INSPIRADO EM PAULO FREIRE, MOVIMENTO CAMPONÊS DA INDONÉSIA CRITICA HERANÇA DO NEOLIBERALISMO
                Lider do SPI, Henry Saragih aponta contradições do ‘socialismo indonésio’ que ainda beneficia grandes empresas
O Serikat Petani Indonesia (SPI) é o maior movimento camponês da Indonésia; Henry Saragih é uma das principais lideranças – Foto: arquivo pessoal
Inspirado por Paulo Freire e pela pedagogia do oprimido, o SPI integra a Via Campesina desde 1996 e trava lutas semelhantes às do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST): contra o agronegócio exportador, pela reforma agrária e pela soberania alimentar.
Em entrevista exclusiva, Henry Saragih, uma das principais lideranças do SPI, faz uma avaliação contundente da década de governo Jokowi. “No primeiro mandato, a agenda era progressista e vinha dos movimentos sociais. Prometeram a reforma agrária, toda a mudança do modelo econômico. Mas no segundo mandato, voltaram para outro paradigma” com a implementação da lei omnibus que, segundo ele, representa “toda a agenda neoliberal: liberalização, privatização, flexibilização das leis trabalhistas, mercado aberto”.
Do total de 9 milhões de hectares prometidos para reforma agrária em 2014, Jokowi cumpriu “muito pouco”, usando apenas títulos de propriedade sob pressão do Banco Mundial, que “realmente não permite que a reforma agrária seja possível”.
Sobre Prabowo Subianto, atual presidente e genro de Suharto, Saragih reconhece a contradição: enquanto nas campanhas de 2014 e 2019 se posicionava “mais à direita” que Jokowi, agora “criticou fortemente as políticas neoliberais” e defende a “economia da Pancasila indonésia”, uma espécie de socialismo indonésio baseado no princípio do gotong royong (trabalhar juntos).
No Fórum Econômico de São Petersburgo, Prabowo propôs “um regime econômico diferente, uma mistura do melhor do capitalismo e do melhor do socialismo”. Mas a implementação das políticas revelam limites estruturais: o programa de distribuição massiva de refeições e a criação de cooperativas rurais — esta última foi originalmente propostas pelo SPI — têm sido desvirtuadas por uma execução “burocrática, militarista” que “beneficia o capital, abrindo espaço para as grandes empresas” em vez de fortalecer a organização popular.
A SPI participou da fundação do Partido Trabalhista que, nas eleições de 2024, conquistou um milhão de votos e elegeu cerca de 30 parlamentares em nível provincial e distrital, embora não tenha alcançado os 4 milhões necessários para representação no parlamento nacional.
Para Saragih, a esperança de mudança depende da pressão dos movimentos: “temos que trabalhar duro para isso”, porque Prabowo “não vem dos movimentos sociais, vem da tradição militar” e “o papel das grandes empresas ainda é muito forte dentro do seu governo”.
Brasil de Fato – Antes de mais nada, você poderia apresentar brevemente o SPI ao público brasileiro e de outros países? Quando o movimento foi criado, quais são as principais reivindicações e formas de luta?
Henry Saragih – O embrião da nossa organização, Sindicato dos Camponeses da Indonésia (SPI), foi criado no final da década de 1980, durante o regime ditatorial de Suharto. Naquela época, o povo não podia criar organizações camponesas, trabalhistas ou de mídia, exceto as organizações governamentais.
Durante esse período, sob o regime do ditador Suharto, eles tomaram as terras dos povos indígenas para criar plantações e empresas florestais industriais. A área costeira foi tomada para criar a grande indústria marinha. Muitas de nossas terras foram perdidas. Agricultores e povos indígenas perderam suas terras.
Por causa disso, nós, camponeses, estamos lutando caso a caso para recuperar as terras. Desde o início da década de 1990, começamos a construir a organização camponesa em nível local, porque em nível nacional não nos era permitido. Durante esse período, enfrentamos principalmente violência.
Mais ou menos na mesma época que surge o MST, certo?
Mais ou menos na mesma época, sim. Na década de 1990, começamos a construir, mas apenas no nível local, na província, não no nível nacional, porque era proibido. Mas passamos por isso, não era legal, e continuamos construindo.
Em 1996, nos unimos à La Via Campesina. Prestamos solidariedade à luta em Eldorado de Carajás, no Brasil, onde ocorreu o massacre. Desde então, 17 de abril é o dia das lutas dos camponeses.
No início, nossa luta era pela questão da reforma agrária. Depois que nos unimos à La Via Campesina, começamos a nos mobilizar por questões mais amplas, como soberania alimentar e biodiversidade.
Ao mesmo tempo, desde o início, também estávamos construindo nossa plataforma pelo direito dos camponeses. Muitos de nós tivemos que lidar com a violência do governo. Fazemos aos camponeses uma pergunta muito simples: quais são os nossos direitos? Os trabalhadores têm um instrumento internacional através da Organização Internacional do Trabalho. As mulheres têm direitos, mas nós, camponeses, não temos direitos. É por isso que a La Via Campesina começou a construir a plataforma dos direitos dos camponeses.
Em 2001, organizamos uma conferência sobre “reforma agrária e camponeses”, aqui mesmo na Indonésia. A partir dos resultados, levamos os princípios do direito dos camponeses para a La Via Campesina regional e continuamos a discuti-los no âmbito global. Essa é a nossa história: temos construído a partir da base, caso a caso, conquistando organizações em nível local e, depois, em nível nacional.
Existem semelhanças entre a realidade do campo na Indonésia e no Brasil?
No Brasil, vocês se tornaram uma agricultura industrial, com grandes plantações para a exportação. Na Indonésia é a mesma coisa. Quanto ao clima, somos ambos tropicais. Ambos temos a floresta tropical.
Na Indonésia, temos plantações de óleo de palma e cresce a floresta industrial, a palma e o papel. Vocês têm soja. No Brasil, vocês não implementaram a reforma agrária. Na Indonésia também não. Esse é o contexto da economia política que nos torna semelhantes.
As formas de luta dentro da La Via Campesina também são mais ou menos semelhantes. Por exemplo, vocês dizem “ocupar a terra”. Mas nós, na Indonésia, não dizemos “ocupar a terra”, dizemos “recuperar a terra”. Porque se dizemos recuperar, significa que é a nossa terra que foi tomada, foi roubada, e reivindicamos novamente. Mas se dizemos ocupar, não é nossa.
Outro ponto também é importante: Paulo Freire é muito famoso na Indonésia.
Paulo Freire? Isso é incrível. Durante os anos 1980 e 1990?
Sim. Nosso movimento incorporou os princípios do livro “A Pedagogia do Oprimido”. Na verdade, todas as pessoas envolvidas no ativismo durante os anos 1980 e 1990 liam esse livro. Era o livro básico para nós. Também Ivan Illich.
Mas quais são as principais formas de luta que vocês usam para reivindicar suas terras e direitos?
Para o povo indonésio, temos clara a nossa história: era pré-colonial, colonial (Holanda e Japão), independência da Indonésia, depois passamos pela era ditatorial, e agora estamos na era neoliberal. Para nós, isso é claro.
Nossa independência foi com a revolução de 1945, mas não éramos realmente independentes. Ainda era o eixo colonial. Nacionalizamos a economia em 1956, após dez anos. Depois, em 1960, a lei de reforma agrária.
Nosso mandato na independência da Indonésia é acabar com a colonização, que significa terras só para as corporações transnacionais. Essa é a nossa luta: recuperar nossas terras, não apenas para os povos indígenas, mas também para os não indígenas.
Por meio da educação para o movimento, com a inspiração de Paulo Freire, libertamos as pessoas, não as domesticamos. Para conscientizar as pessoas. Porque a empresa de “plantation” é a colonização. Dizemos que o regime de Suharto é a continuidade da colonização, porque é a continuidade da “plantation”.
Quantas pessoas estão envolvidas no SPI nos vários níveis de envolvimento?
Eu calcularia cerca de um milhão. Mas os membros são cerca de 200 mil. Recuperamos cerca de 600 mil hectares. Na verdade, nossa meta para este ano é um milhão de hectares.
Nós exigimos do governo de Jokowi (2014-2024) que implementasse a reforma agrária. Eles prometeram distribuir 9 milhões de hectares em 2014 para a reforma agrária. Mas ele cumpriu muito pouco da reforma agrária. O que ele fez foi por meio de títulos de propriedade, porque o governo indonésio tem muito apoio do projeto do Banco Mundial. E o Banco Mundial realmente não permite que a reforma agrária seja possível.
Você acabou de mencionar a promessa de Jokowi. Como você avalia as políticas de Jokowi para os camponeses da Indonésia e para a classe trabalhadora em geral?
O Jokowi do primeiro mandato é diferente do Jokowi do segundo mandato. No primeiro mandato, a agenda e o planejamento nacional vieram de nós, dos movimentos sociais e da plataforma política. A questão era como implementar uma agenda de soberania econômica para a Indonésia. Eles prometeram a reforma agrária, prometeram toda a mudança do modelo econômico. Era uma agenda progressista.
No segundo mandato, eles se voltaram para outro paradigma. Implementaram o que chamamos de “lei omnibus”. Disseram que era para criar empregos. Mas, na verdade, trata-se da liberalização, privatização e flexibilização das leis trabalhistas. Toda a agenda neoliberal: mercado aberto.
Na agricultura, política de banco de terras. No final das contas, prometeram a reforma agrária, mas não a implementaram. A agenda dos trabalhadores, a mesma coisa. E toda a agenda progressista, a mesma coisa. Estamos tentando cancelar essa lei, mas eles a renovaram com mandato especial para fazer a lei omnibus. Abrir o mercado, importar alimentos, dar grandes oportunidades para as corporações e cancelar o programa de reforma agrária.
Você disse que no primeiro mandato a agenda foi progressista, no segundo mandato se voltou ao neoliberalismo. Uma coisa que também tenho ouvido é que Jokowi investiu muito dinheiro em infraestrutura, mas faltou dinheiro para educação, saúde, reforma agrária. Você concorda com isso? Como você avalia os 10 anos de governo de Jokowi?
Acho que ele ainda está fazendo o que o Banco Mundial quer. Queremos infraestrutura, mas não dentro dos critérios do Banco Mundial. Porque o que Jokowi realmente faz é implementar a política do Banco Mundial.
Como o exemplo dos aeroportos: eles estão construindo grandes aeroportos, como em Yogyakarta, em Java Ocidental, mas não estão funcionando agora. Estão construindo rodovias com pedágios. Privadas. No último caso, vemos o trem de alta velocidade chinês, que chamamos de Woosh. Queremos o trem, mas a passagem é muito cara porque ele não está construindo com nossos recursos.
A Indonésia tem capacidade para construir trens, mas talvez não como os chineses, não tão sofisticados. Mas isso não é necessário, certo?
E quanto a Prabowo, como você avalia as políticas dele para os camponeses?
Prabowo concorreu duas vezes contra Jokowi. Jokowi foi muito progressista na campanha. Prabowo, mais à direita na campanha, em 2014 e 2019. Em ambas as campanhas, Jokowi falou sobre a reforma agrária. Prabowo, não.
O irmão dele é proprietário de uma empresa florestal e de uma empresa de “plantation” para a indústria da papoula e do óleo de palma. É o irmão que cuida do negócio. Portanto, Prabowo não mencionou a reforma agrária, nem usou o termo soberania alimentar. Prabowo fala sobre autossuficiência, apenas sobre o aumento da produção.
Prabowo está mais à direita do que Jokowi nas campanhas. Mas, para a implementação após a vitória nas eleições, Jokowi vai para a direita. Por outro lado, Prabowo criticou fortemente as políticas neoliberais. Ele disse: “Sou a favor da economia da Pancasila indonésia como nosso princípio básico”, o que significa uma espécie de “socialismo indonésio”.
O que você acha da declaração que ele fez há alguns meses, no Fórum Econômico de São Petersburgo, dizendo que estão propondo um regime econômico diferente, uma mistura do melhor do capitalismo e do melhor do socialismo?
Acho que parte do que ele disse em seu discurso foi implementado. Mas ele tem sua própria maneira de implementar. Como, por exemplo, o programa massivo de distribuição de refeições. Ele distribui por meio da organização militar, com o modelo de distribuição militar. Mas isso é muito caro, burocrático e centralista.
Ele não gosta de usar a organização popular. Você acaba tendo problemas, como os 8 mil estudantes que tiveram intoxicação alimentar. Porque está sendo produzido nas cidades e leva horas para chegar às aldeias. Eles deveriam fazer uma cozinha lá, perto das escolas. Deveria servir como base para a organização na escola.
Mas não: uma grande empresa na cidade cozinha 3 mil pratos por dia, talvez cozinhem à noite, e no dia seguinte, às 12 horas, será consumido pelos estudantes. Isso não é bom. Seria diferente se cozinhassem na escola. E, claro, a comida não vem dos agricultores. Vem das indústrias. É assim que Prabowo está implementando o programa.
E como você avalia a política de criar milhares de cooperativas nas áreas rurais?
A ideia foi nossa, do SPI. Nós a apresentamos ao atual ministro da cooperativa, porque ele é meu amigo próximo. A ideia é criar cooperativas para os produtores rurais. Para implementar a reforma agrária, precisamos ter cooperativas, como na China e no Vietnã.
Mas, no processo político, eles estão mudando a natureza das cooperativas. Estão criando cooperativas para cada povoado, pequenas, e isso traz uma limitação em termos de escala.
Queremos cooperativas para a produção de alimentos. Mas as cooperativas que estão criando são apenas para a distribuição dos alimentos produzidos pelas grandes empresas ou empresas estatais. São cooperativas para as aldeias, não cooperativas para os camponeses. A ideia original não era essa: era que nós produzíssemos e depois vendêssemos os nossos produtos.
Como você pode ver, nos dois casos, tanto no programa de refeições quanto no programa de cooperativas, você diria que é uma boa ideia, mas a forma de implementação é burocrática, militarista e beneficia o capital, abrindo espaço para as grandes empresas.
Você acha que há alguma chance do governo ouvir, por exemplo, a SPI ou os movimentos, ou mesmo outras organizações da sociedade civil, em termos de melhorar a implementação?
Ainda não sabemos. Veja o caso dos trabalhadores: é a primeira vez, desde a era Sukarno, que o presidente participa de um evento do Dia do Trabalhador. Ele prometeu tudo naquele dia. Mas agora, após quatro meses, nada foi implementado. Por quê? Porque muitos de seus ministros rejeitam as políticas que ele propôs. Acho que talvez apenas uma tenha sido implementada. Seis ou sete ministros se reuniram com Prabowo para dizer: “Não cumpra seu compromisso com os trabalhadores”.
Ao mesmo tempo, Prabowo era o presidente do sindicato dos camponeses criado durante a era Suharto. Se chamava HKTI. Quando Prabowo quis se tornar ativo na política, antes de criar o partido, ele assumiu o sindicato dos camponeses e se tornou presidente em 2000. Mais tarde, ele criou o partido em 2008, o Partido Gerindra, que significa Grande Movimento da Indonésia. É muito nacionalista.
Mas voltando ao discurso de Prabowo em São Petersburgo: isso é apenas um discurso? Ele acredita nisso? Porque é surpreendente o genro de Suharto dizer isso, não?
Ainda estamos tentando entender Prabowo. Duas coisas são importantes. A primeira é que o pai de Prabowo foi um dos fundadores do Partido Socialista. Prabowo entende muito bem sobre socialismo, comunismo e democracia.
A segunda é que, na Indonésia, nossa ideologia é a Pancasila. A Pancasila é o socialismo indonésio, proclamado em nossa Constituição após nossa independência em 1945. É um debate muito longo. É diferente do comunismo socialista e diferente do Islã, com a ideologia islâmica. Isso é a Pancasila. Chamamos isso de Gotong Royong: trabalhar juntos. Não nos referimos à estrutura de classes, mas usamos o conceito de trabalho conjunto. Acho que foi isso que ele disse. Ele representa a conferência Ásia-África, a Conferência de Bandung.
Você acha que esse discurso pode ter uma aplicação concreta ou efeitos em sua política nos próximos anos? Você acredita nisso?
Temos que trabalhar duro para isso. Duas coisas tornam isso difícil. A primeira é que ele não vem dos movimentos sociais. Ele não vem das bases. Ele vem da tradição militar, com o comando desse tipo.
A segunda é que o papel das grandes empresas ainda é muito forte dentro do seu governo. É por isso que ele levanta uma questão popular, mas sem implementação popular, como mencionei antes. A Fundação Rockefeller também está trabalhando para o programa de alimentação. Ele ficou entusiasmado quando a Rockefeller o aplaudiu.
Tivemos mais diálogo com Jokowi em seu primeiro mandato, mas agora com Prabowo, há menos diálogo.
O SPI ajudou a formar um novo partido? Quando o partido foi criado e como está a situação atual?
É o Partido Trabalhista, criado após a queda de Suharto, em 1999. Mas eles não concorreram às eleições de 2014 a 2019. Nós, organizações camponesas e sindicatos de trabalhadores, nos unimos e começamos a reconstruir o partido.
Nas últimas eleições, em 2024, concorremos à presidência e ao parlamento. Não tivemos sucesso em nível nacional. Tivemos um milhão de votos e o limite mínimo para entrar no parlamento nacional é de quatro milhões. Mas tivemos sucesso em nível provincial e distrital. Elegemos cerca de 30 parlamentares.