LUIS NASSIF: TIA LEILA, A CREFISA, E O CRÉDITO PREDATÓRIO

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O Império Financeiro de Leila Pereira. 

Leila Pereira, presidente da Sociedade Esportiva Palmeiras, construiu uma trajetória de notável sucesso empresarial. Segundo levantamento da Forbes Brasil, ela e o marido acumulam patrimônio estimado em R$ 8,8 bilhões. À frente da Crefisa — instituição financeira especializada em crédito pessoal e consignado — e da Faculdade das Américas, Leila investiu aproximadamente R$ 1 bilhão no Palmeiras, através de sua empresa “tia Leila” – em patrocínio,  contratação de jogadores, estrutura e marketing. Comprou e disponibilizou para o clube um avião executivo para deslocamentos.

Porém, a Crefisa e seu modelo de negócios representam a face mais problemática do mercado de crédito brasileiro: um campo fértil para práticas abusivas de agiotagem, onde o crédito deixou de ser instrumento de inclusão social para tornar-se mero veículo de lucro predatório.

É um dos ângulos de um modelo predatório que ganhou enorme expansão com a desregulamentação geral da economia, iniciada no interregno Temer e aprofundada no período Paulo Guedes-Roberto Campos Neto.

A Expansão Sobre os Mais Vulneráveis

A Crefisa prosperou oferecendo empréstimos justamente aos mais vulneráveis: negativados (pessoas impedidas de obter crédito em outras instituições), aposentados e trabalhadores de baixa renda. Seu crescimento evidencia o tratamento distorcido que o Banco Central concedeu ao mercado de crédito brasileiro.

Em 2021, o Congresso Nacional aprovou a Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181/2021), estabelecendo os pilares do crédito responsável:

  • Avaliação prévia da capacidade de pagamento do consumidor
  • Informação clara sobre juros, Custo Efetivo Total (CET) e impacto real das parcelas
  • Proibição de práticas que induzam ao endividamento contínuo
  • Proteção especial ao idoso e ao consumidor hipervulnerável

Na teoria, o Brasil adotou o paradigma internacional segundo o qual o crédito não pode ser tratado como mercadoria qualquer — trata-se de um serviço essencial que afeta diretamente a dignidade humana. Na prática, porém, a expansão do crédito seguiu exclusivamente a lógica dos negócios: ampliação indiscriminada da oferta, estímulo ao consumo, desprezo pela capacidade real de pagamento e transferência dos efeitos deletérios dessa política para o Poder Judiciário.

A Armadilha da Dívida Perpétua

O modelo Crefisa opera segundo um ciclo vicioso bem definido:

  1. Concessão inicial de crédito com juros altíssimos
  2. Parcela pequena em relação à renda — psicologicamente aceitável
  3. Renovação da dívida antes do término do contrato
  4. Incorporação dos juros ao novo saldo devedor
  5. Reinício do prazo de pagamento
  6. Retorno ao passo 3

Esse ciclo cria uma dívida permanente, gerando receitas recorrentes para a financeira e impossibilidade estrutural de quitação para o tomador.

O Contraste Internacional

Em países que tratam o crédito como política de bem-estar social, existem mecanismos protetivos claros:

  • Tetos de juros (Estados Unidos, França, Alemanha)
  • Limitação de refinanciamentos sucessivos
  • Proibição de “rollover” (renovação) automático
  • Obrigatoriedade de análise do orçamento familiar
  • Sanções severas contra concessão irresponsável de crédito

No Brasil, o modo como instituições como a Crefisa prosperaram constitui o maior atestado da disfuncionalidade do mercado de crédito e, especialmente, da ineficácia do agente regulador: o Banco Central.

Duas Décadas de Impunidade

Os abusos cometidos pela Crefisa foram alvo de inúmeros processos, todos sem eficácia prática.

Primeira Onda (2013-2015)

O Ministério Público em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul receberam enxurrada de reclamações sobre créditos com juros superiores a 500% ao ano, assédio a aposentados e vendas sem explicações contratuais adequadas.

Procedimentos de investigação civil foram abertos, Termos de Ajustamento de Conduta foram tentados, ações civis públicas por publicidade abusiva e superendividamento foram propostas.

Resultado: ações arquivadas, multas administrativas irrisórias e nenhuma alteração estrutural no modelo de negócios.

Segunda Onda (2016-2018)

O Ministério Público de São Paulo investiu contra a publicidade abusiva que explorava a imagem de atletas populares e fazia promessas implícitas de “dinheiro fácil”.

Resultado: ajustes cosméticos na propaganda, inclusão de alertas em letras mínimas e nenhuma sanção relevante.

Terceira Onda (2019-2021)

Os Ministérios Públicos de São Paulo, Santa Catarina e Paraná entraram com ações questionando o “rollover” e a falta de informação sobre recálculos contratuais.

Resultado: casos encerrados sob o argumento de que a questão estava sob “atuação regulatória do Bacen”.

Surge aqui a primeira blindagem institucional: o MP delega o problema ao Banco Central, que nunca enfrentou o mérito estrutural da questão.

Quarta Onda (2022)

Com a entrada em vigor da Lei do Superendividamento, os Ministérios Públicos voltaram a atuar com base legal mais robusta. Contratos padronizados foram coletados, procedimentos internos analisados, práticas de abordagem comercial questionadas.

Resultado: nenhuma condenação estrutural, nenhuma proibição do produto.

Quinta Onda (2023-2024)

O foco voltou-se para consumidores idosos e violações à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Questionou-se a compra e uso irregular de dados de aposentadorias, telemarketing abusivo e violações à LGPD. MPs de São Paulo e Minas Gerais investigaram bancos de dados e parcerias com correspondentes financeiros.

Resultado: até o momento, nenhuma medida efetiva contra o núcleo do grupo Crefisa.

O Empurra-Empurra Institucional

Ao analisar todas as apurações, emerge um padrão comportamental preocupante:

1. Investigações Fragmentada

As investigações sempre focaram em temas isolados — juros, publicidade, refinanciamento, dados, abordagem — mas nunca realizaram uma análise sistêmica do modelo de negócio.

2. Resoluções Ineficazes

  • Acordos administrativos sem impacto real
  • Ajustes meramente cosméticos
  • Arquivamentos justificados pela “competência primária do Banco Central”

3. Blindagem Cruzada

O Ministério Público recua argumentando que:

  • O Bacen afirma estar regulando o setor
  • Não há limite legal de juros

O Banco Central recua alegando que:

  • “Questões consumeristas são regidas pelo CDC e competem ao MP”

O Paradoxo Judicial

Por anos, juízes brasileiros descreveram os contratos da Crefisa com expressões raramente vistas em decisões judiciais: “juros inacreditáveis”, “valores absurdos”, “descolamento gritante da média de mercado”.

Sentenças e acórdãos revelam taxas anuais superiores a 600%, 900% e até mais de 1.000% ao ano — frequentemente dezenas de vezes acima da referência média divulgada pelo próprio Banco Central para empréstimos da mesma natureza.

Enquanto o regulador encerrava discretamente suas apurações, tribunais pelo país produziram decisões demolidoras:

  • Juros de 629% ao ano em empréstimo pessoal, posteriormente declarados abusivos
  • Contratos com 987% de juros anuais em operações de “crédito rápido”
  • Casos com taxas superiores a 497%, quando a média de mercado medida pelo BC era inferior a 40%
  • Juros acima de 1.000% ao ano cobrados de consumidores hipervulneráveis, muitos idosos

Todas essas decisões judiciais compartilham um elemento comum: utilizam como parâmetro de comparação as estatísticas oficiais publicadas pelo próprio Banco Central.

A Contradição do Regulador

Paradoxalmente, o órgão regulador que dispõe de toda a inteligência estatística, poder sancionador e instrumentos de supervisão nunca enfrentou estruturalmente o modelo financeiro da Crefisa. Pelo contrário: quando a empresa chegou formalmente ao banco dos réus regulatórios, o desfecho foi discretíssimo — um acordo administrativo sem confissão de culpa e o arquivamento do caso.

A história do que ocorreu entre a Crefisa e o Banco Central é o retrato acabado de como o Brasil regula o sistema financeiro pensando na estabilidade institucional — e não na estabilidade da vida das pessoas.

Há a necessidade urgente de reforma estrutural na regulação do mercado de crédito brasileiro, com foco na proteção efetiva dos consumidores vulneráveis e na responsabilização de instituições que operam modelos de negócio predatórios.

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