais – têm, para o homem, principalmente na relação da moral de classe e as relações da patologia emocional familiar, uma função de escamoteamento destas patologias: é um sintoma.

Os irmãos-clones KLB (Kiko, Bruno e Leandro) ameaçam o IBAMA: “Se eles morrerem, o bicho vai pegar!”. Referem-se a dois papagaios, cuja posse é da família Scornavacca há pelo menos 20 anos. A família promete fazer “o impossível” para reaver os animais, que foram resgatados pelo órgão federal e serão devolvidos às matas.

Os irmãos-clones estão sofrendo pela falta dos papagaios. Não desconfiam que a relação emocional com os animais não é correspondida pelos emplumados: os animais não precisam do amor contingente do ser humano. Os irmãos-clones falam saudosos do canto e das falações dos papagaios: não sabem o que é um ritornelo, e que os animais não precisam de linguagem, pois se comunicam. Entre eles, não com os homens. Os irmãos-clone acreditam que os papagaios lhes pertencem por direito natural, já que não foram eles quem tirou os animais da natureza. Lógica do carrasco, que tortura e mata, mas que dorme tranqüilo porque apenas cumpriu ordens.

“FARINHA POUCA, MEU PIRÃO PRIMEIRO”

O enunciado que salta da rebeldia xuxeada (melhor seria dizer KLBiada) dos irmãos-clones é a da moral de classe. A que segrega valores e estabelece hierarquias de acordo com a ordem do capital. A mesma moral da dor e do ressentimento, que faz com que o humano, demasiado humano seja a doença do mundo. Os mesmos irmãos-clones KLB que agora protestam contra o IBAMA do governo Lula e choram a perda dos espectros-sintomas que escamoteavam a dor e a repressão familiar, não se eximiram em tecer comentários a-críticos à gestão da saúde no governo Lula e a suposta malversação da verba da CPMF, quando o pai deles organizou um show de apoio à FIESP, que fez campanha pelo fim do imposto. K, L e B nunca pisaram num hospital público, e provavelmente não sabem que a gestão da saúde é de responsabilidade dos Estados e Municípios, motivo pelo qual o Rio de Janeiro e Manaus, por exemplo, enfrentam epidemias de dengue enquanto outros Estados investiram mais racionalmente seus recursos. O pai deles e a FIESP sabiam, e tinham outros interesses a motivar o fim da CPMF.

Mas Kito e Juliano (os nomes dos papagaios) não foram os únicos membros da família Scornavacca que tiveram seus nomes estampados nos noticiários por atividades ilegais: recentemente, segundo fontes, o pai dos irmãos-clones também foi envolvido em episódios ilícitos, mesmo sem ser verde e emplumado. Foi um dos indiciados na Operação Pirita, da Polícia Federal, que investiga uma quadrilha que aplicava golpes em investidores internacionais. Ainda segundo notícias, a casa onde moram os irmãos-clones e seus papagaios teria sido adquirida com dólares também ilegais. Dificuldades em lidar com a lei passou, neste caso, de pai para filhos. No caso do pai, moralmente. No dos filhos, intelectualmente: são incapazes de compreender que a lei protege os animais dos maltratos visíveis e invisíveis a que são submetidos num ambiente urbano.

O choro dos irmãos-clones pelos papagaios perdidos remete ao personagem XXX, do romance O Estrangeiro, de Camus. Reage à sordidez do mundo e da moral de classe a que se submete maltratando e torturando seu cachorro, sem romper a cadeia de culto à dor e à imobilidade. Um dia, com a fuga do cão, fica desesperado e chora, desalentado. Os animais domésticos dentro das trincheiras dos conflitos familiares tem o papel de depositários do ódio que não se pode devotar aos amados. Amarás ao próximo como a ti mesmo.

Com a libertação de Kito e Juliano do cárcere, a quem os irmãos-clones KLB irão amar?

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