PALESTINOS EXPLICAM RAÍZES NA TERRA E POR QUE POPULAÇÕES NÃO DEIXARÃO GAZA E A CISJORDÂNIA

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RESISTÊNCIA

‘Partir significa desrespeitar todo o sacrifício que nosso povo fez’, resume um dos palestinos ouvidos pelo BdF

Por mais ilegal e cruel, a ideia de abandonar o inferno que é viver sob o genocídio que completa dois nesta terça (7), escapar da fome, da sede, doença, bombas e balas que matam dezenas a cada dia, proporcionando assim um futuro viável para suas famílias, pode não parecer tão absurdo para muitos. A Organização das Nações Unidas (ONU) calcula que, ao redor do mundo, mais de 300 milhões de pessoas vivam em um país diferente do que nasceram, e muita gente poderia se perguntar por que os palestinos simplesmente não aceitam se mudar para um lugar mais seguro.

Mas a coisa não é tão simples. O Brasil de Fato ouviu quatro palestinos que explicaram a relação existencial da nação com o território, que é muito mais forte do que mera noção de geografia ou propriedade individual, mas vive na psique coletiva como alicerce insubstituível de sua identidade.

“Nossa conexão com a terra não é apenas emocional, mas está ligada à identidade, à ancestralidade e ao pertencimento. Muitas famílias podem traçar suas raízes por gerações, centenas de anos atrás e, em nossa cultura, somos criados com base no princípio de que não há dignidade sem terra”, explica Farid*, morador da Cisjordânia.

“Por milhares de anos, nosso povo preferiu mudar de religião, mas não abandonar a terra. Os palestinos ainda usam em seu cotidiano palavras da língua arameu e de outras línguas milenares. O trauma da Nakba ainda está vivo em nossas mentes e cultura, e não passaremos por isso novamente.”

Ele se refere aos eventos que levaram a criação de Israel e, consequentemente, à expulsão de centenas de milhares de palestinos (a estimativa é de mais de 700 mil pessoas), chamado de Nakba — ou tragédia em português. Todos eles se tornaram refugiados em 1948. Apesar da resolução 194 da Organização das Nações Unidas (ONU) adotada naquele mesmo ano, que estabelece como lei internacional o direito de retorno, ou seja, que toda pessoa tem o direito de retornar ao seu país de origem, isso nunca ocorreu por recusa de Israel.

A chave como símbolo de resiliência

Outro morador da Cisjordânia, Ahmed*, explica à reportagem que a importância da Nakba não pode ser reduzida à formação do inconsciente palestino. “Em nossa compreensão, a Nakba nunca terminou em 1948, mas naquele momento, nosso povo acreditou que seu deslocamento e fuga dos massacres sionistas seriam temporários — apenas dias ou semanas —, com a esperança de que os exércitos árabes, então em guerra com as milícias sionistas, resgatassem nosso povo que havia sofrido muito.”

“Mas a esperança revelou-se uma ilusão. Os Estados árabes recém-estabelecidos, ainda sob influência imperial global, não lutaram contra as milícias sionistas, mas se renderam. Como resultado, mais de 700 mil palestinos tornaram-se refugiados na Cisjordânia, em Gaza e na diáspora. Hoje, mais de 6 milhões de refugiados ainda defendem firmemente seu direito de retorno”, diz ele.

Importante ter em mente que Gaza e Cisjordânia passaram a representar, em 1948, apenas 22% da terra originalmente palestina, com Israel ficando com 78% do território. Gaza foi capturada pelo Egito e a Jordânia com a Cisjordânia e os palestinos que fugiram para lá, vindos de outras partes do país, também se tornaram refugiados, neste caso, internos.

O presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil, Ualid Rabah, ressalta que a limpeza étnica que ocorreu entre 1947 e 1951 “correspondeu a 88% da população originária, e isso conta”.

“Quando a população palestina foge dos seus locais de residência, de trabalho, de cultivo, escolas, etc., e leva as chaves na mão, é porque ela acreditava que retornaria, mas não pôde retornar. Hoje, ela sabe que se sair, provavelmente não vai voltar”, diz ele.

Menina palestina segura uma réplica de chave nos marcos dos 65 anos da Nakba, em 2013. A chave das casas perdidas se tornou um dos símbolos palestinos. Foto: Mohammed ABED / AFP

Farid explica que a frustração com os omissos vizinhos árabes durante a Nakba também ajudou a forjar a necessidade de construir a autossuficiência palestina.

“Naquele momento, os palestinos aprenderam uma lição importante: nenhuma força externa os trará de volta à sua terra natal se a deixarem. Eles sabem que, uma vez deslocados, nunca mais retornarão — como é o caso dos refugiados que ainda vivem em campos décadas depois”, explica.

E os vizinhos árabes?

Muitos, por ingenuidade, desconhecimento ou simplesmente mal-intencionados, argumentam que acomodar a população palestina por diferentes países árabes resolveria o conflito mais importante do mundo, uma solução, relativamente mais simples do que as tentadas até hoje. Para exemplificar, Ualid Rabah cita uma declaração de Ram Ben-Barak, parlamentar israelense do partido Yesh Atid, que defende o extermínio ou expulsão de todos os palestinos.

“Se todos em Gaza são refugiados, então vamos dispersá-los pelo mundo. Há 2,5 milhões de pessoas lá, cada país poderia acolher 20 mil pessoas, 100 países. É humano, é necessário”, afirmou Ben-Barak, que também foi diretor adjunto do Mossad, a agência de espionagem israelense, em uma pouco convincente manifestação de preocupação humanitária com os palestinos. Ualid lembra que o acolhimento palestino feito por outros países árabes, no fim dos anos 1940, ocorreu em troca de chantagem e compensação financeira, não solidariedade aos irmão árabes.

“A Jordânia aceitou abrir suas fronteiras, receber o mar de refugiados e impedir que eles retornassem em troca de ficar com metade do que seria destinado ao futuro Estado da Palestina, a Cisjordânia”, diz ele.

Ahmed ressalta ainda que “é importante entender que simplesmente sair não é uma opção disponível, dado o cerco, o encerramento da passagem de Rafah e a posição do Egito que impede muitos de sair”. Já Farid explica que essa recusa internacional de receber mais palestinos se deve à certeza de que eles vão seguir reivindicando a consolidação da Palestina, estejam onde estiverem.

“O mundo árabe não acolhe os palestinos porque sabe que eles continuarão a lutar em seus países, o que lhes causará muitos problemas. Foi o que aconteceu em todos os lugares onde os palestinos estiveram: Líbano, Jordânia, Tunísia, Egito, Europa, etc”, resume.

Há dez anos no Brasil, a palestina nascida na Síria Rawa Alsagheer ressalta à reportagem que muitos países árabes já receberam centenas de milhares de palestinos, incluindo sua própria família, que se refugiou na Síria, onde nasceu. Mas a maioria desses governos foi “promovida e apoiada pelo colonialismo”.

“São ditaduras fascistas, têm acordos com a ocupação israelense, oprimem seu povo”, diz a cineasta e ativista política de 29 anos. Do Brasil , Alsagheer coordena a Samidoun, a rede de solidariedade aos prisioneiros palestinos nas prisões da ocupação israelense e integra o movimento Caminho Palestino Revolucionário Alternativo e o Alkaramah, para as mulheres palestinas.

Nós entendemos isso?

Outro elemento da questão é a origem milenar do povo palestino. “Estamos falando de uma população que começou a se sedentarizar há 11 mil anos atrás, que ergueu a primeira cidade, Jericó, as primeiras cidades-estado do mundo”, explica Ualid.

“Então não se trata só de terra, mas de ancestralidade, história, cultura, cidades milenares, espiritualidade, ali nasce e se desenvolve o monoteísmo, quer dizer, a desracialização de Deus. Isso tudo não é apenas sair de um torrão de terra e ir para outro.”

Todo esse denso pacote torna mais difícil para outras nações entenderem naturalmente esse enraizamento, como é o caso de países com 500 anos de existência, ou parcos 5% do tempo de existência da nação palestina. Mas, será mesmo?

Rawa Alsagheer defende que mesmo que alguns jovens no Brasil sejam influenciados pela extrema direita e a propaganda sionista, os brasileiros, de forma geral, não têm dificuldade de entender a questão.

“Os brasileiros indígenas são os mais que entendem a nossa luta, porque a gente compartilha o mesmo sofrimento, a gente compartilha a mesma história, que é limpeza étnica com massacres aos indígenas e o roubo de terras e ocupação”, exemplifica Alsagheer.

Enraizados como as oliveiras

Farid, morador da Cisjordânia, afirma que, quando questionado sobre a possibilidade de ir embora e refazer a vida em outro lugar, se sente incomodado. “Depois de 77 anos desde a Nakba, não é que queiramos viver assim, mas queremos viver aqui. Partir significa desrespeitar todo o sacrifício que nosso povo fez. E sabemos que a próxima geração jamais nos perdoará se o fizermos. Porque eles serão marcados como refugiados pelo resto de suas vidas.”

Em artigo publicado na Al Jazeera, o estudante de direito palestino-estadunidense Ahmed Ibsais defende que “a questão de por que os palestinos se recusam a deixar seus lares e terras ancestrais, mesmo diante de bombardeios implacáveis, invasões, invasão de colonos e desapropriação econômica, é profundamente pessoal e fundamental para a identidade palestina.”

“Como sociedade agrária, os palestinos têm um lugar especial para a terra em sua cultura e consciência coletiva. A oliveira é o símbolo perfeito disso. As oliveiras são antigas, resilientes e profundamente enraizadas, assim como o povo palestino. As famílias cuidam dessas árvores da mesma forma que cuidam de sua herança. O ato de colher azeitonas, prensar azeite e compartilhar esse azeite com entes queridos é um ato de preservação cultural”, explica Ibsais.

“Mas, ao ver oliveiras palestinas queimadas, água palestina desviada e roubada, e casas palestinas demolidas, também testemunhei resistência e desafio. Palestinos estavam construindo tanques de água para sobreviver aos períodos de cortes de água pelos israelenses. Eles estavam reconstruindo suas casas à noite após uma demolição e corriam para ajudar comunidades como Huwara quando um ataque de colonos acontecia.”

O palestino-estadunidense explica que abandonar a terra significaria permitir o apagamento da história, da cultura e da alma coletiva. “Há uma teimosia nessa decisão, sim, mas também uma profunda compreensão de que partir seria romper uma conexão que existe há gerações”, explica.

“Um ano após o início deste genocídio, os palestinos permanecem porque precisam”, resume.

*Nomes fictícios a pedido dos entrevistados

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