“PODER CONTAR A PRÓPRIA HISTÓRIA É UMA DAS COISAS MAIS CURATIVAS QUE TEM”, AFIRMOU A PSICANALISTA, VERA IACONELLI SOBRE NOVO LIVRO

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Em ‘Análise’, autora traz reflexões sobre o próprio processo psicanalítico envolvendo suas relações familiares

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As relações familiares são o pano de fundo para Análise, o novo livro de Vera Iaconelli. Com um tom memorialista e autobiográfico, a psicanalista convida o leitor a refletir sobre as heranças ou marcas deixadas pelas relações com pais, mães, avós, filhos e outros parentes. Muitas vezes, marcas e heranças atravessadas por violências e agressões, como é o caso de Iaconelli.

Nesta edição do Conversa Bem Viver, programa do Brasil de Fato, Vera Iaconelli aborda como foi o seu processo de construção da obra, que foge da narrativa acadêmica e se debruça na necessidade da autora de pôr na escrita o seu processo pessoal analítico, envolvendo a própria experiência familiar.

Segundo a psicanalista, há um caráter curativo em poder contar a própria história e refletir sobre as heranças familiares que temos. Nesse sentido, o processo analítico pode ser uma ferramenta potente de descobertas diante de inúmeras memórias.

“A família é um encontro complicado entre pessoas diferentes, com interesses diferentes, num moedor de carne do patriarcado, dentro de uma lógica burguesa, de cada um por si,  é uma estrutura muito complicada.  Então poder falar disso, me ajudou a elaborar muitas coisas, ajudou meus pacientes a elaborarem muitas coisas e teve esse caráter curativo”, ressalta Iaconelli.

Ao mesmo tempo, Vera não coloca a análise como único caminho viável para refletir sobre essas experiências familiares.

“Qualquer caminho, seja psicanálise, seja arte, seja psicoterapia, seja o que for, que te permita fazer as pazes com você mesmo e reconhecer a tua humanidade e negociar com os ideais que a gente tem de si, que nos perseguem, que a psicanálise vai chamar de superego, é um bom caminho pra gente viver um pouco melhor.”

Confira entrevista na íntegra:

Para quem lê as suas obras, acompanha o quanto você discute a psicanálise, mas trazendo bastante dos seus fatos pessoais, da história familiar muito intensa, muito profunda. Mas esse livro quebrou essas barreiras e você realmente mergulhou na sua própria história para trazer ela ao público. Conta de onde veio talvez essa coragem, esse ímpeto para publicar um novo livro. 

Eu venho me envolvendo e me encantando com a escrita já faz algum tempo. E  escrita no espaço público, a partir dos artigos da Folha, que foram ficando cada vez mais autorais. Mesmo quando eu faço o Manifesto Antimaternalista, tem algo muito pessoal ali, muito autoral. Não escrevo uma coisa acadêmica, isso é uma um traço meu, é o que eu consigo fazer, então é o que eu gosto de fazer comigo. Dá prazer fazer quando eu estou fora das obrigações acadêmicas.

Então eu fui indo nesse processo de escrita cada vez com mais prazer. Mas aí, ao longo da minha análise, do meu processo pessoal analítico, eu senti uma necessidade mesmo de pôr em palavras a minha experiência familiar. Tem restos de análise sobre os quais eu preciso trabalhar na forma de escrita.

Porque para a psicanálise tem uma diferença entre o processo da oralidade, você deitar no divã e falar ou falar para outras pessoas, não precisa ser necessariamente para analista, e o processo da escrita. O papel não aceita qualquer coisa. Você tem ideias mirabolantes, mas na hora que você põe no papel, o papel rejeita.

A coisa não sai do jeito que você está pensando e ele te obriga a repensar, te obriga a justificar, te obriga a concatenar e isso foi profundamente analítico para mim. E aí eu senti que era mais da ordem de uma necessidade, sabe? De elaborar as minhas questões familiares, os restos da minha análise, que não estão finalizados, porque nunca estarão, mas dar mais uma volta a partir da escrita. E isso foi muito muito analítico para mim. Teve um efeito analítico muito importante.

O livro discorre muito sobre a psicanálise dentro de todo o espectro histórico dele, que é uma característica das suas obras. Você desnuda Freud, Lacan, mostrando que por mais que sejam grandes nomes que constituíram toda essa área de conhecimento, eles estão aí para serem criticados como homens brancos europeus muito diferentes da nossa realidade cotidiana.

E aí eu fico pensando o quanto esse livro é um chamamento para que as pessoas, de fato, façam análise, ou na verdade é um livro que realmente dialoga com as pessoas dentro da própria psicanálise, das pessoas que já têm um pouco mais de contato com a análise. Qual desses dois públicos te parecem que são mais potenciais leitores para a obra? 

Eu acho tão interessante você falar em desnudar esses homens, gostei dessa expressão, porque na verdade a psicanálise começa na escuta de mulheres ditas histéricas e são 125 anos de homens falando de mulheres.

As mulheres só entram na conversa um tempo depois, para as psicanalistas que insistiram em serem ouvidas, trouxeram aportes muito importantes, já feministas logo de cara, algumas foram rechaçadas, e sempre os homens falando da sexualidade feminina, do psiquismo feminismo, de como que se estrutura a feminilidade. É curioso isso.

E quando a gente vai falar dos homens, é como se estivéssemos entrando num território que não nos diz respeito, afinal não somos homens. Então, eu acho muito legal ser tida como alguém que ajuda a desnudar. As mulheres estão excessivamente desnudadas pelos olhares dos homens. Eu acho que eu sempre penso assim: Se o Lacan e o Freud estivessem aqui hoje, será que eles estariam falando exatamente a mesma coisa? Não, eram dois homens geniais, homens do seu tempo, mas eles estariam à altura do tempo da gente, sim.

Eles estariam atravessados pelas críticas da interseccionalidade, atravessados pelas críticas do feminismo. Eles não estariam reproduzindo ipsis litteris o que eles falavam há 100, 50 anos. E eu acho que, fazendo jus ao legado deles, é botá-los para trabalhar, é criticar o texto, é trazer ele para a atualidade. Não adianta ficar falando: “Ai, o Freud era misógino”. Tá, mas quem que não era?

E dentro dessa misoginia dele teve um monte de genialidades e um monte de ferramentas para a gente se libertar, para as mulheres se libertarem. Um monte de ferramentas que são usadas pelo feminismo, pela luta contra a transfobia. Então eu tento trazer a psicanálise para a atualidade. Eu não estou sozinha, tem várias pessoas fazendo isso também. E desmistificar essas figuras naquilo que elas têm de anacrônico.

Acho super importante, e tentar transformar psicanálise numa coisa menos idealizada. Para o bem e para o mal, porque ora as pessoas acham que ela é a panaceia, não concordo, e ora acham que ela é uma bobagem. Não é nenhuma das duas coisas. É uma ferramenta, uma forma de tratamento, é uma teoria, ela tem essa potência, que não é infinita. Temos outros saberes com quem a gente tem que conversar. Tem sociologia, tem antropologia, tem filosofia, tem história, tem arte. Ela é um saber entre outros, mas ela tem um recado para dar. Não é uma bobagem.

Foi realmente muito difícil a construção dentro da sua família, por um pai tão agressivo, que era violento, talvez não necessariamente fisicamente com toda família, mas pelas palavras, pelos gestos, pelas maneiras de agir. Uma mãe que acabava ficando acuada no meio dessa agressão toda e os filhos tentando lidar com tudo isso, seis filhos.

Todo um debate muito complexo, eu vou citar aqui um fragmento do livro: “Ter uma família é por definição transmitir a bagagem de uma geração para outra. […] Negar é a pior forma de lidar com essa herança, que só poderá ser elaborada na medida que pudermos encará-la. Ninguém tem família ficha limpa. Se puxarmos a capivara, sempre encontraremos esqueletos no armário”. 

Eu queria te ouvir porque essa fala é muito forte perante a toda essa bagagem do livro que você traz de todos os impactos que foi crescer nesse meio, mas você em nenhum momento renega essa herança.

Eu queria que você discorresse sobre essa necessidade que a gente tem de conseguir olhar para os nossos familiares, para as nossas memórias e entender que aquilo nos pertence e faz parte do que somos, por mais que a gente discorde completamente dos nossos pais, dos nossos avós, dessas pessoas que nos constituíram e acabaram fazendo da gente quem é.

São 30 anos de clínica ouvindo as pessoas e ouvindo cenas familiares de todo tipo, mas claro que a gente não leva os melhores momentos para análise. Muito frequentemente a gente leva as coisas mais difíceis para analisar.

A gente sempre vê no processo analítico que a vítima tem vergonha de contar as coisas que ela passou. Isso é uma inversão muito perigosa porque a vítima tem vergonha de contar que foi vítima de violência doméstica, que foi vítima e não algoz.  Quais são as fantasias que estão em jogo aí? Mas a vítima nunca deveria ter vergonha de contar. E isso foi uma coisa que ao longo do meu processo analítico e da escuta dessas pessoas, foi uma coisa muito importante, a pessoa poder falar: “Meu pai tá preso, meu pai fez isso, a minha mãe fez aquilo”. Essa é minha história, não existe uma história que não seja humanamente digna. Poder contar a própria história é uma das coisas mais curativas que tem.

Isso me causou tanto impacto ao longo desses anos de análise, e quando eu falo de análise, eu digo de análise como analista e de análise como analisante. O analisante, porque ele de paciente, ele não tem nada, ele é super atuante.

Só que eu fiquei tão interessada por esse tema que tem o podcast no qual eu pergunto sobre as famílias das pessoas. Se você perguntar para os seus amigos, eles também vão contar os perrengues deles e, no fim, a gente vai ver que poucas pessoas tiveram uma família ideal.

Porque a família é um encontro complicado entre pessoas diferentes, com interesses diferentes, num moedor de carne do patriarcado, dentro de uma lógica burguesa, do cada um por si, ela é uma estrutura muito complicada. Então poder falar disso me ajudou a elaborar muitas coisas, ajudou meus pacientes a elaborarem muitas coisas e teve esse caráter curativo.

Eu nunca penso nisso como uma super exposição, porque essa história que eu conto da minha família, ela é uma versão. Eu começo o livro dizendo: “Gente, isso aqui é uma versão”. Se você perguntar para os meus irmãos, eles tiveram pais e mães totalmente distintos dos meus.

Então nenhum de nós teve uma percepção muito fácil da nossa infância e adolescência, enfim, mas cada um, por razões distintas, isso é muito lindo, porque isso está, inclusive no Lacan, quando ele fala que a verdade tem estrutura de ficção. A verdade mais preciosa minha, que é a minha verdade, ela não só é uma ficção que eu faço do que eu vivi, como ao longo do tempo ela muda.

Você conta aquela história de jeitos diferentes. Isso é o processo analítico. Então depois de ter ouvido tantas histórias, eu entendi que a minha história era uma entre outras. Nem melhor, nem pior e nem digna de nenhum tipo de constrangimento ou de vergonha, ou de vitimismo.

E que eu podia contar isso, claro, guardada as devidas proporções de exposição de cada pessoa. E vou responder ainda que tudo ali [no livro] é verdade, mas essa verdade com estrutura de ficção. Então algumas cenas não foram exatamente assim, mas elas tiveram exatamente esse teor de descoberta, mesmo que borradas na memória foi ali que eu descobri o meu sadismo, que eu descobri o meu masoquismo, que eu descobri a minha sexualidade.

Sobre essa relação com o seu pai, me parece que ela vai se transformando ao longo do livro, à medida que a sua vida vai passando. É um livro de memórias e ele tem esse caráter realmente cronológico, claro, que ele vai sendo intercortado por muitas acontecimentos que vão para frente, vão para trás, como qualquer boa literatura, mas me parece que existe alguma cronologia e não só pela questão da idade, pelo acontecimento, mas por essa relação com o teu pai.

Como a gente precisa lidar com essas figuras que em algum momento da nossa vida, a gente abomina, mas em outros momentos a gente vai começando a ver elas como parte de nós. Eu queria que você falasse se de fato existia um processo de perdoar mesmo todos os males que o seu pai proporcionou não só para ti, mas para sua família como um todo.

Esse é um processo que a gente precisa instigar nas pessoas, de alguma forma perdoar esses algozes nossos? Ou também não é um conselho universal que a gente precisa falar para as pessoas que estão nos ouvindo e tem muitas durezas e muitas mágoas para compartilhar dessa família que é tão difícil de se ter e se criar?

Olha, existem situações que não são perdoáveis? Acho que sim, mas não era o caso do meu pai. Eu acho que o mais importante numa análise é você se perdoar. Eu sei que é um clichê horroroso de falar. Porque eu tenho que entender que esse pai com as limitações dele fez um monte de cagada, com o perdão da palavra, mas que isso não dizia respeito a mim. Diz respeito a ele. É uma separação.

O processo é mais no sentido de separar o que diz respeito a cada um. Que ele ficasse com os problemas dele e eu ficasse com os meus, que eu também tinha, obviamente, como todos nós. Também tinha os meus envolvimentos.

Então quando eu comecei a escrever, eu estava mais interessada em escrever sobre a minha mãe. Mas como eu te disse, o papel não aceita tudo, ele rejeita, devolve, e aí no fim eu me vi escrevendo sobre esse pai.

E eu percebi que o saldo final da minha relação com o meu pai é mais positivo do que negativo, porque apesar dele ser uma pessoa enlouquecida, alcoólatra, eticamente bem questionável, uma pessoa bem problemática, alguma coisa do afeto, alguma coisa do amor por mim, alguma coisa da aposta de que eu podia levar uma vida melhor, ele transmitiu de algum jeito. Eu capturei isso dele.

E falando assim, é difícil explicar isso, porque é mais um processo interno do que de qualquer coisa que tenha de fato acontecido na minha relação com ele. É uma coisa de tentar deixar ficar. É como se a gente herdasse todas essas coisas dos pais e pudesse abrir esse baú e falar: “Bom, e com o quê eu quero ficar? Com o quê eu não quero ficar? E o quê, querendo ou não, eu vou ter que ficar?”

Então hoje, eu lembro do alívio de quando ele morreu, porque quando a pessoa morre, você fica com uma possibilidade de fazer melhor essa seleção, porque a pessoa para de causar na tua vida. A violência não continua. Então você pode falar: “Bom, está aqui, o que que ficou?” Ficou esse enigma dos livros, ficou uma hipersensibilidade para o sofrimento do outro.

Ficou uma hipersensibilidade até para as coisas que dão um colorido na vida. Ficou um amor. E eu nem me ponho no lugar de alguém que perdoa ou não perdoa. Nem saberia te dizer se é por aí. Vou ficar te devendo essa questão. Acho que a palavra perdão tem um caráter talvez de arrogância para mim.

Não, eu acho que eu compreendo melhor o que ele fez, não justifico, não desculpo, que talvez seja uma outra forma de dizer de não perdoar, mas assumo a minha parte nisso aí e me separo dele, tentando ficar só com as coisas que não me prejudicam.

Essa última frase que eu vou trazer aqui, que está no início do livro, “A arte vai aonde a psicanálise não consegue chegar”, me parece que a sua decisão de escrever sobre tudo isso foi porque realmente depois de quatro analistas ao longo da sua vida, a maneira que você melhor conseguiu sintetizar todas essas dores e expressá-las foi por meio da arte, no caso da literatura, da escrita, que não deixa de ser tudo isso e cada um pode encontrar essa forma de se expressar, de dialogar, não necessariamente se expressando em forma de arte, mas consumindo, se entregando para ela. Eu queria que você explicasse um pouquinho mais essa frase. Me parece um chamamento mesmo. 

Lacan vai dizer que tem um ponto a partir do qual a análise não alcança mais e que a existência humana precisa da arte, ele vai falar da poesia porque a gente não consegue nomear a nossa existência. E eu concordo com isso.

Qualquer caminho, seja psicanálise, seja arte, seja psicoterapia, seja o que for, que te permita fazer as pazes com você mesmo e reconhecer a tua humanidade e negociar com os ideais que a gente tem de si, que nos perseguem, que a psicanálise vai chamar de superego, é um bom caminho pra gente viver um pouco melhor.

Uma vida que tá condenada ao fim, quer dizer, uma vida que em si mesmo não é fácil, Freud vai falar: “O fim de uma análise é a infelicidade ordinária”. O que dá pra gente viver é isso, porque a gente sabe que vai morrer, porque a gente perde os nossos entes queridos, porque a vida não é um bolinho. Então, se a gente puder pelo menos fazer as pazes consigo mesmo, a gente consegue enfrentar esse peso que é a vida e essa alegria que é a vida de um jeito mais bacana.

Eu acho que a análise tenta fazer com que as pessoas entrem em bons termos consigo mesmas. Mas você pode encontrar isso de outras formas.

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