“NOVA CLOROQUINA” DE BOLSONARO: FRAUDES E MORTES DESNECESSÁRIAS
afinsophia 09/06/2021 0Anunciada por Jair Bolsonaro em abril como a nova panaceia contra a Covid-19, a proxalutamida, cuja eficácia no combate à doença não passa de fake news, deve se tornar o estopim de um escândalo ainda mais hediondo que o da cruzada pelo uso da cloroquina e seus derivados a pretexto de “tratamento precoce”.
Os sinais se acumulam. O mais recente é o relatório sigiloso que a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) enviará ao Ministério Público Federal (MPF), à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e ao Conselho Federal de Medicina (CFM). Nele, pedirá a abertura de inquérito para investigar fraude e falhas graves no ensaio clínico realizado com pacientes no Amazonas para avalizar o bloqueador hormonal desenvolvido na China. O MP do estado já abriu procedimento investigativo.
Responsável pela análise e aprovação de estudos científicos no Brasil, a Conep prorrogou até a próxima semana o prazo para que os organizadores do estudo forneçam informações que justifiquem as aberrações encontradas. No entanto, segundo a jornalista Malu Gaspar em sua coluna no jornal ‘O Globo’, não se espera mudança significativa na situação, que seria bem pior do que já se suspeitava quando os resultados iniciais foram apresentados, em março.
Naquele momento, havia indícios de falhas graves, como a morte de um número alto de voluntários, que deveria ter levado à suspensão imediata da pesquisa. Mas exames mais apurados revelaram que todas as premissas do protocolo submetido ao conselho pelos pesquisadores foram descumpridas.
Os pesquisadores registraram o estudo como se fosse ocorrer em hospitais de Brasília, mas ele foi realizado em Manaus e outras cidades do estado. “Levaram o estudo por conta e risco para o Amazonas e distribuíram o remédio em uma série de hospitais do interior sem qualquer aprovação”, comentou um conselheiro da Conep à coluna.
O protocolo também previa testar a proxalutamida em menos de 300 pacientes com Covid moderada, mas os autores aplicaram a droga em 615 pacientes graves, sem comunicar à Conep. Quando submeteram os dados finais à comissão, em maio, informaram a ocorrência de “mais de 200 óbitos”, descumprindo norma que estabelece que mortes de voluntários devem ser comunicadas à comissão em até 24 horas.
“A impressão que a gente tem é a de que eles nem sabem quantos morreram”, descreveu à coluna um dos investigadores da Conep. “Parece que perderam absolutamente o controle da situação.”
Estudo foi fiscalizado pelos próprios autores
Os autores do ensaio clínico sequer forneceram a composição ou os pareceres do comitê independente que, em tese, deveria ter acompanhado os trabalhos. A suspeita na Conep é de que o estudo jamais tenha tido esse comitê independente.
Segundo o site ‘clinicaltrials.gov’, onde os dados da pesquisa foram registrados, o responsável pelo monitoramento foi Andy Goren, dono e presidente do laboratório norte-americano Applied Biology Inc, que financiou parte dos estudos no Brasil em parceria com a desenvolvedora chinesa da droga, Kintor Pharmaceutical Ltd. O conflito de interesses, na avaliação de um integrante da Conep, é “altamente irregular”.
O ensaio clínico foi realizado em Manaus entre 2 de fevereiro e 22 de março, e teve parte dos resultados divulgados numa entrevista coletiva já em 11 de março – antes mesmo da apresentação do resultado ao conselho de ética.
No dia 6 de fevereiro, o presidente do grupo empresarial amazonense de saúde Samel, Luís Alberto (Beto) Nicolau, anunciou ao portal ‘BNC Amazonas’ (veja o vídeo abaixo) que já testava havia uma semana o uso da proxalutamida em pacientes internados em hospitais da rede.
Veja a matéria do BNC Amazonas
Cadegiani, que aparece como pesquisador-chefe do estudo na plataforma da Conep, também chefiou o grupo que desenvolveu a metodologia usada pelo Ministério da Saúde no aplicativo TrateCov. O app foi baseado em um estudo publicado em 7 de janeiro de 2021, chamado ‘The AndroCoV Clinical Scoring for COVID-19 Diagnosis’ (O Escore Clínico AndroCov para Diagnóstico da Covid-19).
Outro norte-americano participou do estudo: John McCoy, vice-presidente da Applied Biology, especializada no desenvolvimento de medicamentos para pele e cabelo e baseada na Califórnia.
Entre os brasileiros, participaram o psicólogo Bruno Campello, a biomédica Rute Alves Pereira e Costa, o dermatologista Carlos Wambier e o infectologista Ricardo Zimerman, do Hospital da Brigada Militar de Porto Alegre.
Zimerman, Campello e Costa estavam entre os ao menos 11 médicos levados com dinheiro público para a “missão Manaus”, em 11 e 12 de janeiro, para o lançamento do TrateCov e para falar sobre o “tratamento precoce” em várias UBS. Segundo o Painel de Viagens do governo, o Ministério da Saúde gastou R$ 48,692.75 com diárias e passagens desses 11 médicos, no auge da crise de falta de oxigênio na cidade.
Dez dias depois do lançamento do aplicativo, sob críticas, o governo tirou o TrateCov do ar, alegando que um hacker tinha colocado o protótipo indevidamente no site do Ministério da Saúde. O MPF investiga o caso.
“Tratamento precoce” foi oferecido gratuitamente a doentes
Em 23 de fevereiro, o presidente e fundador do laboratório chinês Kintor Pharmaceutical Ltd, Tong Youzhi, comemorou, num anúncio enviado à Bolsa de Valores de Hong Kong, que havia demorado apenas três semanas para recrutar 588 pacientes de covid-19 em hospitais brasileiros, e que os testes iam bem. Imediatamente, o valor das ações do Kintor alcançou valores estratosféricos nas bolsas da Ásia.
A pesquisa sobre a proxalutamida, um antiandrogênico (bloqueador de testosterona) testado inicialmente pelo Kintor para tratamento de câncer de próstata, foi apresentada por “Beto” Nicolau e Flávio Cadegiani em entrevista coletiva num canal do Youtube, em 11 de março. Desde então, grupos bolsonaristas compartilham intensamente o vídeo em grupos de WhatsApp, classificando o remédio como “milagroso”.
Antes de defender a substância chinesa, Cadegiani publicou artigo, em outubro de 2020, sustentando que drogas como hidroxicloroquina, ivermectina e nitazoxanida (conhecida como “annita”) tinham eficácia no tratamento da Covid-19. O estudo também foi assinado por outros dois autores do estudo sobre a proxalutamida.
O sistema de pontuação para diagnóstico da covid-19 AndroCov tem esse nome porque foi um desdobramento de outras pesquisas feitas pelo grupo, que se propôs a analisar o efeito de antiandrogênicos na “profilaxia” ou no tratamento da covid-19. Não há comprovação científica de que esses medicamentos sejam eficazes nesses casos.
O estudo do escore usou dados de participantes de quatro pesquisas diferentes feitas pelo próprio grupo, incluindo testes com a proxalutamida, a espironolactona (um diurético) e a dutasterida (medicamento que trata aumento de próstata).
Em seu perfil no Instagram, Cadegiani publicou diversas imagens ao longo do ano passado convidando pessoas positivadas para a covid-19 a participar do estudo. “Não espere. Permita-se tratar dentro de um estudo clínico de qualidade e sem custo”, diz uma das imagens. “Medicamentos, exames e acompanhamento de forma gratuita”, diz outra. “Todos os pacientes incluídos no estudo irão receber o tratamento precoce”, prometia uma terceira. Esse tratamento padrão, no entanto, difere do registrado pela pesquisa na Conep.
Desgoverno Bolsonaro envolveu Anvisa e Fiocruz na fraude
Durante um almoço no Palácio do Planalto com o presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, e os então ministros Eduardo Pazuello e Ernesto Araújo, em 15 de março, Bolsonaro resolveu adotar a proxalutamida como sua “nova cloroquina”. Animado com a suposta eficácia de 92% apontada no estudo, foi divulgar as novas.
Numa live transmitida em oito de abril, o secretário nacional de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde, Helio Angotti, posou ao lado do chefe falando sobre a proxalutamida.
“Temos aí uma iniciativa da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) para levar material à Anvisa e submeter os dados, inclusive, pensar em uma pesquisa ampliada em fase 3, dentro dos parâmetros rigorosos da Anvisa, com toda a sua excelência técnica, até para obter uma autorização emergencial. O nosso objetivo é dar acesso o quanto antes à população brasileira”, disse Angotti.
Oftalmologista sem experiência epidemiológica e notório olavista, foi Angotti quem contratou Cadegiani para conduzir o ensaio clínico suspeito. Ele assumiu no ano passado a chefia da estratégica SCTIE, que, entre tantas tarefas, decide os remédios (exceto vacinas) a serem comprados pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Ao focar em remédios sem eficácia comprovada e se opor a máscaras e lockdowns, ele é apontado como responsável pela disseminação da variante P1, que surgiu ano passado em Manaus. Por isso, promotores federais no Amazonas o acusaram de improbidade administrativa, em um processo civil que pode resultar em multas ou perda do cargo.
“Angotti é a representação dessa agenda anticientífica e ideológica que ocupou o ministério e vai ganhando mais força”, disse à Reuters Adriano Massuda, que chefiou a SCTIE em 2015. “A ala ideológica do governo Bolsonaro continua dando as cartas no Ministério da Saúde, e agora com mais força”, acusou.
No dia 8 de maio, um acordo de confidencialidade foi assinado pelo vice-presidente da Fiocruz, Marco Aurelio Krieger, e a farmacêutica Kintor para preservar as informações relativas à parceria comercial internacional. Um plano de trabalho afirmava que em oito semanas seria possível ir do início do projeto à preparação e assinatura de contratos definitivos de licença, fornecimento e transferência de tecnologia. A farmacêutica garantiu ser capaz de produzir 100 milhões de comprimidos da droga a partir de julho.
Em 25 de maio, a Fiocruz enviou ao Ministério da Saúde uma atualização em relação às novas opções terapêuticas em avaliação para o tratamento da Covid-19. No ofício, em resposta a uma consulta da SCTIE, foram apresentadas as fichas técnicas da proxalutamida e dos antivirais favipiravir e monulpiravir.
Da Redação