“OS QUE PEDEM ANISTIA HOJE DEFENDEM A DITADURA”, AFIRMOU ARQUEÓLOGO QUE INVESTIGA O DOI-CODI
afinsophia 19/12/2025 0
CONVERSA BEM VIVER
Escavações no local onde aconteceram crimes do regime militar em SP ajudam a construir as memórias da repressão
Com o objetivo de investigar as memórias da repressão, arqueólogos e pesquisadores vinculados à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) realizam escavações no antigo prédio do DOI-Codi em São Paulo (SP), local onde aconteceram muitos crimes da ditadura militar brasileira.
“Eram locais para onde as pessoas consideradas inimigas eram levadas, muitas vezes sequestradas, para serem interrogadas a partir de tortura e, diversas vezes, assassinadas ou mortas durante a tortura — como o caso do jornalista Vladimir Herzog. Depois, os corpos eram jogados em algum outro local ou enterrados em cemitérios em valas anônimas, entre outras coisas”, explica Andrés Zarankin, professor do departamento de Arqueologia da UFMG e um dos coordenadores da iniciativa, ao Conversa Bem Viver.
Entre os materiais já encontrados estão próteses dentárias, um almanaque, meias femininas, fragmentos de louças e materiais de construção. Zarankin argumenta que o trabalho é essencial, já que, a partir desses objetos, é possível reconstruir o que se passou no local, ao longo do regime autoritário.
“A materialidade tem muito a dizer sobre nossa sociedade. É aí que se insere a arqueologia da repressão e resistência, a arqueologia da ditadura centrada nesses processos de 50 anos atrás. Estamos recuperando também uma série de objetos que nos permitem contar uma história sobre o dia a dia desse local. A arqueologia está funcionando como uma mediação entre as histórias armazenadas nesse local e a sociedade”, continua o professor.
Para ele, a realização das escavações no atual momento político do Brasil é ainda mais importante, diante das sucessivas ameaças à democracia que o país vivenciou nos últimos anos.
“Ainda existe no Brasil a ideia de que a ditadura militar era algo positivo. Recentemente, tivemos o 8 de janeiro de 2023, quase um golpe militar, mas, anteriormente a isso, uma quantidade importante da população brasileira foi à porta dos quartéis. Quando se dá um golpe de Estado, o resultado é este: DOI-Codi, AI-5, sequestro, censura. O triste e irônico da situação é que aqueles que estão pedindo direitos humanos e anistia hoje em dia são os que defendem a ditadura”, avalia.
Confira entrevista completa:
Brasil de Fato: Qual é a melhor forma de explicar o que foi o DOI-Codi? Por que ainda é importante realizar escavações nesses locais?
Andrés Zarankin: Os dois organismos principais utilizados durante a ditadura para reprimir a dissidência política foram o DOI-Codi controlado pelos militares, e o Dops, que era da polícia. Eles funcionavam em conjunto, às vezes até no mesmo espaço, como no caso de Belo Horizonte.
Eram locais para onde as pessoas consideradas inimigas eram levadas, muitas vezes sequestradas, para serem interrogadas a partir de tortura e, diversas vezes, assassinadas ou mortas durante a tortura — como o caso do jornalista Herzog. Depois, os corpos eram jogados em algum outro local ou enterrados em cemitérios em valas anônimas, entre outras coisas.
Considero que o trabalho nesses espaços é fundamental, principalmente no Brasil e em momentos como o atual, em que ainda existe a ideia de que a ditadura militar era algo positivo. Recentemente, tivemos o 8 de janeiro de 2023, quase um golpe militar, mas, anteriormente a isso, uma quantidade importante da população brasileira foi à porta dos quartéis pedir liberdade — mas liberdade aos militares, liberdade para que existisse um golpe de Estado. Quando se dá um golpe de Estado, o resultado é este: DOI-Codi, AI-5, sequestro, censura.
Por isso, é interessante certa inversão que estamos presenciando atualmente, onde a direita, que está pedindo defesa dos direitos humanos, pede anistia e um trato digno para as pessoas que estão na prisão. E a esquerda está dizendo: “Não, sem anistia, precisamos ser duros”. São coisas que nunca pensaríamos: a esquerda defende direitos humanos e a direita é contra. Hoje está invertido.
O triste e irônico da situação é que aqueles que estão pedindo direitos humanos e anistia hoje em dia são os que defendem a ditadura. Existe uma confusão muito grande sobre o que foi essa ditadura e o que aconteceu durante ela. A arqueologia, como uma disciplina que trabalha com a materialidade e com os vestígios do passado, permite trazer provas materiais incontestáveis do que aconteceu.
O trabalho feito por Cláudia Plens está mostrando as salas de tortura e restos de sangue de 50 anos atrás. Estamos recuperando também uma série de objetos que nos permitem contar uma história sobre o dia a dia desse local. Existe também a possibilidade de que muitos ex-prisioneiros, que nunca mais voltaram a esse espaço, sintam-se acolhidos para confrontar esses medos e contar suas histórias.
De alguma forma, a arqueologia está funcionando como uma mediação entre as histórias armazenadas nesse local e a sociedade, para que as pessoas possam entender, de uma vez por todas, que uma coisa é coincidir ou não com um determinado governo na democracia, e outra coisa é uma ditadura militar.
Muitas pessoas acreditam que a arqueologia estuda apenas a pré-história. O que mais a área pesquisa? Quais objetos vocês encontraram nas escavações do DOI-Codi?
Niède Guidon é uma das iniciadoras e precursoras da arqueologia no Brasil. É interessante notar que ela é mulher, pois a disciplina é muitas vezes associada a figuras como Indiana Jones, focada em homens. De fato, existem mais arqueólogas que arqueólogos.
A maioria das pessoas tem a ideia de que a arqueologia estuda apenas a pré-história ou grupos de um passado muito distante, de centenas de milhares de anos atrás. Na verdade, desde a década de 1970, a arqueologia trabalha dentro do que se conhece como arqueologia histórica ou, mais recentemente, arqueologia do contemporâneo, que permite até fazer uma arqueologia do lixo do presente.
A materialidade tem muito a dizer sobre nossa sociedade. É aí que se insere a arqueologia da repressão e resistência, a arqueologia da ditadura centrada nesses processos de 50 anos atrás.
Considero fundamental desenvolver este tipo de trabalho, que já é muito frequente em outras partes da América Latina. Embora more no Brasil há 30 anos, nasci na Argentina e participei de escavações de centros de detenção lá, as quais foram muito importantes para esclarecer a sociedade.
Embora a repressão na Argentina tenha sido muito maior — 30 mil desaparecidos, praticamente não existe família que não tenha um conhecido ou familiar desaparecido —, esses elementos trazem o que conforma a memória de vários países.
No Brasil, isso é muito mais recente. A ditadura é um tema que incomodou e incomoda muito. No ano passado, nos 60 anos do golpe de 1964, o próprio presidente Lula decidiu, uma semana antes, cancelar as comemorações porque não queria se indispor com determinados grupos. Isso mostra que o poder desses grupos ainda é muito grande na atualidade.
Sobre os materiais que estamos encontrando, é importante esclarecer que esta é a segunda etapa de escavação e a terceira etapa de trabalho. Começamos em agosto de 2022 com um escaneamento 3D do prédio. Débora Neves acaba de publicar um site onde se pode fazer uma visita virtual, com depoimentos e informações sobre materiais encontrados. Também foram feitos estudos com radar, que permite enxergar embaixo da superfície.
Em agosto de 2023, fizemos a primeira etapa de escavação com cinco sondagens em pontos estratégicos. Quando digo sondagem, são quadras de 1 metro por 1 metro; a profundidade variou de 1 metro a quase 2 metros. Foram pensadas para testar o potencial arqueológico do local.
Escavamos um banheiro, um setor onde os prisioneiros eram fichados quando chegavam, o espaço embaixo da janela de uma cela e o refeitório dos guardas. O material recuperado foi muito importante: mais de 800 fragmentos e alguns objetos inteiros. O que mais chamou a atenção foi um frasco de tinta da década de 1960, usada para coletar digitais e para carimbos, que apareceu precisamente ao lado do setor de fichamento.
Também recuperamos meias femininas que têm, aparentemente, manchas de sangue, além de uma quantidade importante de objetos do dia a dia, como copos, fragmentos de pratos de louça e materiais de construção que mostram as transformações do prédio ao longo do tempo.
Uma das coisas mais interessantes foi a equipe de Cláudia Plens escavando as paredes com estilete para tentar encontrar inscrições feitas pelos prisioneiros nas celas. Foi encontrado um almanaque, creio que de 1976, em um banheiro onde as mulheres eram mantidas. São objetos que permitem contar uma história do cotidiano desse local, não apenas focada na tortura e na dor, mas em elementos que mostram coisas mais “normais”. Funcionam como gatilhos da memória para contar histórias.
Fizemos a primeira escavação desse tipo no Brasil em 2020, no Dops de Belo Horizonte, onde encontramos muitos grafites e inscrições de prisioneiros políticos nas paredes — poesias, músicas e mensagens sobre liberdade, como uma forma de resistência.
Na Argentina, quando escavamos, encontramos uma bolinha de pingue-pongue. Para nós, arqueólogos, não significava nada, mas trabalhamos com sobreviventes. Quando os ex-prisioneiros viram a bolinha, se emocionaram e contaram que, quando não estavam sendo torturados, ouviam os militares jogando pingue-pongue. Como viviam encapuzados, o som da bolinha indo e vindo era o que eles percebiam. Essa bolinha transformou-se em uma representação material da experiência naquele centro de detenção. Os materiais são sempre compartilhados com os sobreviventes para que nos contem as histórias sobre eles.
Vocês encontraram próteses dentárias e dentes. Dá para dizer que foram torturados?
Nesta última escavação, entre o final de outubro e o começo de novembro deste ano, o objeto mais chamativo foi uma prótese dentária, que ainda precisa passar por laboratório. Não temos uma máquina do tempo para saber exatamente como ela chegou lá, mas ela acende memórias, e é isso que procuramos.
Poderia ser de alguém que foi agredido, ou talvez houvesse um dentista no DOI-Codi que atendesse policiais. Não há como saber exatamente, a menos que a pessoa que perdeu a prótese apareça e conte o que houve. Temos informações mais amplas e ambíguas que, combinadas com outros elementos — por exemplo, junto com essa prótese apareceu muito material médico —, ajudam a compor o cenário.
Qual é a previsão de vocês para a divulgação desses dados? Será o primeiro semestre de 2026?
Já publicamos um artigo na revista da Sociedade de Arqueologia Brasileira com alguns resultados. Há também o memorial virtual que qualquer pessoa pode visitar. O projeto está dividido em três equipes: a de arqueologia forense, conduzida por Cláudia Plens (Unifesp); a de arqueologia pública, conduzida por Aline Carvalho e Fernanda Lima (Unicamp), que cuida da relação com o público, visitas guiadas e oficinas; e a equipe de escavação, coordenada por mim, com o pessoal da UFMG.
A Unicamp, onde os materiais estão armazenados, pensa em fazer exposições, mas os cronogramas precisam ser confirmados com a Aline e a Fernanda. Um dos grandes problemas é que a última escavação antes desta foi em agosto de 2023, e não conseguimos recursos para dar continuidade.
Somente agora, a partir de uma emenda de Guilherme Cortez, recebemos recursos limitados que permitiram o trabalho. Nenhum de nós recebe um centavo por isso. É um movimento de elucidação da história do Brasil em um momento chave. A falta de recursos dificulta tanto as mostras quanto a continuidade das escavações. Agora, vamos analisar e processar esse novo material, escrever artigos e livros, e planejar se as próximas atividades serão possíveis.