CINCO RAZÕES PARA OS BRASILEIROS AMANTES DA PAZ ENTRE OS POVOS DEFENDEREM A VENEZUELA
afinsophia 24/12/2025 0
AMÉRICA LATINA
- PORTO ALEGRE (RS)
- CARLA FERREIRA
Escreveu um sábio chinês que quando a política e a cultura obstruem o desenvolvimento material, as mudanças políticas e culturais na sociedade tornam-se decisivas. É chegada a hora de as culturas políticas do Brasil e da Venezuela, tão diversas e ricas, compreenderem-se entre si para que a América Latina comece a desobstruir os caminhos que podem levar a um futuro melhor. Nesse artigo, elencamos cinco razões pelas quais é muito importante para os brasileiros amantes da paz defenderem a Venezuela da violência unilateral e injustificada do governo Donald Trump.
A primeira razão é essencialmente política. A história venezuelana do primeiro quarto do século XXI está marcada por mais de vinte sufrágios, entre eleições para o executivo, legislativo e referendos, que reiteraram e reconduziram o projeto que busca saldar a dívida social do país. Porém, esse projeto eleito encontra dificuldades extraordinárias para se efetivar. A causa principal reside no fato de que o resultado eleitoral não é respeitado pela oposição.
A Venezuela experimentou ao longo desses anos uma campanha midiática sistemática de deslegitimação das instituições, com a produção massiva de notícias falsas, ataque aos órgãos eleitorais, um golpe de Estado fracassado (2002), atos violentos de rua, tentativa de assassinato de presidentes eleitos (como tentaram contra Chávez e contra Maduro), sabotagem na infraestrutura e na estatal do petróleo, especulação com gêneros alimentícios, sequestro de bens nacionais no exterior e bloqueio. Tudo isso se sucede de forma avassaladora causando enormes prejuízos econômicos, sociais e humanos ao país.
Tanta violência perpetrada por interesses poderosos que articulam transnacionais do petróleo e o Estado militarmente mais poderoso do mundo não pode ser apoiada pelos brasileiros amantes da paz entre os povos. Ainda mais depois de havermos vivenciado o ataque à Petrobras pela Lava-jato, o golpe de 2016, o 8 de Janeiro de 2023 e o Plano Punhal Verde Amarelo e o “tarifaço” de Trump de 2025.
A segunda razão está relacionada a aspectos jurídicos fundamentais. A criação arbitrária do termo “narcoterrorista” no léxico da política externa estadunidense representa um risco severo ao princípio da não-intervenção, um dos pilares do Direito Internacional. O jargão de narcoterrorismo não possui uma definição legal ou aceita em tratados internacionais, pois unifica em um termo dois crimes de natureza diversa. “Narcotráfico”, com motivação essencialmente econômica, visando o lucro; e “terrorismo”, com motivações políticas, ideológicas, religiosas ou étnicas, para provocar terror social e instabilidade institucional.
No caso da Venezuela, após o fracasso de todas as estratégias de intervenção para mudança de regime, agora o presidente Nicolás Maduro foi classificado como “narcoterrorista”. Além de alvo de sanções da Lei Magnitsky, essa classificação entrega ao presidente Donald Trump uma “permissão para matar” o presidente do país sul-americano. Será mesmo que um tom mais cordial do presidente Nicolás Maduro poderia evitar essa sanha que anima a política imperialista estadunidense?
A escalada de ingerência contra um país vizinho e fronteiriço não pode ser ignorada pelos brasileiros amantes da paz entre os povos. Especialmente, depois que demonstramos nosso repúdio quando algo similar ocorreu contra o ministro Alexandre de Morais e outras autoridades brasileiras. Aqui deve prevalecer uma interpretação universalista, não particularista desta medida para o Brasil.
A terceira razão diz respeito à soberania, com destaque para o aspecto militar. Os recentes ataques letais estadunidenses a embarcações ligadas à Venezuela e apreensões de petroleiros como o Centuries e o Skipper, além do navio de bandeira panamenha que se dirigia a Venezuela para carregar petróleo para a China neste fim de semana, promovendo um bloqueio naval de fato, deve ser considerado como uso ilegal da força, uma vez que não foram autorizados pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Em um dos casos com imagens divulgadas foi confirmada a prática do “double tap”, um segundo ataque contra sobrevivente de naufrágio, o que é considerado crime de guerra pelo Direito Internacional Humanitário.
Podem os brasileiros amantes da paz entre os povos e podem as forças armadas do nosso país acreditarem sinceramente que essa é uma querela entre iguais? Ou, uma simulação de conflito, como sugerido aqui e acolá, concernindo a interesses puramente de disputa interna em cada um dos países? Não, não podem. É evidente tratar-se de uma ação coercitiva unilateral que ameaça a segurança da América do Sul, muito além do espaço aéreo e das fronteiras terrestres e marítimas venezuelanas. Precisamos enfrentar com a seriedade necessária um assunto grave como esse.
A quarta razão a referir é diplomática e geopolítica. O ataque do governo estadunidense não se restringe à Venezuela. Só neste ano de 2025, o intervencionismo na região sob a forma de ingerência eleitoral ou de tarifas abusivas atingiu mais diretamente o Brasil, a Argentina, a Bolívia, o Chile, o Equador, o México e Honduras, para citar os mais evidentes. E tem o BRICS como um de seus alvos principais, haja vista a diversificação da corrente de comércio e dos investimentos que tem ocorrido no continente nos últimos quinze anos. Ao mesmo tempo, a Venezuela é sem dúvida, depois de Cuba, o país da região que sofreu mais sanções porque mais derrotas impôs ao imperialismo.
Os ataques sistemáticos à Venezuela desde 2002 levaram os dirigentes do país a diversificarem seus parceiros comerciais para substituir os Estados Unidos como destino de suas exportações. Nesse mesmo período, a China partiu de uma base muito pequena para responder atualmente por aproximadamente 80% das exportações totais de petróleo venezuelano. Uma mudança forçada de regime na Venezuela atingiria o coração da luta de resistência e por independência política na América Latina, com consequências sociais e econômicas dramáticas e instabilidade institucional inaudita. Trata-se de uma ameaça que nos afeta diretamente a todos e todas. Por isso, os brasileiros amantes da paz entre os povos não podem ficar imobilizados.
É preciso que as lideranças à frente das instituições de Estado e de governo atuem diligentemente para dissuadir tais práticas, denunciando-as, atuando junto aos organismos internacionais e tomando medidas concretas de apoio à Venezuela. Também a sociedade civil organizada, os partidos políticos que prezam a democracia e os movimentos sociais devem se posicionar firmemente em defesa da soberania venezuelana. Aqui não basta pragmatismo. É preciso uma “política externa altiva e ativa”, para usar uma expressão cara ao Ministro Celso Amorim.
Finalmente, a quinta razão. Última a aparecer no elenco, mas a primeira em beleza. Aquela que faz pulsar a solidariedade internacional dos povos. Apesar das diferenças marcantes entre a cultura política nacional venezuelana e brasileira, cujas raízes históricas remontam aos processos de independência colonial e a forma como cada uma das formações se vinculou ao mercado mundial capitalista, o fato é que nunca os brasileiros tiveram condições objetivas tão propícias para compreender melhor a Venezuela nesta encruzilhada da história.
Compreender o outro é a base de uma empatia verdadeira. Tudo o que foi mencionado acima contribui para compartilhar angústia e dor e conferir alma viva aos povos irmãos latino-americanos. O fato de Trump haver explicitado o conteúdo de sua política externa para qualquer leigo do Brasil ou da Venezuela entender, especialmente quando impõe sanções unilaterais a todos, faz da inação ou da conivência um gesto de cinismo descarado. As atitudes de Maria Corina Machado e Eduardo Bolsonaro, suplicando intervenção dos EUA em seus respectivos países, são como um tapa na cara de quem aqui vive e trabalha, constrói o país e luta por um futuro melhor.
Por essa e por todas as razões mencionadas, os brasileiros amantes da paz devem, sim, defender ativamente a Venezuela dos ataques do governo Donald Trump. Esse é um daqueles temas divisores de águas na história. Errar nesses momentos pode representar um preço altíssimo a pagar logo ali adiante.
*Carla Fererira é historiadora, jornalista e professora da UFRJ.