FILÓSOFO JOSÉ ALCIMAR: FILOSOFIA: DO CONFORTO DA IGNORÂNCIA E DA BOA CONSCIÊNCIA DA ESTUPIDEZ À EXIGÊNCIA DE REVOLUCIONAR A RAZÃO

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FILOSOFIA: DO CONFORTO DA IGNORÂNCIA E DA BOA CONSCIÊNCIA DA ESTUPIDEZ À EXIGÊNCIA DE REVOLUCIONAR A RAZÃO

José Alcimar de Oliveira*

Todo aquele que se dedica à filosofia quer viver para a verdade. Vá para onde for, aconteça-lhe o que acontecer (…), está sempre interrogando. As coisas, as pessoas e ele próprio devem tornar-se claros a seus olhos. Ele não se afasta de seu contato. Ao contrário, a ele se expõe. E prefere ser desgraçado em sua busca da verdade a ser feliz na ilusão (Karl Jaspers).

           

 01. Onde há pensamento, no sentidodialético e ontológico do conceito, há filosofia. A filosofia da práxis reconhece que a origem e o devir do pensamento têm por fundamento um movimento dialético que se inicia na prática, vai desta ao pensamento e resulta num patamar superior da prática, sempre mais qualificada porque carregada de pensamento. Sob esse movimento dialético é que se pode concluir que não existe nada mais prático do que a teoria (pensamento). Mais do que reaprender a ver o mundo, como quer a fenomenologia de Merleau-Ponty, a verdadeira filosofia é transformar o mundo. Revolucionar o mundo. É esse o sentido revolucionário do conceito de pensamento. ComLênin, o mais militante entre os teóricos da filosofia da práxis, temos o reconhecimento dialético de que sem teoria (razão, pensamento)revolucionária não há prática revolucionária.

 

 02. A filosofia perde sua razão dialética de ser quando se distancia ou se aparta da objetivação teórico-prática dos conceitos de razão e revolução e da necessária implicação dialética entre ambos. Vem de Hegel e Marx a tese dessaimplicação dialética. Bem a propósito dessa tese, Razão e Revolução é o título de um denso livro de Marcuse, cujo subtítulo é Hegel e o Advento da Teoria Social. Revolução pensada como um imperativo ontológico da razão. Igual implicação dialética há entre filosofia e democracia que, segundo Habermas (mesmo com dificuldade de ver o mundo com os olhos do materialismo histórico e dialético), têm uma origem comum e uma não existe sem a outra. Mesmo que o olho, como afirma Goethe, deva sua existência à luz, é necessário ao espírito discernir que a estupidez também se apresenta sob disfarce de luz.

           

 03. Esse princípio dialético fundamental da filosofia da práxis, de que a revolução é da essência mesma da razão, é uma exigência que decorre do devir e da objetivação do ser humano como ser social. Apartada de seu fim, que é a revolução, a razão se converte em mediação instrumental:  forma deformada a que o sistema do capital reduziu a conformou a faculdade racional. Com Kant, Hegel, e tanto mais com Marx, ratificada pela Teoria Crítica, e com as devidas distinções da base de compreensão de cada uma dessas vertentes teóricas, a revolução impõe-se como imperativo ético e político da razão. Ser racional em sentido próprio é ser revolucionário. E é sob a filosofia do materialismo histórico e dialético que a equação razão-revolução vai encontrar sua objetivação superior. Minada e prisioneira da   razão instrumental capitalista, a razão é expropriada de sua teleologia revolucionária.

 

 04. O que mais cabe a quem pensa é pensar contra o pensamento. Não pensa quem não pensa por si. Não é tarefa fácil discernir, no ato de pensar, se de fato pensamos ou estão pensando por nós. A filosofia passa pelo caminho da recusa.E deve converter a resposta feita em pergunta que desconcerta. O mundo do ser social é habitado e assaltado por muitas respostas. Em muitos casos,respostas estúpidas, porque carentes de pergunta. Aderir a respostas convencionais e não raro estúpidas é próprio de quem se recusa a perguntar ou duvidar. É preciso recuperar a filosofia perguntante da criança. A bem ou maldizer, quando diminui a atitude de duvidar, quando pouco se pergunta, aumenta o coeficiente de respostas estúpidas. Faz má filosofia e mal ao pensamento filosófico quem subestima o poder da estupidez. Uma cognição tragada pela estupidez dificilmente se deixa tocar pelo pensamento filosófico.

 

05. Filosofia, em seu sentido verdadeiro, amplo e necessário, não é apanágio de formação especializada e institucionalmente regulada. Em sentido gramsciano, todo ser humano é filósofo. Há e se produz filosofia por fora da regulação e da ordem. Uma filosofia regulada seria uma contraditio in verbis. Filosofia combina com democratização da formação, o que implica o acesso às mediações necessárias para o desenvolvimento do pensar. A filosofia, assim, pode ser tomada por um tipo de medida epistêmica e política da densidade da vida democrática, o que jamais seria possível na democracia burguesa, um conceito em si mesmo antinômico, haja vista que em sua literalidade o conceito indica o poder do povo e não da burguesia. Desde as conquistas do iluminismo temos por certo que impedir o progresso do pensamento, essa determinação original da nossa espécie, segundo Kant, é um crime contra anatureza humana.

 

 06. Quem se dedica à filosofia em seu sentido socrático, livre e não acadêmico, imune às medidas do produtivismo vazio, doente e adoecedor, que hoje nas universidades alarga o espaço de um tipo refinado de delinquência (a delinquência acadêmica, conforme o saudoso e irredento Tragtenberg), não se submete jamais à lattescracia, síndrome que só desmerece e avilta o nome do grande físico (e filósofo) brasileiro César Lattes. Democrata e inimigo da ditadura, Lattes chegou a batizar seu cachorro com o nome de Costa e Silva, o segundo presidente da ditadura empresarial-militar instalada com o golpe de 1964. Em minha condição de teólogo heterodoxo e sem cátedra, considero esta a única “injustiça” (canina) cometida por esse grande e impenitente físico, injustiçado e tão pouco conhecido, sobretudo no mundo do saber acadêmico. César Lattes, Presente!

 

07. Vem de Nietzsche uma pertinente e instigante definição de quem se dedica à filosofia: um tipo de médico da civilização, alguém que de forma lídima, livre e epicurista, indica e vive a filosofia como um caminho para a saúde da alma. Marx, que não era formado em filosofia e nunca foi docente no sentido acadêmico, escreveu seu trabalho de conclusão de curso (o TCC de hoje) sob genial inspiração do filósofo materialista Epicuro. Um TCC, se possível fosse comparar, que deixaria em vergonha boa parte de teses doutorais, pomposamente defendidas em nossas academias. O aumento do número de letrados, como escreve Milton Santos, não redunda em aumento do número de intelectuais. Potencializada pelas tecnologias digitais, a produção da ignorância e da desinformação se configura hoje como a mercadoria com maior retorno financeiro e ideológico do mundo capitalista.

 

08. A quem pensa a filosofia de forma altaneira e livre dos fechados aposentos dos especialistas (muitos acometidos de corcundas, para citar Nietzsche – um capacitista avant la lettre? –  ao escrever que todo especialista tem a sua), sempre abre e jamais fecha ou dificulta o caminho do pensamento, sobretudo em tempos de apologia da estupidez e de razão carente de pensamento. Sem filosofia torna-se mais penoso o trabalho de subtrair à estupidez a sua boa consciência, como escreve Nietzsche.  Permanece oportuno o desafio proposto por Heidegger de que à filosofia (como sabedoria) cabe ser um tipo de guarda da ratio (razão). Heideggeriano não sou, mas há verdade nessa indicação do autor de Ser e Tempo. E para muito espanto, ainda afirmou: a ciência não pensa. Guardar e cuidar da ratio é afirmar, como práxis, a exigência de revolução contida no conceito, coisa que nunca esteve no horizonte do renomado pensador do ser.  

 

*Professor de Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo heterodoxo e sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA-Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões (em Manacapuru – AM) e Jaguaribe (em Jaguaruana – CE). Em Manaus, AM, novembro de 2025.

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