
O Império Financeiro de Leila Pereira.
Porém, a Crefisa e seu modelo de negócios representam a face mais problemática do mercado de crédito brasileiro: um campo fértil para práticas abusivas de agiotagem, onde o crédito deixou de ser instrumento de inclusão social para tornar-se mero veículo de lucro predatório.
A Expansão Sobre os Mais Vulneráveis
A Crefisa prosperou oferecendo empréstimos justamente aos mais vulneráveis: negativados (pessoas impedidas de obter crédito em outras instituições), aposentados e trabalhadores de baixa renda. Seu crescimento evidencia o tratamento distorcido que o Banco Central concedeu ao mercado de crédito brasileiro.
Em 2021, o Congresso Nacional aprovou a Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181/2021), estabelecendo os pilares do crédito responsável:
- Avaliação prévia da capacidade de pagamento do consumidor
- Informação clara sobre juros, Custo Efetivo Total (CET) e impacto real das parcelas
- Proibição de práticas que induzam ao endividamento contínuo
- Proteção especial ao idoso e ao consumidor hipervulnerável
Na teoria, o Brasil adotou o paradigma internacional segundo o qual o crédito não pode ser tratado como mercadoria qualquer — trata-se de um serviço essencial que afeta diretamente a dignidade humana. Na prática, porém, a expansão do crédito seguiu exclusivamente a lógica dos negócios: ampliação indiscriminada da oferta, estímulo ao consumo, desprezo pela capacidade real de pagamento e transferência dos efeitos deletérios dessa política para o Poder Judiciário.
A Armadilha da Dívida Perpétua
O modelo Crefisa opera segundo um ciclo vicioso bem definido:
- Concessão inicial de crédito com juros altíssimos
- Parcela pequena em relação à renda — psicologicamente aceitável
- Renovação da dívida antes do término do contrato
- Incorporação dos juros ao novo saldo devedor
- Reinício do prazo de pagamento
- Retorno ao passo 3
Esse ciclo cria uma dívida permanente, gerando receitas recorrentes para a financeira e impossibilidade estrutural de quitação para o tomador.
O Contraste Internacional
Em países que tratam o crédito como política de bem-estar social, existem mecanismos protetivos claros:
- Tetos de juros (Estados Unidos, França, Alemanha)
- Limitação de refinanciamentos sucessivos
- Proibição de “rollover” (renovação) automático
- Obrigatoriedade de análise do orçamento familiar
- Sanções severas contra concessão irresponsável de crédito
No Brasil, o modo como instituições como a Crefisa prosperaram constitui o maior atestado da disfuncionalidade do mercado de crédito e, especialmente, da ineficácia do agente regulador: o Banco Central.
Duas Décadas de Impunidade
Os abusos cometidos pela Crefisa foram alvo de inúmeros processos, todos sem eficácia prática.
Primeira Onda (2013-2015)
O Ministério Público em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul receberam enxurrada de reclamações sobre créditos com juros superiores a 500% ao ano, assédio a aposentados e vendas sem explicações contratuais adequadas.
Procedimentos de investigação civil foram abertos, Termos de Ajustamento de Conduta foram tentados, ações civis públicas por publicidade abusiva e superendividamento foram propostas.
Resultado: ações arquivadas, multas administrativas irrisórias e nenhuma alteração estrutural no modelo de negócios.
Segunda Onda (2016-2018)
O Ministério Público de São Paulo investiu contra a publicidade abusiva que explorava a imagem de atletas populares e fazia promessas implícitas de “dinheiro fácil”.
Resultado: ajustes cosméticos na propaganda, inclusão de alertas em letras mínimas e nenhuma sanção relevante.
Terceira Onda (2019-2021)
Os Ministérios Públicos de São Paulo, Santa Catarina e Paraná entraram com ações questionando o “rollover” e a falta de informação sobre recálculos contratuais.
Resultado: casos encerrados sob o argumento de que a questão estava sob “atuação regulatória do Bacen”.
Surge aqui a primeira blindagem institucional: o MP delega o problema ao Banco Central, que nunca enfrentou o mérito estrutural da questão.
Quarta Onda (2022)
Com a entrada em vigor da Lei do Superendividamento, os Ministérios Públicos voltaram a atuar com base legal mais robusta. Contratos padronizados foram coletados, procedimentos internos analisados, práticas de abordagem comercial questionadas.
Resultado: nenhuma condenação estrutural, nenhuma proibição do produto.
Quinta Onda (2023-2024)
O foco voltou-se para consumidores idosos e violações à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Questionou-se a compra e uso irregular de dados de aposentadorias, telemarketing abusivo e violações à LGPD. MPs de São Paulo e Minas Gerais investigaram bancos de dados e parcerias com correspondentes financeiros.
Resultado: até o momento, nenhuma medida efetiva contra o núcleo do grupo Crefisa.
O Empurra-Empurra Institucional
Ao analisar todas as apurações, emerge um padrão comportamental preocupante:
1. Investigações Fragmentada
As investigações sempre focaram em temas isolados — juros, publicidade, refinanciamento, dados, abordagem — mas nunca realizaram uma análise sistêmica do modelo de negócio.
2. Resoluções Ineficazes
- Acordos administrativos sem impacto real
- Ajustes meramente cosméticos
- Arquivamentos justificados pela “competência primária do Banco Central”
3. Blindagem Cruzada
O Ministério Público recua argumentando que:
- O Bacen afirma estar regulando o setor
- Não há limite legal de juros
O Banco Central recua alegando que:
- “Questões consumeristas são regidas pelo CDC e competem ao MP”
O Paradoxo Judicial
Por anos, juízes brasileiros descreveram os contratos da Crefisa com expressões raramente vistas em decisões judiciais: “juros inacreditáveis”, “valores absurdos”, “descolamento gritante da média de mercado”.
Sentenças e acórdãos revelam taxas anuais superiores a 600%, 900% e até mais de 1.000% ao ano — frequentemente dezenas de vezes acima da referência média divulgada pelo próprio Banco Central para empréstimos da mesma natureza.
Enquanto o regulador encerrava discretamente suas apurações, tribunais pelo país produziram decisões demolidoras:
- Juros de 629% ao ano em empréstimo pessoal, posteriormente declarados abusivos
- Contratos com 987% de juros anuais em operações de “crédito rápido”
- Casos com taxas superiores a 497%, quando a média de mercado medida pelo BC era inferior a 40%
- Juros acima de 1.000% ao ano cobrados de consumidores hipervulneráveis, muitos idosos
Todas essas decisões judiciais compartilham um elemento comum: utilizam como parâmetro de comparação as estatísticas oficiais publicadas pelo próprio Banco Central.
A Contradição do Regulador
Paradoxalmente, o órgão regulador que dispõe de toda a inteligência estatística, poder sancionador e instrumentos de supervisão nunca enfrentou estruturalmente o modelo financeiro da Crefisa. Pelo contrário: quando a empresa chegou formalmente ao banco dos réus regulatórios, o desfecho foi discretíssimo — um acordo administrativo sem confissão de culpa e o arquivamento do caso.
A história do que ocorreu entre a Crefisa e o Banco Central é o retrato acabado de como o Brasil regula o sistema financeiro pensando na estabilidade institucional — e não na estabilidade da vida das pessoas.
Há a necessidade urgente de reforma estrutural na regulação do mercado de crédito brasileiro, com foco na proteção efetiva dos consumidores vulneráveis e na responsabilização de instituições que operam modelos de negócio predatórios.