MAÍRA DO MST:: “DEBATER MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA É ESSENCIAL À DEMOCRACIA”
Vereadora do RJ quer criar programa de identificação de espaços usados para repressão na ditadura militar
Maíra do MST: ‘como Brizola falava, os filhotes da ditadura ainda permanecem vivos’ – Divulgação
Segundo a parlamentar, com o mapeamento e identificação de ruas, prédios e instituições que ainda guardam as marcas do regime, a proposta visa fortalecer o debate público e o simbolismo em torno da defesa da democracia.
“Temos um compromisso também com a militância política que teve a vida ceifada durante esse processo. Esse compromisso se dá por meio da manutenção desse debate sobre a memória, a verdade e a justiça, para que os erros do passado não sigam permanecendo no futuro”, afirma, em entrevista ao Conversa Bem Viver.
O relatório final da Comissão Nacional da Verdade, divulgado em 2014, identificou 377 agentes do Estado brasileiro como responsáveis diretos por graves violações de direitos humanos, 434 pessoas mortas ou desaparecidas e apenas 33 corpos localizados. Ainda assim, parte considerável da população não tem conhecimento sobre quais foram as estruturas utilizadas para a repressão política.
Para Maíra do MST, a aprovação do projeto de lei que cria o programa é ainda mais essencial atualmente, em um momento no qual a democracia brasileira ainda convive com constantes ameaças, como ficou demonstrado com as ações golpistas de 8 de janeiro de 2023.
“Infelizmente, como Brizola falava, os filhotes da ditadura ainda permanecem vivos, ainda permanecem estruturando o poder político do Brasil. Por isso, rememorar esse processo e trazer o debate sobre a memória, a verdade e a justiça, atrelado à democracia, é um compromisso não só com a democracia, mas também com o nosso futuro”, destaca a vereadora.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato – Como nasceu a iniciativa de criar um programa sobre memória, verdade e justiça na cidade do Rio de Janeiro?
Maíra do MST – Esse é um projeto que tem muitos pontos de partida. Eu identifico pelo menos três. O primeiro é o compromisso político do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e do conjunto das organizações do campo popular, dos movimentos populares, com o debate da memória. As grandes lutas pelas reformas estruturais que o Brasil precisa têm a sua relação política muito atrelada ao enfrentamento da ditadura militar.
Durante a década de 1960, pré-ditadura, o Brasil viveu um momento muito efervescente de lutas sociais, no qual a reforma agrária estava na ponta de lança dos debates políticos. O golpe militar vem justamente para inibir esse conjunto de movimentos e, principalmente, essas propostas de reformas de base.
Então, temos um compromisso também com a militância política que teve a vida ceifada durante esse processo. Esse compromisso se dá por meio da manutenção desse debate sobre a memória, a verdade e a justiça, para que os erros do passado não sigam permanecendo no futuro. Esse é um segundo ponto que leva a importância desse projeto e também de onde ele surgiu.
Estamos vivendo as consequências de um momento autoritário. Jair Bolsonaro (PL) e toda a sua corja, todo o seu grupo militar, esteve envolvido nos atos de repressão e muitas vezes reivindicaram essas repressões políticas cometidas durante a ditadura. Basta a gente se lembrar do que foi o discurso do próprio Bolsonaro, quando era deputado federal, contra Dilma Rousseff, no período do impeachment.
Isso mostra que, infelizmente, como Brizola falava, os filhotes da ditadura ainda permanecem vivos, ainda permanecem estruturando o poder político do Brasil. Por isso, rememorar esse processo e trazer o debate sobre a memória, a verdade e a justiça, atrelado à democracia, é um compromisso não só com a democracia, mas também com o nosso futuro.
Tem ainda um terceiro ponto de partida, que é um pouco da minha própria formação pessoal. Eu sou historiadora e trabalhei com essa pauta durante toda a minha graduação. Eu pesquisei a Comissão Nacional da Verdade, em especial as vítimas camponesas, as lutas camponesas. E, no mestrado, eu estudei isso no cinema. Então, tem também uma predileção pessoal, um compromisso historiográfico.
Outro elemento é que grande parte desses familiares de perseguidos políticos apoiaram a minha candidatura, alguns compõem o meu mandato, como é o caso da companheira Regina Toscano, que tem até um filme que retrata sobre a vida dela.
Ou seja, há um compromisso pessoal e político de um projeto que a gente consolidou aqui no município do Rio de Janeiro, que se dá no âmbito acadêmico, mas principalmente da militância.
Como vai funcionar esse programa na prática?
Esse programa, circuito, proposta, não é singular no Rio de Janeiro. Na verdade, é uma experiência que muitas capitais, muitas cidades têm adotado. Aqui no estado, a gente tem o caso da cidade de Petrópolis, Campos dos Goytacazes, com a identificação da Usina Cambaíba, Volta Redonda, etc. Então, tem uma série de cidades no próprio estado que já estão fazendo esse processo de identificação dos lugares de repressão.
A nossa ideia é justamente fazer com que os lugares que já são mapeados hoje sejam identificados. Tem um mapeamento que foi feito pela Comissão Estadual da Verdade e também por grupos acadêmicos. Tem um livro que sistematiza isso e, inclusive, é o material mais elaborado.
Ainda estamos debatendo se o melhor é identificar os espaços com placas ou com sinalizações no chão, porque, muitas vezes, você tem uma dificuldade estrutural com o espaço. Um órgão do município ficaria responsável por essa sinalização.
A ideia, então, é pegar esse acúmulo que já existe por meio da Comissão Estadual da Verdade e desses grupos acadêmicos que lidam com essa pauta e levar para o Executivo, para que, junto com a sociedade civil, a gente identifique as melhores maneiras de fazer essas marcações.
Recentemente, o Brasil recebeu um Oscar, com o filme Ainda Estou Aqui, que trata sobre a ditadura. Também tivemos neste ano os lançamentos dos filmes Honestino e O Agente Secreto. O que tem inspirado essas novas produções do cinema a respeito da ditadura?
Eu parto do princípio, na verdade, de que a arte e a cultura são instrumentos absolutamente políticos. Mesmo sem querer ser, muitas vezes elas são. E acho que, muitas vezes, eles estão à frente das políticas legislativas e das políticas mais institucionais. Quer dizer, eles propõem uma reflexão, eles propõem uma forma de lidar com a sociedade que, muitas vezes, quase em sua maioria, está muito à frente do tempo da política, do tempo da política institucional.
E percebo que, principalmente a partir dos anos 2000, com os estudos da ampliação da noção de atingido, da ampliação da noção de afetados pela ditadura militar, a gente consegue ter uma tentativa de popularização desse debate.
Porque o que acontece, infelizmente, é que, durante muito tempo, a academia construiu uma noção de ditadura que ficou muito restrita aos perseguidos, militantes, estudantes universitários que foram absolutamente atingidos.
O Ainda Estou Aqui retrata isso muito bem. Mas o que o conjunto dos estudos acha, e a Comissão Nacional da Verdade tem um lugar fundamental nesse processo, é que, na verdade, os atingidos e perseguidos políticos eram todos aqueles que, de alguma maneira, se contrapunham ao sistema.
Eu acho que o filme Tatuagem, por exemplo, traz isso de maneira muito forte. Uma comunidade LGBT que não necessariamente pegou em armas, mas que de alguma maneira representava uma necessidade de repressão a esse modo, a esse status quo que o regime tentava imprimir, dos valores da homofobia, dos valores cristãos da família, etc.
Essa ampliação da noção é fundamental para que a gente consiga dialogar com um conjunto da sociedade mostrando que, infelizmente, esse regime afetou a todos. Afetou não só aqueles que realmente se rebelaram e que, de maneira muito acertada, foram à vanguarda da luta democrática, mas afetou também o conjunto de pobres e oprimidos das igrejas. Se a gente for ver a história das igrejas, principalmente da teologia da libertação, a gente vê que houve uma perseguição muito forte.
Esses filmes ajudam a fortalecer, de fato, esse debate e essa memória de um período que não pode voltar a se repetir. Pós 2014, golpe contra Dilma, governo Temer e a eleição do Bolsonaro como ápice do recrudescimento do autoritarismo, nós vivemos tempos em que as ameaças golpistas e as ameaças militares voltaram a circular no Brasil.
O 8 de janeiro mostra isso muito claramente, que essas aspirações golpistas da direita brasileira seguem muito presentes. Então, como diz o Leminski, todas as armas são boas. O poema, as artes e também a nossa luta legislativa. E acho que esse projeto de lei, assim como outros que já tiveram também aqui na cidade, é como uma consequência desse processo anterior que as comissões, tanto a Nacional da Verdade, como as estaduais, tiveram.
Elas sinalizam a importância de aplicação de políticas de memória nos municípios e nos estados, mas que, infelizmente, com o golpe contra a presidenta Dilma, foram interrompidos. Então, o que a gente tem tentado fazer é esse processo de retomada, de reconexão de fios que foram interrompidos por esse segundo golpe, que não é o mesmo golpe, efetivamente, mas que também fez tão mal à democracia.
Como o Estado pode agir no sentido de conter as ações revisionistas?
No último período, com o governo do Bolsonaro, houve uma tentativa de disputa ideológica muito forte, tentando imprimir de fato uma lógica negacionista, além de revisionista, de minimização dos fatos, de realmente tirar esse lugar da tortura como algo que aconteceu, mas também de negar a própria ditadura.
E eu acho que tiveram alguns momentos em que o antigo presidente fez declarações públicas negando a ditadura militar. Isso é muito sério, porque coloca em xeque não só os relatos e todo um processo institucional das comissões da verdade, que foi uma tentativa de fazer um processo de justiça de transição, justamente porque a anistia no Brasil é sempre muito mal resolvida.
Pela primeira vez a gente conseguiu ter um processo de luta contra a anistia que fosse efetivamente justo, mas o que a gente sabe é que a Lei da Anistia anistiou a todos e infelizmente isso impedia um processo de justiça de transição, como o que aconteceu em outros países da América Latina, como a Argentina, em que os militares sentaram no banco dos réus, pagaram pelos seus crimes, etc.
O período da presidenta Dilma, desse debate bastante forte, trouxe essa consequência importante, de a gente pensar as políticas públicas e o lugar do Estado nesse sentido. E acho que a gente precisa continuar nessa toada. Incentivar o conjunto do poder Executivo, das secretarias municipais de educação, e entender que, inclusive o debate da ampliação da noção de sujeito, não é necessariamente revisitar a história e, sim, incorporar um conjunto de fontes e de debates que têm acontecido no âmbito da historiografia e que podem contribuir, inclusive, para ampliar a noção de democracia, ampliar a noção de participação popular.
A linha é tênue e não é fácil, mas o negacionismo, negar o que aconteceu, ou diminuir o nível de repressão, definitivamente não é a saída.
Em que estágio de tramitação está o projeto? Como tem sido lidar com a presença do bolsonarismo no Rio de Janeiro? O projeto tem encontrado resistência?
O projeto entra na pauta na semana que vem. É um projeto que, teoricamente, a gente tem a maioria simples e maioria absoluta. Esse é um projeto de maioria simples e, teoricamente, ele passaria sem fazer contabilização de votos individuais.
Mas, justamente por essa presença do bolsonarismo, a gente vai acompanhar um processo de disputa bastante forte. Já houve uma série de insinuações e ameaças. Eles têm esse rabo preso com os militares, esse rabo preso com os filhotes da ditadura e a eles não interessa o debate da verdade, da justiça e da memória.
Então, o projeto entra em pauta na semana que vem. A gente vai fazer um processo de mobilização. Já estamos com nosso abaixo-assinado com mais de 2 mil assinaturas, com praticamente todas as instituições da sociedade civil que são ligadas aos direitos humanos, que são ligadas à OAB, etc.
Esse é um debate que interessa inclusive à frente ampla, que hoje é consolidada na prefeitura do Eduardo Paes. A gente percebe que tem uma abertura para que, de fato, o projeto seja aprovado. Não está dado, é uma disputa, mas nos cabe fazer o debate ideológico de que isso não se trata apenas de revisitar o passado, mas principalmente fortalecer os pilares da democracia no Brasil e no Rio de Janeiro.
Estamos nessa seara, trabalhando, fazendo esse processo de mobilização de fora para dentro. Faz 50 anos da morte do Vladimir Herzog. Acho que também foi um caso bastante emblemático que inclusive furou um pouco do bloqueio que tinha em torno da tortura, que tem até hoje em torno da tortura.
Acho que o caso do Herzog traz a importância de dialogar com esses setores ligados ao jornalismo e às liberdades democráticas. Estamos fazendo a disputa e principalmente mobilizando, que é o que os movimentos populares mais têm o que contribuir nessa dinâmica legislativa.