FILÓSOFO JOSÉ ALCIMAR*: BRASIL NA ENCRUZILHADA: NÃO HÁ SALVAÇÃO FORA DA POLÍTICA

Por José Alcimar de Oliveira *
01. Não há outra forma honesta e estrutural de se combater as
desigualdades sociais senão por meio das mediações intelectuais e materiais
de que pode se instrumentalizar a política. Mas no Brasil, nessa República de
poucos, República que insiste em se manter sem cidadãos, quando a
confrontamos com os fundamentos ontológico-sociais do dever-ser da política
e do que seria a República, o que se verifica é que a política realmente
existente se apartou das necessidades sociais do povo e os políticos, não
poucos, reduziram a instância da representação política aos limites privatistas
da manutenção e ampliação de interesses fisiológicos. O parlamento funciona
como extensão dos negócios e negociatas da Casa Grande Senhorial, ou da
autocracia burguesa, segundo Florestan Fernandes. No Manifesto de 1848,
Engels e Marx já definiam o aparato executivo do Estado moderno como um
subalterno “comitê para administrar os negócios coletivos de toda a classe
burguesa”. O Estado é o chicote de que se utiliza o poder econômico para
manter o povo apassivado.
02. A política, reduzida à política eleitoral, consiste em submeter a
política ao sempre artificioso fisiologismo da política de baixa extração,
desidratada dos interesses coletivos e da promoção dos direitos fundamentais
de cidadania. A agenda efetiva se pauta pela naturalização das carências, e
quando estas se agudizam, convertem-se em objeto de enfrentamento
emergencial. O Brasil, hoje em marcha regressiva, já não fez parte do grupo
dos emergentes? O que significa emergir sem os fundamentos de um legado
institucional? Como tratar sob perspectiva emergencial problemas estruturais?
Que outro espaço civilizatório, senão o da política, da política como luta de
classes, pode ensejar as mediações de que necessita a classe que vive do
trabalho para enfrentar pela raiz a crise estrutural de que se nutre a República
burguesa?
03. Nesse circo emergencial, de espetáculo de profundo mau gosto e de
estética rasa, a tão aclamada regularidade da cronologia eleitoral, subdefinida
como “festa da democracia” serve apenas para repetir e aprofundar o círculo
vicioso da miséria política que domina a combalida institucionalidade da
República proclamada e programada para funcionar em densidade sub-
republicana. Sob o tempo curto de interesses menores a agenda política do País
oficial consiste em planejar para regredir. Parece que no Brasil o presente
sempre vive enredado pelo passado. Sempre atualiza a sentença marxiana do 18
de Brumário: a tradição das gerações mortas pesa de modo inexorável sobre o
cérebro dos vivos. Somente pela luta política, sem o que é impossível imprimir
conteúdo revolucionário ao tempo presente, será possível aos subalternizados
conjurar as forças regressivas do passado que não passa, que sufocam o tempo
presente e impedem a irrupção do futuro.
04. No Brasil o futuro é sempre protagonizado pelas forças do passado.
Os partidos, e rarefeitas são as exceções, são parte interessada e promotora
dessa anomalia a um só tempo temporal e política. A isso, e de forma
cirúrgica, Milton Santos definia pelo subestatuto de “País de deficientes
cívicos”. Ainda segundo Milton Santos, um País em que o aumento do número
de letrados – eu diria subletrados – implica a diminuição do número de
intelectuais. Terreno fértil para o cultivo da mediocridade e da geração
exponencial do semiculto, aquele que segundo Adorno vive do cultivo de si
mesmo sem si mesmo. Segue, por consequência, a construção do Estado de
Democracia Regressiva.
05. As promessas estruturais da política permanecem voluntária e
irremediavelmente travadas pelo voluntarismo das soluções emergenciais.
Afinal, é mais fácil mudar e multiplicar leis do que promover as
transformações requeridas pelos dilaceramentos sociais. Ensina a máxima
antiga que verba non mutant substantiam rei (as palavras não mudam a
substância das coisas). Em República de natureza verbosa, como a brasileira,
de discursos derramados, de compulsão legiferante, multiplicam-se atores
políticos de alta eficiência retórica e com soluções sempre na ponta da
língua. Multiplicam-se leis para iludir o povo com a ideia de que os artifícios
discursivos podem compensar carências reais.
06. O princípio dialético do dissenso e da necessária contradição, sem
o qual a política se converte em conchavo e acertos de compadrio, encontra
precário abrigo parlamentar nas instâncias legislativas. No reino da pós-
dialética o real e suas incontornáveis contradições ontológicas e sociais
cedem lugar ao espetáculo da pós-verdade. Sub-representado e objeto de
manobra das artimanhas demagógicas, o povo permanece alijado e
submetido ao mutismo e à impotência de sua revolta. Mas ninguém por
muito tempo pode conter as contradições reais. Bem o diz a sábia sentença:
com o tempo, a verdade aparece. Veritatem aperit dies. A verdade é filha do
tempo. Mesmo que dita de diferentes formas, a verdade é sempre una e só
tem uma face. A mentira necessita de muitos disfarces. Alegra-se o povo
quando a verdade e o real se abraçam. A verdade é o modo de ser do real.
07. A democracia dita parlamentar parece ter chegado ao limite.
Abdicou, inclusive com a conivência dos que fazem oposição (uma oposição
funcional ao sistema e presidida pelo inconformismo discursivo e
comodismo prático), dos dois princípios que moviam a limitada democracia
ateniense: a isonomia e a isegoria. República sem isonomia, porque a
maioria do povo continua desigual perante a lei. República carente de
isegoria, porque só uma restrita minoria tem direito ao uso político da
palavra. A ausência – na verdade é um programa – de isonomia e de isegoria
concorre para manter cativa a mente do povo. É necessário sabotar o
encontro entre teoria e povo. Quando ocorre esse encontro, bem o assiná-la
Marx, a teoria se converte em força material. E a justiça, tal o caracteriza
Brecht, torna-se o pão do povo.
08. Mesmo o conceito de povo – porque no Brasil falar em classe já
seria incidir demais no campo da projeção ideológica –, com a República a
completar 131 anos em 15 de novembro de 2020, ainda permanece um
conceito destituído de concretude ontológico-social. Conceito vazio e
manipulado pelos interesses da plutocracia. Não há direito à justiça sem
direito ao pão e às letras. Justiça, penso eu, implica relação de simbiose
entre intestino e encéfalo. A miséria desencefaliza e é sempre útil à
nanopolítica. A miséria sempre foi um instrumento mobilizado pelas classes
dominantes para conservar a ordem, reproduzir a dominação e apassivar as
potências de transformação. Para a autocracia burguesa é mais cômodo falar
em pobres, jamais em classe explorada. A naturalização da pobreza impede
o pobre de se reconhecer como classe.
09. Numa República que já se instituiu anômala, falta povo e sobra
mando. Brasília, Capital em que se concentra o poder controlado pelo
capital sem controle, mantém-se apartada do Brasil real, Brasil de quem vive
para sobreviver. Nosso mestre literário maior, Guimarães Rosa, a propósito
desse descompasso entre a retórica demagógica e o real em busca de
reconhecimento objetivo, assim sentencia: “uma coisa é pôr ideias
arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-
tantas misérias”. Como destravar a política? Por que o Brasil, seguramente
maior do que Brasília, parece nunca caber em Brasília? O de que
carecemos? Mediações, mediações, mediações. Sem o domínio político das
mediações, e política é mediação, a consciência resta sempre prisioneira da
falsificação política das soluções imediatas. E para a classe empobrecida a
mediação das mediações, é necessário dizer, é a do método da luta de
classes.
10. Ao final de sua vida, em 22 de março de 1832, as últimas palavras
de Goethe (a quem Napoleão considerava o maior poeta vivo) aos amigos
que circundavam seu leito foram um apelo ao conhecimento, ao pedir que
lhe abrissem as janelas, “para que entrasse mais luz”. Luz, luz, luz. Oseias
4,6 denuncia que seu povo perece for falta de conhecimento. Conhecimento
é poder. Reconhecia Francis Bacon. A ignorância também. Sobretudo a
ignorância produzida de forma programática pelo poder. O Brasil de 2020
parece ter descoberto de vez o quanto pode a ignorância. Ao refletir sobre o
valor da filosofia no mundo, Karl Jaspers, há mais de 50 anos, e na
Alemanha, reconhecia que “muitos políticos veem facilitado seu nefasto
trabalho pela ausência de filosofia. Massas e funcionários são mais fáceis de
manipular quando não pensam, mas tão somente se utilizam de uma
inteligência de rebanho”. Grande e perverso é o poder do ódio ao
conhecimento. Por isso, o bom combate da filosofia se faz pelo amor
(cultivo) da sabedoria.
11. Se não há salvação fora da política, menos ainda na política que
habita o Brasil oficial de Brasília. Não é gratuita a crescente rejeição que o
povo manifesta acerca da política. Como sair dessa aporia, se a política de
salvação da política não poderá nascer senão da política? O intelectual tende
a compreender a política como dever-ser abstraído das contradições reais.
Para a percepção social do povo a verdade da política está colada à política
como ela é (invariavelmente fisiológica), funciona e se manifesta no
cotidiano. Sua percepção depende menos da natureza formal e abstrata da
política (ortodoxia) do que de sua materialidade histórica e efetiva
(ortopraxia). De tanto errada a prática entorta a teoria. Não é gratuita e sem
razão de ser a desconfiança que o povo manifesta sobre a política.
12. Os discursos, bem ou mal, podem se equivaler, sobretudo quando
não submetidos à unidade dialética entre forma e conteúdo, entre a intenção
(viciada ou correta) e a materialização (ausente ou efetiva). A política não
salvará a política enquanto se mantiver apartada da justiça. Há diferença
entre discurso correto e discurso verdadeiro. A prática é o critério maior
para medir e avaliar essa diferença. O filósofo soviético, Pavel Vassílyevitch
Kopnin, no livro A dialética como lógica e teoria do conhecimento,
reconhece que “a incorporação da prática à teoria do conhecimento é a
maior conquista do pensamento filosófico”. Sabedora ou não do potencial da
prática, a verdade é que a baixa política é um dos mais eficientes
dispositivos para perverter prática.
13. Vale sempre trazer à luz a sábia observação de Brecht, tão atual
para a oficialidade política do Brasil do século XXI: “É possível que em
nosso país nem tudo ande como deveria andar. Mas ninguém pode negar que
a propaganda é boa. Mesmo os famintos devem admitir que o Ministro da
Alimentação fala bem”. Bem mais que ao tempo do Mestre do Teatro
Pedagógico, Épico e Crítico, a política como ela é no Brasil segue as ordens
da ideologia publicitária, sem a qual não vicejariam a tragédia, a farsa e o
escárnio sob o poder maior do financismo. A arrogância financeira avaliza e
alimenta a baixa política. A baixa política, por sua vez, legitima a arrogância
financeira. É uma relação de mútua venalidade. Venalidade que transforma
o que é público em privada.
14. A degradação da política na consciência e na vida do povo não
resulta, portanto, de uma compreensão incorreta de seu dever-ser, antes se
configura como um corolário das práticas abastardadas, delinquentes,
autoritárias e viciadas pela arrogância financeira da baixa política
promovida por expressivos setores das classes dominantes. Mészáros, um
dos mais irredentos pensadores marxistas contemporâneos, identifica como
fator estrutural da venalidade do sistema do capital o decréscimo
exponencial da taxa de valor de uso de todas as coisas. Vidas e coisas, tudo
é filtrado pelo valor de troca. Tempo e atenção, sobretudo. A lógica do
capital nos controla o tempo e a atenção. Afinal, tempo (inclusive os
templos) é dinheiro. Contra essa definição degenerada, nos adverte o grande
mestre Antonio Candido: “Temos que entender que tempo não é dinheiro.
Essa é uma brutalidade que o capitalismo faz, como se o capitalismo fosse o
senhor do tempo. Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida”.
Sem formação política é impossível ao ser social apropriar-se do tempo em
seu tecido emancipatório e ontológico.
*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do
Amazonas, teólogo sem cátedra e filho do cruzamento dos rios Solimões, no Amazonas, e Jaguaribe,
no Ceará. Em Manaus, AM, no primeiro dia de novembro do ano coronavirano de 2020.