Leon Trotsky foi assassinado no México há exatos 80 anos, à 21.08.1940, quando corria quase um ano do início das hostilidades bélicas na Europa. Nascido em 1879, Trotsky falecia após seis décadas bastante movimentadas durante as quais experimentou a passagem de século e o trânsito do alvorecer europeu às agruras da Primeira Grande Guerra Mundial, assim como os movimentos preparatórios da exitosa Revolução Russa de 1917, apoiando desde as primeiras fileiras a ascensão dos bolcheviques ao poder com Lênin. Foram dias tão conflitivos quanto formadores do cenário dos terríveis tempos vindouros.

Os longos sessenta e um anos da vida de Trotsky foram insuficientes para dar vazão ao seu talento e possível contribuição com a literatura política e aplicação de sua agudeza analítica, que certamente tomaria como objeto os horrores da Segunda Grande Guerra Mundial patrocinada pelo nazi-fascismo alemão. À data de sua morte o genocídio apenas ensaiava os seus movimentos, embora não sem que os bárbaros já desatassem a sua sanha, tal como as primeiras movimentações alemãs na Polônia bem demonstravam, especialmente sobre os judeus e a íntegra da cidade de Varsóvia que resistiu bravamente aos seus invasores mesmo quando já sem condições e horizonte de triunfo.

Cumpridas oito décadas da morte de Trotsky a sua obra não termina de suscitar interesse desde diversas perspectivas, tanto políticas quanto históricas, estéticas e filosóficas, enquanto alguns de seus inimigos históricos e suas tradições, como o stalinismo, dormitam em estantes literárias menos frequentadas. O propósito deste texto é bastante pontual e modesto por sua limitação de espaço, evitando análise teórica abrangente e historicamente comparativa, ressaltando tão somente alguns aspectos cuja atualidade e interesse são notáveis para os nossos dias. O primeiro deles é tema de importância é básica para os nossos dias, e diz respeito a alerta de Trotsky (2019, p. 137) de que “A ignorância da natureza específica do fascismo paralisa inevitavelmente a vontade de luta contra ele”, cristalização das ações que serve como crítica para o recente passado do Brasil assim como advertência para os dias que vivemos e estão por vir, posto que a vontade de luta contra o fascismo todavia dormita e quando eventualmente pulsa ainda não o faz com a intensidade que o inimigo cobra para ser derrotado.

Trotsky escreveu instigante livro intitulado “Como esmagar o fascismo” ainda no alvorecer da década de 1930 considerando a experiência italiana, a espanhola sob Primo de Rivera, assim como o fortalecimento do NSDAP na Alemanha durante a década de 1920 e sua final ascensão ao poder quando era entrada a década de 1930. A aguda leitura da época realizada por Trotsky descortina perspectivas para os enfrentamentos contemporâneos das novas versões históricas do fascismo que, embora sob outras máscaras, não resultam menos agressivos e, não podemos duvidar, sanguinários, tão somente à espera das condições necessárias para multiplicar cadáveres na casa dos milhões, a qual, bem sabemos, não se alcança sem antes passar pela casa das dezenas de milhares.

Trotsky testemunhou não apenas os esforços de solapamento da República de Weimar como o seu processo de decadência alavancado por forças políticas conservadoras comprometidas com projeto autoritário-ditatorial. Neste sentido operavam atores das forças militares derrotadas na Primeira Grande Guerra Mundial, e Hitler, especialmente após o falido Putsch da cervejaria de München (08.11.1923–09.11.1923) e o cumprimento de suave condenação de prisão, optou por declarações públicas em que fazia profissão de fé da via constitucional para alcançar o poder, sendo percebido por Trotsky (2019, p. 188) como mera estratégia “que adormece os adversários, Hitler quer conservar a possibilidade de dar o golpe no momento propício”. O ucraniano observou que o movimento político de Hitler era estratégico e estaria disposto a lançar mão da violência para conquistar o poder sempre e quando fosse chegada a circunstância mais favorável, ou seja, que a declaração de adesão ao constitucionalismo não era mais do que mera alternativa política que expressava juízo de conveniência.

Os desdobramentos históricos comprovariam que as versões do fascismo não mantém compromisso conceitual nem prático com o constitucionalismo, senão meramente em sede de estratégia para a conquista do poder e, em seu caso, para a sua guarda e segura manutenção. O enfrentamento aos preceitos constitucionais não é fonte de constrangimento nem elemento de hesitação, pois a excepcionalidade é a regra e ordem do dia. Trotsky (2019, p. 188) percebeu que “O constitucionalismo de Hitler serve não só para que ele reserve para si uma porta aberta para o bloco de centro, mas também para enganar a social-democracia ou, mais precisamente, para facilitar aos chefes social-democratas a tarefa de enganar as massas”. É dubitável que a social-democracia tenha sido alguma vez integralmente “enganada” pelo nazi-fascismo hitlerista. Passado o calor dos fatos, outra e mais real avaliação sugere a necessidade de matização, apontando para a reunião de setores econômicos até algum momento associados com a social-democracia, mas que, passo seguinte, mostraram disposição para aderir ao novo grupo fascista ascendente ao poder.

A classe econômica dominante pode manter associação a versões menos rudes de exercício do poder político, tal como a social-democracia, voltadas a implementação de seu projeto econômico capitalista marcado pela expropriação das massas humanas. A classe econômica dominante tem preferência por métodos de realização de seus interesses pautados pela discrição mas ela pode ceder imediatamente em razão de manifesto declínio na eficiência dos resultados econômicos oferecidos. Trotsky (2019, p. 88) advertia que “A burguesia exige ao fascismo um trabalho “limpo”: desde que admite os métodos de guerra civil, ela quer ter paz durante uma série de anos”, mas não é certo nem que terá a almejada paz nem tampouco que durará tantos anos, posto que a sua ânsia pela extração de recursos, riquezas e os frutos do trabalho humano são ilimitados, a ponto de esgotar as próprias condições objetivas de exploração inviabilizando e finalmente implodindo o próprio sistema de que se serve.

A evolução incessante da expropriação e concentração de riquezas constrói patamar de relações sociais e econômicas nas quais o trabalho de controle e domínio que a burguesia outorga aos seus executores diretos já não se mostra funcional para os seus objetivos. O propósito da elite não é interrompido pela disfuncionalidade dos meios empregados quando outros, embora mais graves e violentos, subsistam como recursos de que lançar mão. Quando os executores de seu projeto econômico falham ou o projeto alcança toca o teto e os limites máximos de imposição de sofrimento e dor na massa dos indivíduos trabalhadores causam a reação deles, eis que se torna imperativo mobilizar a mais radical de suas versões para dar curso ao seu projeto. Neste momento estarão a postos e dispostos os agentes fascistas para servir a burguesia, exigindo a execução de “trabalho limpo” dos fascistas que logo seguirão “aniquilando tudo à sua passagem, prosseguem no seu trabalho até o fim” (TROTSKY, 2019, p. 88), contando para isto com o completo apoio, velado ou aberto, da elite que contrata os seus serviços, inicialmente, para que realize o seu “trabalho limpo”, mas que não tardará a implicá-la diretamente em seus atos e violências, até mesmo contra ela.

A Alemanha testemunhou como o interessado e generoso apoio econômico dos detentores do poder foi capaz de pavimentar a via para a ascensão nazi-fascista ao poder, prática da qual a elite lança mão quando precisa evitar que as classes populares assumam o controle com poder suficiente para implementar profundas alterações sistêmicas ou até mesmo reformas moderadas. Mesmo quando os tempos sejam críticos e as circunstâncias inauditas, o capital segue sempre a mesma lógica de reproduzir-se e maximizar as condições para a sua reprodução. Os tempos de instabilidades apontam para o futuro aberto enquanto os atores envoltos na tempestade nada mais veem do que agruras perpétuas, mergulhando as suas expectativas em porvir prenhe de falta de esperanças. Trotsky (2019, p. 194) alertava em seu momento que “Nenhuma classe pode viver muito tempo sem perspectivas e sem esperanças” e, sendo certa a análise, sugerimos que o horizonte destituído de expectativas equivale a morte precoce, sendo a resistência a própria chave da vitalidade a qualquer tempo e modo.

A massa a quem é imposto duro sofrimento e as mais ingentes pressões está composta pelos desempregados aos quais se somam nos dias que correm uma crescente massa daqueles considerados “inempregáveis”, ineptos para participar de qualquer atividade laboral e, por conseguinte, classificáveis pela elite econômica como indivíduos absolutamente passíveis de exclusão da sociedade. Trotsky (2019, p. 194) entendia que os desempregados não compunham uma classe, mas sim uma “camada social demasiado compacta e sólida, que tenta em vão sair de sua situação insuportável”, que configura insuportável contradição que funciona como instrumento indispensável para a operação do capitalismo, cuja espiral crescente expõe a radicalização de seus antagonismos insuperáveis e autodestrutivos. O seu crescente avanço conta com a orientação da burguesia e desemboca na fronteira do território fascista, cujos atores violentos serão em seu momento necessários para que a burguesia contenha a reação da “compacta e sólida” camada popular exposta às insuportáveis pressões do capital.

Há contradições inerentes ao capitalismo cuja dinâmica evolutiva é conducente à violência que o establishment apenas poderá conter arregimentando força idêntica em sentido contrário. O exercício da violência é a aptidão básica do fascismo, ao qual a burguesia precisa recorrer em auxílio para continuar a orientar os rumos de seu poder ameaçado. Há também contradições que medeiam às relações entre a burguesia e os fascistas, cujos termos, alertava Trotsky (2019, p. 246), se desenvolviam sem a avaliação dos burgueses com “bons olhos” sobre a “maneira fascista de resolver os seus problemas”. Este incômodo, sem embargo, não é suficiente para provocar distanciamento, pois a dimensão econômica se sobrepõe e apara todas as arestas que porventura aos burgueses não satisfaça, e assim, ao menos temporariamente, serão superadas para enfrentar o seu inimigo maior, o povo. A economia é ponto de ancoragem servindo como elemento aglutinador unindo burgueses e fascistas, aplicando variáveis níveis de violência para preservar e maximizar seus interesses econômicos.

Antes de experimentar a radicalização última das contradições do capitalismo a burguesia conduz sob o signo da tentativa de discrição as tensões originárias de seu domínio sobre corpos e vidas dos trabalhadores(as). Quando ocorre a elevação das tensões a níveis que apenas a violência pura consegue deter, então, precisam ser acionadas as forças fascistas que constrangem as práticas dos partidos burgueses tradicionais (ver TROTSKY, 2019, p. 246), e será Trotsky (2019, p. 246) que admitirá que “A grande burguesia gosta tanto do fascismo quanto um homem com o maxilar dolorido pode gostar de arrancar um dente”. Antes do gosto e das preferências a elite burguesa é conduzida pelos apetites que o vil metal concede, percepção suficiente sobre a sua hierarquia psíquica de valores que levaria Trotsky (2019, p. 245) a afirmar em sessão da comissão polaca do Comitê Executivo da Komintern, em 2 de julho de 1926, que “A burguesia em declínio é incapaz de se manter no poder pelos meios e métodos do Estado parlamentar que criou. Recorre ao fascismo como arma de autodefesa, pelo menos nos momentos mais críticos”.

A prática fascista de poder está recheada de recurso à violência, assumida em escala incessantemente progressiva, aliada a necessidade de ocultação de seus métodos e dos resultados em forma de cadáveres, conforme convém aos seus aliados burgueses que preferem manter, ao máximo, a discrição de métodos para continuar a obter os resultados que a ortodoxia neoliberal que defendem já não pode oferecer. O somatório deste funesto resultado é variável conforme o momento histórico e a potência do regime. No caso brasileiro observamos a intensidade do mal que aponta para a superação, com sobras, da casa das duzentas mil vítimas letais, além de tantas outras mais consumidas à luz da indiferença aliada a medidas potencializadoras do genocídio articulado em território sanitário, tal como o foi nos campos de concentração através do não fornecimento de calorias suficientes, que conduziu milhões de indivíduos à morte por inanição nas mãos do nacional-socialismo. Todas as versões históricas do fascismo desfrutam com a morte e seus atores chafurdam patologicamente no chorume.

Paralelamente ao momento da imersão da humanidade nas profundezas de sua miséria e no momento imediatamente posterior a descoberta de sua dimensão, os regimes fascistas e seus modelos sucedâneos precisam reprimir pesadamente a memória, individual e coletiva, adotando estratégia identificada por Trotsky (2019, p. 178) de evitar a recordação do passado “tranquila e objetivamente”. Para além do livre acesso ao passado para reconfigurar o presente projetando o futuro, Trotsky chama a atenção de que sob o fascismo “É preciso refazer o passado, é preciso tapar todas as fendas pelas quais pode penetrar a dúvida na infalibilidade do aparelho e de seu chefe”, pois a clara reconstrução e domínio do passado interditam tanto a clareza necessária para a autônoma reestruturação do presente quanto o seu teor de ameaça carregada pelas alterações que projetam para o futuro. A crítica de Trotsky (2019, p. 178), para além do fascismo, se estendia para o stalinismo ao identificar que a camada dirigente comunista soviética havia perdido a cabeça, de tal sorte que finalmente hipotecaria o projeto comunista.

O fenômeno fascista é claro quanto a sua intransigência com o recurso à violência, que é parte componente de sua forma e prática política. Neste sentido, o trânsito do momento neoliberal clássico para a sua forma contemporânea neofascista pós-neoliberal financista equivale a instalação da dinamite que implodirá o sistema político em qualquer das versões democráticas, mesmo as de baixa tensão. Trotsky (2019, p. 189) foi preciso ao sustentar que “Não basta compreender somente a “essência” do fascismo”, que é insuficiente quando levemos a sério a pretensão de resistir às suas formas de eclosão histórica, que mantém ondas de frequência similares, e outras versões que obedecem às circunstâncias de época, embora comuns quanto aos fins. O seu mais eficiente enfrentamento não pode ser proposto senão a partir da perspectiva de Trotsky (2019, p. 189), ou seja, que “É preciso saber apreciá-la como fenômeno político vivo, na qualidade de adversário consciente e cruel”, mutabilidade que não afeta a sua natureza crudelíssima que permanece constante em suas diversas formas de aparição. Neste sentido, conhecer a essência do fascismo equivale a introjetar teoricamente esta percepção de sua essência, a crueldade, para reagir ao fenômeno.

Quando a disputa pelo poder transcende a fronteira do enfrentamento adversarial o desfecho das disputas políticas adentram no território da resolução pela violência crua que, ao girar da roda, se volta contra eles com o mesmo impulso e força. Enquanto inimigo radical do parlamentarismo, ao fascismo nada mais pode conter do que a própria “luta” popular para assegurar os fundamentos da sociedade (cf. TROTSKY, 2019, p. 241). O triunfo fascista implica na unidade da pluralidade que, por definição, é alvo de sua repulsa, movimento de síntese forçada da heterogeneidade na homogeneidade, formando caldo político que não produz a matéria-prima da democracia. A dissolução da sociedade no fenômeno unitário era corretamente antecipada por Trotsky (2019, p. 241-242) ao apontar que Hitler dissolveria todas as instâncias em seus organismos de poder e controle, incluindo a burocracia e a justiça, assim como a política e o exército.

Este cenário não causa problemas para os propósitos do capitalismo financeiro que controla as rédeas da política e do horizonte do poder, pois como sustentava Trotsky (2019, p. 88) “A vitória do fascismo coroa-se quando o capital financeiro subordina, direta e imediatamente, todos os órgãos e instituições de domínio, de direção e de educação: o aparelho do Estado e o exército, as prefeituras, as universidades, as escolas, a imprensa, os sindicatos, as cooperativas”. O fenômeno fascista reduz à subordinação total o conjunto da sociedade, impõe o controle sobre todas as suas instâncias, e ao percebê-lo Trotsky divisa o horizonte de totalitarismo que o poder absoluto implica ao desprezar os limites que os instrumentos constitucionais podem impor segundo os arranjos derivados de articulações democráticas. O neofascismo financista é a forma histórica que o mundo contemporâneo conhece para reviver o elogio da tortura e da morte como forma antipolítica de exercício do domínio para além da ordem e do tributo à vida.

O triunfo sobre as forças do fascismo não será alvo do acaso, assim como o esmagamento do fascismo nunca é definitivo uma vez semeado. Sem ilusões, recuperar as ilusões. Sem hesitações nem tardança recuperar a indignação e a capacidade de reação. Sem demora, é imperativo assestar ao fascismo derrota histórica, forças que consomem carne e trituram corpos, que precisam ser detidas antes que concluam a sua obra funesta. Não haverá milagres e nem há chances sem a mobilização da ação coletiva, e forte. Não há chances de milagres no mundo, pois como diria Trotsky (2019, p. 241) “Quando se trata dos próprios fundamentos da sociedade, não é aritmética parlamentar que decide, mas a luta”. Vivos, mesmo, são apenas os que lutam, pois os mortos já não podem fazê-lo, e se quando vivos apenas assistem, é que mortos estão, quer saibam eles ou não.

Roberto Bueno é Professor Associado I. Doutor em Filosofia do Direito (UFPR). Mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC). Mestre em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM). Especialista em Direito Constitucional e Ciência Política (Centro de Estudios Políticos y Constitucionales / Madrid). Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito (UnB) (2016-2019). Pós-Doutor em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM).

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