DENISE ASSIS: COM A DEVIDA VÊNIA, DELAÇÃO CAIU COMO LUVA NO MEIO MILITAR

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Comandos militares não engolem o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas também não querem saber de Bolsonaro

Mauro Cid (Foto: Geraldo Magela/Agência Senado )

O jornalista Elio Gaspari recebeu e publicou, como é dever do ofício, a primeira delação premiada, feita em 28/08/2023, pelo tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante-de-ordem de Jair Bolsonaro e, praticamente, seus olhos e ouvidos durante os quatro anos em que passou no governo. Como todos sabemos, Gaspari tem inúmeras fontes na área militar e uma proximidade com o tema que o levou a escrever a história recente em cinco volumes. Portanto, o que publica ninguém duvida. É de origem altamente confiável. Experiente e respeitado, não é de se supor que se deixaria usar. Daí, delação vazada nas mãos e uma manchete nas redes. (Não que ele precise de cliques). Acontece que, depois dessa, muitas outas delações passaram pelos teclados da Polícia Federal, contrapondo falação e provas. E isso muda muita coisa. Porém, do ponto de vista dos militares, a delação veio a calhar.

Ao começar a falar, o tenente-coronel talvez ainda estivesse imbuído de um dogma da caserna, onde “delatar” é virar um ser desprezível nas fileiras. Ainda mais quando se trata de superiores. No meio desse caminho, no entanto, surge um pai – o de Cid -, refletido em um estojo de joias surrupiadas do patrimônio público, sendo negociadas em Miami, nos EUA. E das nuvens do seu laptop ressurgem mensagens de Gabriela Cid, a esposa, trocando palavras de ordem de teor altamente golpista, com a “família militar”. No vai e vem dos seus depoimentos, Mauro Cid deve ter avaliado que convinha soltar informações gradualmente, a fim de salvar não apenas a própria pele, mas também a dos seus.

Estava desesperado. Chegou a correr risco de botar tudo a perder, quando em liberdade provisória, ao telefone (supõem-se com o general Eduardo Villa Boas, um dos mentores dos golpes recentes), deixou escapar seus medos e revolta. Chamado mais uma vez a falar por horas seguidas, na frente da PF e de Alexandre de Moraes, bambeou, desmaiou e delatou. Mais tranquilo nas outras oito falas, deu detalhes preciosos, como o que revelou que o ex-candidato a vice na chapa de Bolsonaro, o general Walter Braga Netto, entregou em uma sacola de vinho, cem mil reais para custear a ida dos kids pretos a Brasília, abrir caminho para o deslocamento pelos prédios públicos, da horda golpista, terrorista, verde-e-amarela.

Esse é um ponto fundamental, mas que não está contido no primeiro relato tímido e titubeante de Cid. Talvez por isso, Gaspari tenha precisado minimizar o papel de Braga Netto na conspiração e tentativa de golpe contra o Estado de Direito, em oito de janeiro. Longe de tirar o mérito do material publicado, é preciso dizer que fatos, dados e provas se avolumaram depois dessa primeira delação. 

Prestes a entregar a denúncia ao ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, à frente do caudaloso processo do golpe – só o relatório da PF, elaborado com a ajuda das informações de Cid tem 884 páginas -, o procurador Paulo Gonet ainda não se pronunciou. Com isso, o ministro Moraes tampouco descortinou todo o conteúdo da delação, o que seria um presente para as defesas dos 40 indiciados, que poderiam buscar argumentos para desarmá-la.

Não apenas. Embora o discurso para fora dos Comandos seja o de que “é preciso separar o joio do trigo e punir logo os culpados, os que de fato participaram”, dentro do Alto Comando do Exército reina um verdadeiro inconformismo quanto a ver os seus pares sentados no banco dos réus à espera de sentenças que passarão, mole, dos 25 anos de condenação. Principalmente por serem dois ex-ministros da Defesa e ex-comandantes. Generais quatro estrelas. Daí, com a devida vênia, do ponto de vista do timing e da conveniência, a revelação de Gaspari desse material, hoje, um domingo (26/01), foi perfeita para os militares.  

Na revelação de seis páginas, segundo o texto de Gaspari, a conspiração se constitui de três grupos. O primeiro, queria que Bolsonaro mandasse as pessoas para casa e fosse liderar a oposição. (Elegante…). Nesse, estavam: Flávio Bolsonaro (o senador que precisa ser salvo, pois é calmo e arrumadinho e pode ser útil, para 2026). Ciro Nogueira (um líder que não deve se comprometer. É importante para desembolar o jogo pelo centro). Embora devesse estar entre os radicais, nesse grupo está também o ex-advogado-geral da União, Bruno Bianco, o que demonstrou ansiedade para a execução do plano, na reunião golpista, dentro do Planalto, em 5 de junho de 2022. E, mais que importante – porque nesse caso ficou patente que é real -, a presença do brigadeiro Batista Júnior, da Força Aérea. Ao que tudo indica, de fato, um legalista.

Ainda em seu texto, com base na delação de Cid, como foi publicado (Folha e O Globo), havia um segundo grupo, ainda mais moderado (vejam a importância de estar nesse grupo!!!) os que pregavam que “nada poderia ser feito diante do resultado das eleições”. E que uma virada de mesa “representaria um regime militar por mais 20, 30, anos”. Temiam, segundo Gaspari, que “radicais levassem Bolsonaro a assinar ‘uma doideira’”. Integrantes: generais Marcos Freire Gomes (então comandante do Exército, que insiste em vesti-lo com a capa de herói); Paulo Sérgio Nogueira (fartamente citado em situações para lá de radicais, visto na mesma reunião de junho esbravejando quanto à integridade das urnas eletrônicas e empenhado em buscar provas nesse sentido, como mostrou o relatório da PF, posterior a essa primeira delação). 

E, ainda, pasmem, no grupinho dos mega moderados, está o general Júlio Arruda, sucessor de Gomes como comandante, do Exército. Aquele mesmo, que perfilou blindados com a sua artilharia voltada para a tropa de PMs-DF, comandada pelo interventor Ricardo Capelli, a fim de evitar que prendessem e conduzissem nos ônibus rumo ao presídio da Papuda, D. Cidinha, a esposa do general Eduardo Villas Boas, sua filha, Tici Villas Boas e, quem sabe? Talvez Gabriela Cid. Nada mais natural, já que o acampamento, como atestou depois com toda calma, o ministro da Defesa, José Múcio, era composto de familiares dos que estavam dentro dos quartéis. Todos unidos na tentativa de golpe!

Entre os moderados havia, ainda – uma excelente oportunidade para a PF sanar aquela dúvida: quem custeou? -, o empresário do agronegócio Paulo Junqueira, “que financiou a viagem do presidente para os EUA”. No terceiro grupo, os radicais. E, como tal, tinha dois braços – informação de Gaspari -, “Um queria achar provas de fraude nas eleições. Nele estavam o major da reserva, Angelo Denicoli (um kid preto) e o senador Carlos Heinze (PP) – que dispensa descrições. 

O ex-comandante e ex-ministro da Defesa, Paulo Sergio, se encaixaria melhor nesse grupo, mas como se trata do texto da primeira delação de Mauro Cid, não ficaria bem enfiar um general do seu quilate aqui, no meio dos radicais do punhal verde e amarelo, com faca nos dentes e sangue nos olhos, não é mesmo? Daí a conveniência (e a inconveniência, do ponto de vista do processo), de vir a público, às vésperas da esperada denúncia de Paulo Gonet, apenas a primeira delação de Cid, quando, ainda tímido, ele não se arriscava a entregar, com veemência, os superiores em seus devidos escaninhos. A descrição desse outro grupo, o armado, não foi detalhado, mas de acordo com Gaspari, essa era a turma da fuzarca, a da “doideira”. 

Na melhor parte desse vazamento: quando Bolsonaro bota a mão na massa, aparece em alta função, às voltas com um “jurista”, (talvez Yves Gandra), para conversas que resultaram em um documento de várias páginas, mexido e remexido por Bolsonaro, o que deixa claro que estava metido na “doideira”, até a tampa. No documento, era um tal de prender Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Rodrigo Pacheco… A tal minuta que todo mundo viu, inclusive os comandantes militares, com direito a exibição em PowerPoint. 

Exultante por, finalmente, botar a sua tropa na rua, por um golpe, o almirante Almir Garnier (comandante da Marinha), logo se dispôs a ir atrás do trio elétrico! Mas queria a companhia de Freire Gomes, definido por Mauro Cid, como “meio termo”. Alô? Meio termo diante das regras constitucionais??? E, de acordo com a “delação” de Mauro Cid, publicada por Elio Gaspari, Gomes, sim, quase atinge a situação de herói, quando aparece dizendo que o golpe “resultaria num regime autoritário pelos próximos 30 anos”. Frase lapidar, para ser repetida nas aulas da AMAN. 

Sem generais, Bolsonaro recuou, conforme descrição de Cid. Ele que trabalhava com duas hipóteses: encontrar fraude na eleição ou ter apoio das Forças Armadas, recolheu armas. Ao seu lado, na “doideira”, estavam também: o ex-ministro Onyx Lorenzoni, o atual senador Jorge Seif (PL), o ex-minitro Gilson Machado (o da sanfona e do Turismo); o senador Magno Malta e o general Mário Fernandes, (o do plano do punhal verde e amarelo, o dos assassinatos). 

Vem agora, a cereja do bolo: no grupo dos radicalíssimos, estava D. Michelle Bolsonaro, além do filho e deputado, Eduardo Bolsonaro. Melhor impossível. Numa semana em que Esteve Bannon, o apontou como “plano B”, ou futuro presidente do Brasil, e Michelle apareceu numa pesquisa, quase parelha com o presidente Lula nas intenções de votos para presidente nas eleições de 2026, é muito confortável que estejam apontados como radicais e golpistas.

Como se sabe, os Comandos militares não engolem o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas também não querem saber de Bolsonaro, que os arrastou para a lama golpista, de volta ao Planalto (nem mesmo como eminência parda de um dos seus entes). Reviram os olhos diante da possibilidade de um militar bem arrumadinho, como por exemplo, Tarcísio de Freitas (ex-Instituto Militar de Engenharia – IME), na presidência. E, de verdade, há medo das consequências do desfile de generais no banco dos réus, para a imagem das Forças Armadas. Perdem o sono só de pensar. Por isso, data vênia, a delação caiu como uma luva. 

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