“A ARTE NÃO ESTÁ DISSOCIADA DA VIDA”, AFIRMOU O IDEALIZADOR DA MOSTRA DE PANKARARU DE MÚSICA
Evento reúne cultura e tradição no sertão pernambucano, neste fim de semana
Além da música, a literatura e a dança também são algumas das diversas manifestações culturais presentes no evento – Divulgação
Além da música, a literatura e a dança também são algumas das diversas manifestações culturais presentes no evento que, neste ano, homenageia Dona Dida, referência do povo Pankararu reconhecida como patrimônio vivo do Estado de Pernambuco que morreu em junho de 2025, aos 73 anos.
A iniciativa é organizada pelo músico Gean Ramos Pankararu e pelo instituto Aió Conexões Pankararu e acontece na aldeia Bem Querer de Cima, na cidade de Jatobá. Ao Conversa Bem Viver, o idealizador explica que o objetivo da mostra é “unir caminhos”.
“O nosso corpo tem diversos membros. E ele só funciona quando estão juntos. A gente não funciona desmembrado. É assim que entendemos que é importante a humanidade caminhar, com literatura, com música, com arte, com dança, com todas as manifestações artísticas, para que a arte não esteja dissociada da nossa vida, porque ela não está”, destaca Gean Ramos Pankararu.
Outro destaque da mostra é a promoção de intercâmbio entre artistas indígenas e não indígenas, mas, como reforça o organizador, diferente de grandes festivais, a centralidade está na troca cultural e não na econômica. Por meio da música, o evento também fala sobre racismo, emergência climática, desigualdades e outros temas importantes para o sertão e para todo o Brasil.
“A mostra acontece dentro do bioma Caatinga, o bioma originalmente mais brasileiro e mais nosso. E, para nós, como indígena, a relação com essa natureza, com o bioma Caatinga, é diferente, porque transcende apenas a convivência. É uma relação também espiritual. É a partir da nossa natureza, dos recursos naturais, que nós nos relacionamos espiritualmente também. Então, a nossa prática em si já é um exemplo de resistência”, explica Gean Ramos Pankararu.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato – Qual é a importância da Mostra Pankararu de Música para o território?
Gean Ramos Pankararu – A mostra, que já está em sua sexta edição, é algo muito significativo para o nosso, sempre unindo caminhos para uma nova e melhor forma de viver e de conviver. Integrando música, cinema, teatro, dança e literatura. É assim que a gente acredita que as coisas precisam caminhar.
Na verdade, o nosso corpo tem diversos membros. E ele só funciona quando estão juntos. A gente não funciona desmembrado. É assim que a gente entende que é importante a humanidade caminhar, caminhar com literatura, com música, com arte, com dança, com todas as manifestações artísticas, para que a arte não esteja dissociada da nossa vida, porque ela não está.
Realizar um evento dentro de um território já é algo muito delicado. Para nós, aqui, as dificuldades são imensas, por uma questão de distância, por uma questão de formação mesmo, porque não temos ainda uma grande vertente de produtores, de pessoas que trabalham com curadoria, para suprir todas as demandas. É um modo de festejar, mas a gente não chama de festival, porque a gente não se enquadra muito dentro dessa visão.
A mostra tem um significado tão grande porque nós a realizamos pensando em criar um palco para que nós mesmos pudéssemos nos expressar. Nós cuidamos e fazemos a curadoria da mostra da forma como nós gostaríamos de ser tratados também em outros festivais. É para dar vazão à criação e à criatividade do território, seja ela na área da arte, do artesanato, da música, da dança, etc.
Se a gente for comparar, por exemplo, da primeira mostra Pankararu até agora, percebemos que houve um despertar no território, para valorizar ainda mais aquilo que nós já temos aqui, e que também surgiram outras manifestações.
Uma das coisas mais interessantes da Mostra Pankararu é que também é o momento de culminância do Projeto Interpretar, que nós realizamos durante o ano inteiro em todas as escolas. Incluímos as crianças no processo criativo, em uma imersão de cultura tradicional e de cultura contemporânea ou de culturas do mundo.
Nós tratamos sobre temas relevantes como racismo, meio ambiente, manutenção cultural e literatura. Tudo isso tendo como estandarte a música. Porém, a gente acredita que a música não é apenas a emissão dos sons ou o conjunto de notas ou a poesia.
Entendemos também a interface da música. O que leva a gente a construir uma música? Como é que uma música nasce? Ela nasce a partir da vivência, da experiência, do sentimento ou da relação que é construída que leva a uma inspiração ou motivação.
Para nós, tem sido muito gratificante ver que a mostra tem o seu caráter pedagógico e formativo. Nós estamos caminhando, trilhando esse caminho. Não sabemos aonde vai dar, mas o que podemos dizer, a partir da nossa experiência, da nossa relação, da nossa construção, é que é algo muito sólido.
Quem foi a Dona Dida, homenageada pela mostra?
Dona Dida, antes de tudo, sempre foi um patrimônio cultural do nosso povo. Nós já a reconhecíamos, porque ela era peça fundamental para a realização da nossa cultura, da nossa tradição, com o compromisso com a manutenção da nossa cultura.
Há três anos atrás ela foi reconhecida como patrimônio vivo do Estado de Pernambuco, o que foi um reconhecimento tardio e externo. Isso nos leva a uma reflexão muito grande. Porque as pessoas que assumem esse compromisso se abdicam de grandes coisas da vida para servir à cultura e à tradição como um modo de vida.
Dona Dida nos deixou este ano e foi uma perda irreparável. Não há nada mais merecido do que dedicar esta edição da Mostra Pankararu de Música a ela, que é símbolo de força, de resistência, de dedicação, de abdicação e de entrega para o fortalecimento de uma cultura milenar, onde se cultiva o repasse dos saberes, a partir da oralidade.
Essa homenagem é também para perpetuar o nome dela na história do nosso povo e para dizer às novas gerações a importância de reconhecer a sabedoria e dedicação dos mais velhos.
Há também um aspecto na programação da mostra de intercâmbio cultural com artistas indígenas e não indígenas. Como é essa integração?
A mostra nasceu com uma força muito grande. Nós não entregamos a resistência da mostra a nenhum nome artístico. Por exemplo, nunca lançamos primeiro os artistas para falarem sobre o propósito. Primeiro, falamos do propósito com todos os artistas.
Cada artista que vem participar aqui precisa compreender o que é essa relação, essa construção. Os festivais lançam logo um ano antes os nomes dos artistas, para vender bastante. Estamos na sexta edição e a construção da relação com os artistas de intercâmbio é muito interessante, porque não temos artista principal. A gente tem interação.
A interação entre os artistas é também um lugar de compartilhamento, no qual a gente se sente inserido, incluído. Depois, eu acho que isso resulta no som, no palco, esse palco que foi construído pelas mãos de um artesão local, todo feito com muita generosidade.
A mostra dialoga com as urgências ambientais e climáticas sofridas pelo semiárido brasileiro diante das mudanças climáticas?
A mostra acontece dentro do bioma Caatinga, o bioma originalmente mais brasileiro e mais nosso. E, para nós, como indígena, a relação com essa natureza, com o bioma Caatinga, é diferente, porque transcende apenas a convivência. É uma relação também espiritual. É a partir da nossa natureza, dos recursos naturais, que nós nos relacionamos espiritualmente também.
Então, a nossa prática em si já é um exemplo de relação de resistência da natureza. Eu acho que nós somos atravessados, impactados, por diversos projetos que foram realizados dentro do nosso território, a exemplo da construção da usina hidrelétrica de Itaparica.
A gente tem aqui empreendimentos de energias renováveis e existe todo um conselho e uma discussão muito ampla em cima disso, em busca de reparações ambientais e trabalhando cada vez mais também a consciência dos guerreiros e guerreiras do território, para que a gente, de alguma forma, consiga proteger o território dessas intervenções. É a partir desse espaço natural que a gente tira a nossa vida cultural e espiritual.
Qual é o sonho que te move, ao olhar para o futuro da Mostra Pankararu de Música?
Eu vejo florescer, vejo perpetuar, a educação, a partir da música. Eu vejo se perpetuar a importância da valorização da oralidade. A música é oral. A música no papel não tem sentimento nenhum. Quando você olha para um papel, ele não solta som, ele não solta mensagens, ele não solta arrepio.
Então, a música é oral e, aqui, a gente pratica isso. Eu acredito que essa é uma das formas de educar, de aprender por meio da escuta, de se construir por meio da escuta. Eu acho que o que nos move, para estarmos nesta sexta edição da Mostra Pankararu, é, antes de tudo, a força da nossa espiritualidade, da nossa relação com o nosso território e de acreditar que nós podemos contribuir para um território melhor, um estado melhor e um Brasil melhor.
Buscamos o reconhecimento da importância da equidade, da igualdade, da verdade e da relação humana sincera e respeitosa, promovendo saúde e educação. Eu acho que o que nos move é pensar que estamos contribuindo para um mundo melhor.
Como participar da mostra?
Ainda dá tempo de chegar por aqui. Nós estamos a 450 km da capital Recife e você pode chegar por aqui, pegar a programação da noite de sexta, a programação durante o dia e a noite de sábado, e também a de domingo.
No Instagram da Mostra Pankararu de Música tem todos os nossos contatos. Temos um site também, onde você vai encontrar informações sobre todo o processo.