“SE TIVERMOS BARCOS SAINDO O TEMPO TODO, ISRAEL NÃO CONSEGUE NOS PARAR”, AFIRMOU COORDENADORA DA FLOTILHA GLOBAL SUMUD NO BRASIL

Ativista relata bastidores da missão internacional que tenta furar bloqueio a Gaza e expor violações
Global Sumud Flotilla – Reprodução/Instagram/@gazafreedomflotilla
A Flotilha Global Sumud é uma missão internacional formada por ativistas de diversos países com o objetivo de furar o bloqueio marítimo imposto por Israel a Gaza e levar ajuda humanitária à população palestina. A iniciativa surge da união entre movimentos que participaram de outras ações semelhantes, como a Flotilha da Liberdade (Freedom Flotilla), e da percepção de que é necessário um esforço coordenado globalmente para romper o cerco ao território.
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Em entrevista ao Brasil de Fato, Lara Souza detalha o processo de criação da missão, as dificuldades de financiamento, as intercepções e detenções de participantes por parte de Israel, e a atuação do governo brasileiro no caso. Ela também fala sobre o papel da comunicação e da mobilização internacional diante do que chama de “um projeto de limpeza étnica contra o povo palestino”.

Leia a entrevista completa:
Brasil de Fato – Lara, pode explicar o que é a Global Sumud Flotilla?
Lara Souza – A GSF é uma missão bem recente, preparada em tempo recorde. Depois da visibilidade da flotilha do Madleen e do Handala, da Flotilha da Liberdade, surgiu essa iniciativa. Em paralelo também foi feita a Marcha Global para Gaza, na mesma semana do Madeleen. Tinham mais de 4 mil pessoas de vários países caminhando para Gaza para tentar furar o bloqueio. A partir disso, veio essa percepção de que a gente precisa fazer algo maior, em unidade.
Assim nasceu a Global Sumud Flotilla. A tentativa de furar o bloqueio via mar era uma tentativa melhor, mais estruturada, com mais chance de sucesso. O pessoal da Global March, que depois virou o Global Movement, se juntou à Global Sumud dessa união de forças. Assim foi construída, em tempo recorde, uma missão gigante planejada em 2 meses. Com muita dedicação, energia e força de todo mundo. A gente teve mais de 28 mil inscrições de pessoas disponíveis para viajar no barco ou para ficar no suporte em terra.
Qual a diferença entre a Global Sumud Flotilla e a Coalizão Flotilha da Liberdade? A primeira é uma continuação da segunda? Considerando que foi fundada em julho de 2025, enquanto a Flotilha da Liberdade é de 2010.
É uma continuação, e tem pessoas que fazem parte das duas iniciativas. Por exemplo, o Thiago [Ávila] é parte da Freedom Flotilla e da Global Sumud, assim como Yasmin, que é uma militante turca alemã que foi solta hoje [nesta segunda-feira, 6 de outubro]. É uma iniciativa para somar forças. Tem uma iniciativa agora da Freedom Flotilla que está com uma missão agora rumo à Gaza, chamada de Thousand Madleens [Mil Madeleines], no barco Conscience, que havia sido bombardeado por Israel em maio deste ano [em Malta, quando se preparava para sair rumo à Gaza].
É uma tentativa de ampliar o movimento. Vem da ideia de fazer ondas de navegação, Global Sumud é uma primeira onda, Thousand Madleens é uma segunda onda, logo tem que haver uma terceira. Se a gente tiver o tempo todo barcos saindo, eles não conseguem parar a gente.
Como você se envolveu e se tornou coordenadora da delegação brasileira?
Eu entrei como coordenadora da nossa pasta de recrutamento e de lidar com as pessoas, de aproximação. Aí a gente tinha o Lucas [Gusmão], coordenador da delegação brasileira, mas ele ia embarcar. Quando ele decidiu embarcar, ele me pediu pra assumir o lugar dele. Uma semana antes do embarque eu assumi a coordenação da delegação, substituindo o Lucas que embarcou e que hoje está detido ilegalmente [ele e o restante da delegação brasileira foram libertados na manhã desta terça-feira]. A minha trajetória é essa. Desde então, desde a semana que eles embarcaram em Barcelona, eu assumi a coordenação brasileira e a gente tem feito todo o suporte em terra.
Como tem sido feito o recrutamento?
A nossa lista de recrutamento está fechada desde agosto. Por que a gente não conseguiria planejar a missão enquanto faz novos recrutamentos. Então no momento que chegou a semana do treinamento, fechamos as inscrições momentaneamente, porque a gente não conseguiria receber novas pessoas. É um trabalho árduo, envolve fazer entrevistas, envolve conversar com elas, conhecê-las. É uma missão de risco altíssimo.
As pessoas precisam ter clareza do que é a missão e a gente também tem que ter muita confiança. Porque é uma missão que pode atrair infiltrados. Por isso a gente fechou as novas inscrições em agosto. Precisávamos acompanhar a missão, que também é um trabalho árduo. É garantir que todo mundo tá bem, acompanhar as pessoas, o rastreamento do barco. São tarefas custosas, né?
Falando em custos, como é levantado o recurso para as missões?
É todo mundo voluntário. A gente precisou levantar muita doação, doação de sindicatos. Via Brasil a gente não conseguiu fornecer nenhum barco. Foram majoritariamente barcos de países europeus, da Malásia e da Tunísia. A gente não conseguiu levantar dinheiro suficiente para fornecer barcos. É muito dinheiro para conseguir os barcos, as câmeras, garantir o mínimo.
Por exemplo, os participantes precisaram ficar uma semana parados na Turquia por problema de ataque a barco. Precisava parar para consertar, pagar o mínimo de alimentação, mesmo que todo mundo tenha ido arcando com os próprios custos. Voluntários e independentes. Mas a gente ainda tentou garantir alguma ajuda de custo. É uma missão cara, mas muito bonita. Imaginar que conseguimos fazer isso com doações. Imagina quantas pessoas doaram pra isso ser possível?
Todos esses bens, após a intercepção de Israel, voltam para vocês?
Não, é tudo roubado por Israel. A Flotilha da Liberdade nunca recebeu nenhum barco de volta. Literalmente é tudo roubado. Eles ficam com barcos e mantimentos. Na Flotilha do Madeleen, que Israel tentou fazer a propaganda de que era o iate das celebridades, eles devolveram os pertences para as pessoas. Mas dessa vez eles estão deportando as pessoas só com a roupa do corpo.
Falando no “iate das celebridades”, a propaganda de Israel é que as missões não levam ajuda humanitária. O que você tem a dizer sobre isso?
Eles precisam fazer muita propaganda sionista para virar opinião pública. Porque ninguém no mundo seria contra levar ajuda para um povo morrendo de fome. Então eles precisam dizer que isso não é verdade, que a gente não tem mantimentos, que não está levando nada. Essa é a propaganda sionista, uma tentativa de virada da opinião pública, dizendo que o que a gente faz é mentira e que a gente está indo lá para aparecer.
Agora acho que isso tem dois pontos: primeiro, quem arriscaria a vida e quereria ser preso só pra aparecer? Isso por si só é absurdo. E segundo é que nós conhecemos as pessoas, está cheio de deputados, autoridades e pessoas que são historicamente militantes. Essas pessoas estão pela causa palestina, por solidariedade, para trazer visibilidade e principalmente para furar o bloqueio e trazer ajuda humanitária.
Quando as pessoas questionam que os barcos são pequenos, a ajuda humanitária não é tanta… no momento que Gaza está vivendo, qualquer coisa faz a diferença. Qualquer pacote de alimento, fórmula infantil para crianças faz diferença. Ontem [5 de outubro] morreram 150 crianças de fome em Gaza. Por mais que seja pouco, é absolutamente insuficiente o que a gente consegue levar, é necessário. Para abrir um corredor, que faça com que chegue toda ajuda necessária. Nosso principal objetivo, pra além daquilo que a gente carrega nos navios, é abrir o corredor humanitário.
Como você avalia o posicionamento do governo brasileiro, que se manifestou publicamente após quatro dias da intercepção de 13 brasileiros por parte de Israel?
A gente tem tido uma boa resposta do Itamaraty. O Itamaraty tem nos acompanhado desde antes da intercepção. Quando a missão foi anunciada, eles estavam cientes, tinham os nomes de todos os brasileiros, fazendo acompanhamento diário. Destacaram uma equipe pra isso. Tivemos uma resposta muito positiva. No momento da intercepção também, foram direto pro Porto de Ashdod e foram impedidos de entrar pelo exército israelense. Mas estavam lá para prestar atendimento consular. Depois eles conseguiram fazer as visitas consulares, mandando notícias para os familiares. Também me receberam como coordenadora da missão, já na quinta-feira, dia seguinte da interceptação, com o próprio ministro Mauro Vieira. Então o Itamaraty fez um bom acompanhamento.
Ao mesmo tempo, o pronunciamento oficial demorou a sair. Hoje [6 de outubro] saiu um posicionamento breve. Por mais que estejam acompanhando bem e estejam informados, para garantir que sejam trazidos em breve, também há uma cobrança de uma postura mais firme. Uma das nossas defesas enquanto delegação é o rompimento de relações. Antes da intercepção, o Ministério de Relações Exteriores do Brasil e outros 15 países assinaram uma carta pedindo passagem segura para a Flotilha. E que dizia que caso Israel descumprisse isso haveria consequências. E Israel descumpriu, sequestrou as pessoas em águas internacionais. Também há uma cobrança nesse sentido. Quais vão ser as consequências para Israel? Israel sequestrou 13 cidadãos brasileiros em águas internacionais.
Quais as consequências práticas para além das declarações diplomáticas? Consequências como sanções, rompimento de relações comerciais, parar de exportar petróleo que financia o genocídio.
Por que as delegações europeias foram as primeiras a serem libertadas?
O governo israelense não passa informações nem para advogadas, nem para embaixadas, para ninguém. Simplesmente colocam as pessoas num voo e ponto. Muito absurda a falta de respeito, inclusive com autoridades de outros países. Existe uma retenção de informação que atrapalha. A gente não sabe como são feitas as decisões de informações. O que a gente sabe é que a esmagadora maioria das pessoas deportadas hoje [6 de outubro] são europeias. Observamos isso no planejamento da Flotilha.
Existem nacionalidades mais vulneráveis, outras mais protegidas na lógica imperialista capitalista. Todos os barcos estão equilibrados em relação a isso. A gente não fez nenhum barco 100% sul-americano porque é isso. Em 2010, tivemos um barco com pessoas majoritariamente árabes da Flotilha da Liberdade que foram mortas. Mas não temos informação do por que algumas pessoas são liberadas. O que a gente sabe é que majoritariamente da delegação europeia já estão em casa.
Para finalizar, neste 7 de outubro completam dois anos de genocídio. Ainda há palavras, para além de tudo que já foi dito, para sensibilizar as pessoas sobre o tema?
Eu acho que a primeira coisa é dizer que o que ocorre é a intensificação de um genocídio. Porque o genocidio acontece há quase 80 anos, um projeto de limpeza étnica contra o povo palestino. Há dois anos eles intensificaram esse plano sionista. Mas isso significa que a gente precisa se mobilizar mais. Se tem dois anos que as pessoas estão vendo essa intensificação, precisamos de mais pessoas nas ruas, falando sobre a Palestina, de mais gente se mobilizando, de mais atos, mais flotilhas, reportagens, comunicação.
A gente precisa que as pessoas falem o que está acontecendo na Palestina, sobre a quantidade de pessoas morrendo em Gaza todos os dias. A gente escuta muitas pessoas falando que é muito pesado e que não conseguem lidar com isso. Mas eu acho que é importante as pessoas lembrarem que tem gente que não tem a escolha de ignorar o que está acontecendo, com eles, com os filhos deles. A gente precisa de mobilização internacional.
Todo grande genocídio, grande violação de direitos que a gente viveu historicamente, precisou de mobilização internacional pra acabar. A gente precisa de mobilização internacional para interromper esse genocídio em curso há quase 80 anos e intensificado há dois anos. A gente precisa que as pessoas se mobilizem cada vez mais.
Quem quiser participar de uma próxima missão, como faz?
Ainda não tem uma nova data, não tem um chamado com prazo. Mas temos um chamado de que as pessoas acompanhem as páginas da GSF internacional, do Brasil, do Global Movement to Gaza Brasil. É por onde estamos divulgando essa missão, é por onde a gente vai divulgar todos os atos e formas de se organizar. O que é mais importante agora é a mobilização das pessoas.