“AS VOZES DAS MULHERES ESTÃO CADA VEZ MAIS FORTES NA LITERATURA”, AFIRMOU, SILVANA TAVANO, VENCEDORA DO PRÊMIO OCEANOS

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CONVERSA BEM VIVER

‘Ressuscitar Mamutes’, livro de Silvana Tavano que fala sobre o tempo, vence prêmio internacional de literatura

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Em 2022, Tavano também venceu o Prêmio Jabuti, com o livro ‘Sonhos’, voltado para crianças. No ano passado, ela lançou ‘O Último Sábado de Julho Amanhece Quieto’, que foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura| Crédito: Luiza Sigulem

Não foi apenas no cinema que o Brasil foi internacionalmente premiado em 2025. A autora, jornalista e escritora brasileira Silvana Tavano venceu o Prêmio Oceanos deste ano, na categoria prosa, com a obra Ressuscitar Mamutes, lançada pela Editora Autêntica.

A premiação avalia obras de literatura portuguesa, abarcando, além das produções do Brasil, livros escritos na África e na Europa. A jovem escritora alagoana Ana Maria Vasconcelos também foi premiada, na categoria poesia, com o livro Longarinas.

Para Tavano, a premiação é simbólica e ajuda a demarcar algo que vem mudando a cara da literatura brasileira: a participação cada vez mais ativa das mulheres escritoras.

“Você entra em uma livraria e vê muita mulher escrevendo coisas ótimas; cada vez mais autoras e jovens escritoras. Parece que, de alguns anos para cá, a voz das mulheres se colocou de forma muito forte na literatura. Vozes que estavam caladas em uma pluralidade enorme, falando de seus territórios, condições, raças e crenças. Isso é muito rico. Ter duas mulheres muito diferentes em idade, território e temas conquistando um prêmio desses dá voz a essa pluralidade”, comemora.

Em 2022, Tavano venceu o Prêmio Jabuti, com o livro Sonhos, voltado para crianças. No ano passado, ela lançou O Último Sábado de Julho Amanhece Quieto, que foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.

Ao Conversa Bem Viver, a escritora explica os elementos que compõem a narrativa de Ressuscitar Mamutes, que trata sobre a reinvenção do passado e do futuro de uma mãe já falecida, destacando o papel protagonista do tempo em nossas vidas.

“Isso me fez perceber que a figura da mãe contém em si própria a eternidade. A figura da mãe é eterna em todos nós. Então, ela conseguiu pôr em cena o que eu tentei: essa simultaneidade do tempo, a forma como vivemos o passado, o presente e o futuro ao mesmo tempo e o tempo todo”, explica Tavano.

Confira a entrevista completa

Brasil de Fato: Ressuscitar Mamutes está calcado na literatura, na ficção e na prosa — que foi a categoria em que você levou o prêmio —, mas se mistura um pouco com o científico e o ensaístico. O que se passa no enredo do livro?

Silvana Tavano: O protagonista do livro é o tempo. Como ele é muito híbrido, eu não sei se dá para rotulá-lo como romance, mas o romance também hoje é um gênero que se abre para muitas denominações e para formas cada vez mais abrangentes. Então, sim, é um romance, mas ele mistura ciência, fabulação, memória e ensaios.

Tudo isso vai se costurando de uma forma orgânica, para colocar em evidência isso que, para mim, é um tema importante: o tempo. Um documentário que eu assisti durante a pandemia me chamou muito a atenção. Era sobre ressuscitar mamutes e acabou sendo a abertura dessa narrativa e deu título ao livro.

Chamou-me a atenção a busca dos cientistas por uma solução para um problema iminente, um problema que já estamos vivendo hoje — não diria nem que é para o futuro —, escavando e desenterrando o passado para buscar DNA nesses fósseis que vão ser ressuscitados.

Talvez a gente não esteja aqui para ver isso, mas é a pesquisa deles. Há também o fato de a ciência ter sempre como ponto de partida esse tipo de hipótese ou sonho que parece impossível. E, se não partir do impossível, não chegará a uma descoberta ou solução possível. Eu até coloquei em algum trecho do livro “quantas invenções que hoje para nós são banais começaram com sonhos que pareciam absolutamente improváveis”.

Não sabemos se vamos ter mamutes ou não, mas o fato de eles irem buscar no passado uma resposta ou solução para o futuro me fez pensar no tempo: em como a gente também vive no passado, a partir das questões com que lidamos no presente. Como fazemos na terapia: buscar no passado respostas e soluções para as questões que hoje nos movem, até para tentar ter um futuro melhor.

Então, esse documentário me despertou todas essas questões que sempre me provocaram muito. Foi a partir delas que comecei a investigar tudo o que tem no livro, todas as formas de colocar esse tempo em cena, inclusive com a fabulação da figura da mãe da personagem. Isso me fez perceber que a figura da mãe contém em si própria a eternidade. A figura da mãe é eterna em todos nós. Então, ela conseguiu pôr em cena o que eu tentei: essa simultaneidade do tempo, a forma como vivemos o passado, o presente e o futuro ao mesmo tempo e o tempo todo.

O livro traz uma crítica ao quanto vemos o universo científico sempre muito focado em moldar o tempo? 

“Tempo é dinheiro”, a máxima do capitalismo que resume e sintetiza muito do que você está falando. Vivemos em uma sociedade onde o tempo virou sinônimo de desempenho, eficácia e resultados. Lutamos contra o tempo e, ao mesmo tempo, vemo-nos muito aprisionados nesse relógio, nessas 24 horas que não deixam de ser uma configuração necessária. Mas é uma invenção, um jeito de tentar fingir que o tempo está sob nosso controle. E não está. Não é o tempo que passa, somos nós.

Acho que durante a pandemia todo mundo sentiu isso muito fortemente, porque não tinha hora para comer, para trabalhar, não tinha sábado nem domingo. Todos os dias eram iguais. O tempo é isso. Obrigatoriamente, às custas de viver nesta sociedade que prioriza a produção e o desempenho, temos que ter um relógio para dar a batida do tempo.

Eu tenho um livro para os pequenos, de que gosto muito, chamado O Mistério do Tempo, lançado em 2008 e que agora teve uma reedição. Tem tudo a ver com isso. Eu tento ali, justamente, ao invés de fazer aquela coisa que acontecia quando eu era criança — ensinar a ler as horas no relógio —, provocar os pequenos a pensarem no tempo a partir da sensação.

Hoje espero que isso não aconteça mais nas escolas, ou talvez aconteça, e as crianças precisam aprender a ler o relógio porque vivem nesse mundo comandado por ele. Mas o livro tenta fazê-las pensar no tempo que passa rápido quando estamos felizes, quando queremos que vá devagar e ele voa, ou o tempo que se alonga na expectativa de uma resposta que não vem. O tempo da saudade, o tempo da tristeza. Como esses tempos mudam independentemente do que está marcado no relógio. A sensação do tempo muda a partir do que estamos vivendo.

É um livro que filosofa — “filosofar” é uma palavra solene, mas não deixa de ser uma forma de fazer as crianças pensarem, perguntarem e entenderem o tempo de outra forma. Apesar de a vida delas ser balizada desde cedo pelo horário da escola e das atividades, que em algum momento elas se lembrem: “Em que tempo estou agora?”, “O que estou fazendo neste momento?”, “Cadê o agora? O agora já passou?”. É um livro para os pequenos, mas acho que muitos “grandes” podem ler também.

Em Ressuscitar Mamutes, você diz: “Não é possível realinhar perfeitamente o passado. Também ele se move quanto mais avanço para o futuro. E hoje o rosto dela ressurge no meu, mostrando detalhes que só a distância poderia iluminar”. O que significa essa provocação?

Porque a memória é plástica. Nós lembramos e moldamos as lembranças a partir da distância com que olhamos para elas e da sensação que deixaram na gente; de que forma nos marcaram. Essa memória plástica vai mudando o passado com o passar dos anos. Tem coisas da minha vida que me lembro hoje de forma diferente de como lembrava há dez anos. Acho que vai se moldando mesmo.

Tem um livro muito lindo que li anos atrás, O Sentido de um Fim, do Julian Barnes. Eu o cito sempre. Quando li, fiquei encantada porque o protagonista é um professor de história — não à toa, pois é um historiador que lida com registros objetivos do tempo — que se vê confrontado com um documento que prova que ele fez algo de que não se lembra absolutamente. É muito lindo o jeito como ele elabora uma narrativa mostrando que lembramos do que não vivemos. Nós reinventamos o passado também.

Além de você, a escritora alagoana Ana Maria Vasconcelos venceu o Prêmio Oceanos na categoria poesia, com o livro Longarinas. Qual é a importância de termos duas autoras mulheres brasileiras sendo reconhecidas internacionalmente?

Fiquei muito contente porque a Ana Maria Vasconcelos é uma jovem talentosa alagoana. Eu já passei do “tão jovem”. É bacana ver que, de alguma forma, nós duas representamos o que vemos nas livrarias. Você entra em uma livraria e vê muita mulher escrevendo coisas ótimas; cada vez mais autoras e jovens escritoras.

Parece que, de alguns anos para cá, a voz das mulheres se colocou de forma muito forte na literatura. Vozes que estavam caladas em uma pluralidade enorme, falando de seus territórios, condições, raças e crenças. Isso é muito rico. Ter duas mulheres muito diferentes em idade, território e temas conquistando um prêmio desses dá voz a essa pluralidade.

Eu sou professora no Instituto Vera Cruz e vejo nascer ótimos escritores também — que os meninos não me massacrem por isso —, mas a presença maciça feminina é inegável. Foi gostoso ganhar esse prêmio. Uma honra e um privilégio enorme. Ele dá visibilidade a todas as mulheres do Brasil.

Como é escrever obras para crianças e também para adultos? Quais serão os seus próximos trabalhos?

O processo criativo é muito misterioso. Tenho um livro para os pequenos chamado Ainda. Ele surgiu porque eu estava pensando nesse tempo do “ainda” semanticamente: “ainda ontem” ou “quem sabe um dia ainda”. Eu ia trabalhar isso no Ressuscitar Mamutes, que tem um ensaio sobre os “hojes”. Ia falar dos “aindas”, mas quando fui escrever, saiu um livro para criança.

Tem esse mistério que não sei explicar e gosto de vivê-lo. Não há dúvida de que, na hora de escrever para os pequenos, eu recupero dentro de mim a criança que está em todos nós. Gosto de dizer “literatura para crianças”, não “literatura infantil”, porque o adjetivo parece minimizar. O “infantil”, na verdade, é o imorredouro em todos nós. Freud não me deixa mentir. É esse infantil em mim que escreve para as crianças e que conversa com o infantil dos adultos que leem.

Há um livro para crianças que sairá pelo selo Yellow Punch, da Autêntica — será meu primeiro livro para crianças pela editora que publica meus romances adultos. O título ainda não está definido, mas deve sair no primeiro semestre. Há outras coisas começando, mas ainda muito no início e prefiro não falar. Mas estamos sempre escrevendo. Se vai resultar em livro ou não, é outro departamento, mas quem escreve, sempre está escrevendo.

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