“VOCÊ SAI TRANSFORMADO”, AFIRMOU IDEALIZADOR DO BAILE DO MENINO DEUS, CANT
afinsophia 24/12/2025 0
CONVERSA BEM VIVER
Festejo acontece há 42 anos na capital pernambucana e reúne tradição popular com artistas contemporâneos
No Recife, o período natalino ganha um toque ainda mais especial pela tradicional realização do Baile do Menino Deus, que acontece há 42 anos no Marco Zero, ponto marcante da capital pernambucana.
O espetáculo, que é uma cantata cênica de Natal, reúne diversas manifestações da cultura popular nordestina, como Bumba Meu Boi, os caboclinhos, o frevo e o maracatu, além de trazer nomes da cena musical contemporânea, como a cantora Joyce Alane.
Neste ano, as encenações acontecem nos dias 23, 24 e 25 de dezembro, com entrada gratuita para todos os públicos. Idealizador do baile, o escritor, médico e dramaturgo brasileiro Ronaldo Correia de Brito explica, ao Conversa Bem Viver, que o festejo retoma os reais significados do Natal.
“O Natal é para celebrar com as pessoas, e o baile é essa celebração com milhares de pessoas de todas as idades, credos e níveis sociais. É um nível de emoção que você sai transformado de lá. Algo acontece naquele espetáculo que mexe com você”, enfatiza.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato – Há planos de levar o Baile do Menino Deus para o restante do país nos próximos anos?
Ronaldo Correia de Brito – Este ano já começamos. Fizemos em uma cidade próxima do Recife chamada Goianá, que é uma cidade histórica, do início da colonização do Brasil, e foi um escândalo. A cidade inteira estava lá assistindo. Foi muito bonito mesmo.
Foi um formato diferente do nosso espetáculo aqui, que acontece em um palco grande de 600 metros, com uma orquestra, um coro adulto, um coro infantil, um corpo de baile, atores, etc. É um espetáculo enorme. Acontece no lugar mais emblemático do Recife, o Marco Zero, onde a cidade começou. Fizemos o primeiro ensaio de saída e acho que agora o baile começa a se deslocar, depois desse tempo todo.
Na verdade, versões dele acontecem no Brasil inteiro, feitas por instituições, prefeituras, colégios e ONGs. Mas a versão que mantemos há tanto tempo no Marco Zero, só tem no Recife.
Como foi concebida a ideia de criar o baile, 42 anos atrás?
Somos três parceiros: dois escritores e um músico. Assis Lima e eu, e o músico Antônio Madureira, que, na época, era do Quinteto Armorial e depois do Quarteto Romançal. Temos a mesma idade, tínhamos filhos pequenos e ficamos impactados com a mudança do Natal em relação ao que conhecíamos. Nós assistíamos a muitos festejos populares, sobretudo o Reisado, que é um auto de Natal, um auto dramático.
Mário de Andrade dizia que o auto dramático mais importante do Brasil era o Auto de Caboclinhos, daqui de Recife e da Paraíba. Eu discordo de Mário, a quem estimo muito, pois considero que o auto dramático mais incrível do Brasil é o Reisado. Antigamente, quando era muito celebrado, o Reisado podia durar até 12 horas. Imagine um espetáculo popular com essa duração. É algo incrível.
Quisemos fazer um espetáculo que tivesse essa mesma dramaturgia dos brinquedos populares, como o Reisado, a Lapinha e o Caboclinho. No Reisado, um grupo de brincantes sai na noite de Natal procurando uma casa para celebrar o nascimento de um menino. Eles encontram a casa com a porta fechada e começa todo um drama, com músicas e danças, para fazer essa porta se abrir. Quando se abre, começa a festa. Mas, por um sortilégio, a porta se fecha novamente e a busca recomeça.
Caímos no tema mais presente da humanidade: a busca por um mundo sem portas, um mundo compartilhado. Uma das falas do personagem Mateus diz: “de um mundo sem portas, onde a procura por portas sem porta, sigo adiante”. Tudo gira em torno do desejo de celebrar o nascimento e de abrir a porta para o mundo e para a vida.
Este ano, o baile terá a participação de Joyce Alane. Como será isso?
O baile partiu de uma dramaturgia extremamente popular, mas, ao longo dos anos, foi se abrindo para toda a cena de Pernambuco, do Brasil e do mundo. Por exemplo, desde 2021, os Reis que chegam para saudar o menino vêm acompanhados por um grupo de hip-hop e break da periferia do Recife, composto sobretudo por jovens negros, do Canal do Arruda. É uma cena incrível com cerca de 80 pessoas no palco.
Com isso, nosso público atual é composto por 75% de jovens. É um espetáculo que agrega crianças, adultos e idosos, mas sobretudo uma galera muito jovem, inclusive quem trabalha nele. O único velho sou eu, o diretor e criador. Este ano agregamos a Joyce Alane, que cantará três músicas, o que atrai um público grande.
Incorporamos as tradições mais antigas e o que há de mais contemporâneo e pós-moderno. O baile é uma grande vitrine, um produto de luxo. Para um cantor ou dançarino da periferia, estar dentro disso é um diálogo extraordinário. Para nós, foi incrível trazer a Joyce. Ela chega, como já chegaram vários outros, porque querem chegar.
Quais outros artistas também já participaram?
Atualmente temos o cantor Elon, o Chico César e a Elba Ramalho, da Paraíba. Do Sertão de Pernambuco, temos o Flávio Leandro, um dos forrozeiros mais famosos, e o Mestre Forró. Este ano, contávamos que teríamos também um forrozeiro do Rio Grande do Norte e Mariene de Castro, da Bahia. Geraldo Azevedo também viria. Mas é muito difícil trazer certas pessoas nesse período, porque é Natal e muitos querem estar em casa.
Eu, graças a Deus, estou lá no Marco Zero, na rua, como sempre imaginei o Natal. O Natal é para se estar nas ruas. O Natal é para celebrar com as pessoas, e o baile é essa celebração com milhares de pessoas de todas as idades, credos e níveis sociais. É um nível de emoção que você sai transformado de lá. Algo acontece naquele espetáculo que mexe com você.
É como se fosse uma abertura extraoficial do Carnaval?
Chama-se erroneamente de “frevo de bloco” a música dos blocos líricos. O correto é “marcha de bloco”, pois elas vêm dos antigos pastoris de Natal. No Rio de Janeiro algumas marchas também nasceram de pastoris natalinos.
É possível fazer esse link e essa travessia. No baile, é impossível não ter batuque de maracatu, frevo, marchas e toques de caboclinho, porque tudo isso faz parte da cena do Natal, que aponta para o Carnaval, assim como o Carnaval aponta para a quaresma. Mas insisto: é um auto natalino, uma cantata cênica de Natal.
O que te levou ao Recife?
Minha família saiu de Tracunhaém, perto do Recife, no início do século 18 para criar gado no sertão, em Saboeiro, onde nasci. Depois, com 5 anos, morei no Cariri cearense, uma região mágica, onde há o fenômeno do Padre Cícero. É um território em que se misturam Pernambuco, Ceará e o Piauí.
Vim para o Recife estudar medicina e fui seduzido pela cidade. Cheguei em 1969, um ano terrível da ditadura militar, mas havia um universo de cultura popular muito livre e ousado no qual mergulhei. Fui muito amigo de Ariano Suassuna.
Tornei-me romancista e contista. Meu último romance, Rio Sangue, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, assim como Galileia, com o qual venci. Eu capitulei ao Recife, amo esta cidade. Há alguns anos, fui convidado pela revista Magazine France para escrever sobre a cidade que eu amo. A capa foi o Recife e me deram 23 páginas sobre ela.