ATRIZ JÚLIA LEMMERTZ: “O CONGRESSO É REACIONÁRIO, RETRÓGRADO E COVARDE”

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CONVERSA BEM VIVER

Atriz fala ainda sobre a regularização dos streamnings, participação política dos artistas e envelhecimento da mulher

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Ela é uma das artistas que participou ativamente das manifestações recentes contra o Projeto de Lei (PL) da Dosimetria| Crédito: Andre Wanderley / Márcia Piovesan

“Eu me pergunto como essa gente dorme à noite”, questiona a premiada atriz brasileira Júlia Lemmertz, sobre o Congresso Nacional. Ela é uma das artistas que participou ativamente das manifestações recentes contra o Projeto de Lei (PL) da Dosimetria, que reduz as penas dos condenados por tentativa de golpe de Estado, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), aprovado pelo Senado na última quarta-feira (17).

Para Lemmertz, o capítulo recente da política do país chama a atenção para algo mais profundo. Segundo ela, temos hoje composições nas casas legislativas federais que atuam apenas pensando em seus próprios interesses.

“Nunca tivemos um Congresso tão difícil — para ser gentil — como este que temos hoje. É um Congresso que legisla pelo seu próprio interesse. Não trabalha para o povo. Saímos às ruas para defender o óbvio, e isso é uma loucura. Estão usando essa palavra que resgataram agora, que para mim parece nome de especialidade médica: ‘dosimetria’ É uma desculpa terrível para uma bandalha, para uma anistia. O Congresso é reacionário, retrógrado e covarde”, avalia a atriz ao Conversa Bem Viver.

Para ela, em contraposição, um dos aspectos positivos de 2025 foi o fortalecimento do cinema nacional, que trouxe ao Brasil o Globo de Ouro e o Oscar, além de ter sido premiado em Berlim e em Cannes.

“Foi muito lindo o que aconteceu com Ainda Estou Aqui e outros filmes. Na esteira dele, vieram filmes lindos como Manas e, agora, O Agente Secreto, do Kleber Mendonça Filho, que é extraordinário. Chegamos a um lugar de excelência e capacidade de atingir o público que há muito tempo não se via”, comenta.

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato – Recebemos no final do ano um “presente” do Congresso, que aprovou o PL da Dosimetria. Você esteve nas manifestações contra essa medida. Como avalia esse processo?

Júlia Lemmertz – Eu te confesso que não me surpreendo mais com nada. Acho que a manifestação popular é muito importante e, cada vez mais, acho que temos que sair para a rua e nos manifestar, estar ligados no que está acontecendo. Como cidadãos, não podemos dizer que a política “é assim”, que “não vai para frente” ou que “todos os políticos são iguais”. Isso não é verdade.

Nunca tivemos um Congresso tão difícil — para ser gentil — como este que temos hoje. É um Congresso que legisla pelo seu próprio interesse. Não trabalha para o povo. Saímos às ruas para defender o óbvio, e isso é uma loucura.

Isso já vem acontecendo há algum tempo, mas achamos que, neste novo momento do país, com o novo governo, a coisa mudaria. Mas não mudou; muito pelo contrário. O Congresso é reacionário, retrógrado e covarde. É horrível o que estão fazendo. Eu me pergunto como essa gente dorme à noite. É um outro parâmetro de consciência que esse pessoal tem. O que me espanta é que eles foram eleitos pelo povo. Quem são as pessoas que votaram nessa gente? Duvido que a grande maioria concorde com o que eles estão fazendo. Isso é uma barbaridade.

Estão usando essa palavra que resgataram agora, que para mim parece nome de especialidade médica: “dosimetria”. É uma desculpa terrível para uma bandalha, para uma anistia. Mas é pior do que uma anistia para fulano ou sicrano. É uma lei que engloba crimes muito graves. É uma lei muito estranha e bárbara.

Tem também o marco temporal. A quantidade de pautas absurdas é enorme. Às vezes eles voltam atrás, porque é uma barbaridade, como aquele PL que obrigava crianças vítimas de violência sexual a continuarem com a gravidez. Não há nem nome para isso. E é um Congresso de homens brancos.

Qual é a importância de artistas, como Caetano Veloso, se envolverem na convocação das manifestações?

Caetano Veloso é inacreditável. Aos 80 anos, ele já poderia estar tranquilo em casa, curtindo os netos e fazendo seus shows. No entanto, ele está como todos nós: indignado. Ele, que já foi preso e exilado, está aqui tendo que defender as mesmas pautas, ou piores. Quando se reincide no erro, já não é apenas erro; é má-fé e outras coisas. Mas é muito bonito esse movimento que une artistas da música popular brasileira e o povo.

É uma festa ver Paulinho da Viola, Gilberto Gil e tantos outros cantando. Mas é mais do que isso. É todo mundo dizendo: “estamos aqui tentando fazer alguma coisa”. A internet às vezes nos deixa preguiçosos. Você se manifesta pelo Instagram ou Twitter e acha que é suficiente. Mas é preciso levantar e ir para a rua.

Antigamente as passeatas eram imensas. Hoje as pessoas acham que não faz diferença, mas faz. É a única arma que o povo tem. Se conseguimos reunir 50 mil pessoas em um jogo de futebol para fazer barulho, por que não conseguimos nos unir por um objetivo comum na rua? Não importa se você tem dinheiro ou se é assalariado. Todo mundo quer um mundo melhor. É um processo coletivo.

Perdemos essa noção de coletividade porque só olhamos para o próprio umbigo. Quando saio com a camisa do MST[Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], a internet chega ao cúmulo de ficar brava porque eu tenho privilégios. Questionam quem sou eu para defender o movimento. Eu tenho a sorte de ser remunerada pelo meu trabalho e estar ativa, mas isso não significa que eu deva ficar em casa colhendo os louros sem lutar por um mundo melhor.

Eu preciso ser “sem terra” para defender o movimento? Que loucura é essa? Deixamos de validar movimentos coletivos porque fazemos as coisas sozinhos, achando que curtidas e seguidores farão diferença. Não farão.

Antes da pandemia eu já reclamava da internet. Quando ela veio, eu me calei porque, se não fosse por ela, estaríamos apartados do mundo. Eu criticava o fato de só nos falarmos por aplicativos. Tudo tem dois lados.

Um aspecto positivo do ano foi o sucesso do cinema nacional. Como você viu esse fortalecimento do audiovisual brasileiro?

Foi muito lindo o que aconteceu com Ainda Estou Aqui e outros filmes. Na esteira dele, vieram filmes lindos como Manas e, agora, O Agente Secreto, do Kleber Mendonça Filho, que é extraordinário. Quando vi Ainda Estou AquiMalu também estava estreando. Eram dois filmes brasileiros incríveis e completamente diferentes: um feito com pouco recurso e outro com uma estrutura robusta de campanha.

Chegamos a um lugar de excelência e capacidade de atingir o público que há muito tempo não se via. Ter uma máquina de divulgação ajuda, e a recepção em Veneza e no Globo de Ouro criou interesse em um filme que fala de um passado recente.

Muita gente conhecia por alto a história de Rubens Paiva, mas o livro do Marcelo Rubens Paiva é um retrato muito bonito do Brasil daquela época. Recomendo a leitura. Deveria ser obrigatória nas escolas. Somente o Walter Salles para pegar uma obra desse tamanho e torná-la ainda maior. Ele é um cineasta gigante e humano. Os Salles são incríveis. Sou fã também do João Moreira Salles.

Mas aí voltamos à nossa dificuldade nacional: a falta de regulamentação do streaming. Todos os outros países já se organizaram. Estamos tentando tardiamente, com uma negociação feroz diante de um Congresso que faz lobby para as empresas e não defende a soberania nacional nem o nosso produto cultural.

Eles levam a nossa imagem para fora, ficam com os dividendos e fazem o que querem. Qual o sentido disso? Essa regulamentação é importante para todos. Se as empresas estrangeiras lucram aqui usando mão de obra nacional, devem deixar parte desse lucro para fomentar a produção local. Não fazer isso é covardia e um autoboicote.

O Ministério da Cultura e as associações batalharam pelo que foi possível, mas não é suficiente. Parece que isso não será votado este ano. Teremos que torcer para que, no ano que vem, essa pauta avance.

O cinema nacional também trouxe três filmes que mostram mulheres com mais de 50 anos desafiando convenções: Sexa(com Glória Pires)Livros Restantes(com Denise Fraga) e O Último Azul(com Denise Weinberg). Isso tem um significado importante?

Muito. Eu me identifico completamente. Eu sou essas mulheres. Precisamos rever esses parâmetros etários, machistas e preconceituosos. As pessoas estão vivendo mais e com mais qualidade. As mulheres estão saindo de uma “casca” que nos colocaram. Temos muito a dizer e a colaborar.

Uma mulher de 60 anos tem vida sexual, desejos e curiosidade pelo mundo. Enquanto houver lucidez, energia e vontade de dialogar, você está vivo. Conheço jovens de 25 anos que são “velhos”, preconceituosos e cheios de ideias ultrapassadas.

Temos que aprender uns com os outros e parar com a bobagem de contar os anos. Eu tenho 62 anos. Quando dizem que estou bem “para a minha idade”, respondo que estou bem na vida. Não adianta querer ser jovem para sempre ou não ter rugas. Todos vamos envelhecer, se tivermos sorte. A ideia é envelhecer com boas memórias e continuar fazendo coisas interessantes.

Eunice Paiva, por exemplo, se reinventou quando o marido foi assassinado. Ela era dona de casa com cinco filhos, mas foi estudar advocacia, defendeu causas indígenas e lutou por justiça durante décadas.

Quando ela finalmente poderia “curtir a vida”, teve Alzheimer. Então, vamos parar com o etarismo e viver a vida, porque ela acaba. Precisamos de boas histórias que nos estimulem a acreditar no futuro. Precisamos nos apoiar uns nos outros.

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