LUIS NASSIF: XADREZ DO CAOS PLANEJADO PELA ULTRADIREITA

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Crítica é que não há ausência do Estado, mas sim uma presença cúmplice, negociada, seletiva e reguladora da atuação do crime, e com milícias.

Ponto 1 – a operação desastrosa

Segundo a especialista Jacqueline Muniz, da Universidade Federal Fluminense, uma das grandes especialistas em segurança pública, pode-se descrever o massacre de ontem em cinco pontos:

  1. Populismo bélico e teatro político:
    A operação serviu mais como espetáculo midiático do que como ação de segurança pública eficaz. Segundo Jacqueline, tratou-se de uma “operação instagramável”.
  2. Letalidade extrema com efeitos nulos:
    Atingiu criminosos de base, sem tocar nos líderes ou estruturas do crime organizado. Sabotou investigações, desorganizou a cidade e produziu medo.
  3. Ausência de integração institucional real:
    Nenhuma articulação efetiva entre polícia, Ministério Público, Defensoria, bombeiros, guarda municipal ou agentes de trânsito. Um “bloco do eu sozinho”.
  4. Desrespeito aos protocolos policiais:
    Foram ignorados os próprios manuais operacionais da PMERJ e da PCERJ, e também os parâmetros da ADPF das Favelas (ADPF 635), que visam limitar abusos em operações.
  5. O Estado como organizador do crime:
    A crítica mais forte é que não há ausência do Estado, mas sim uma presença cúmplice, negociada, seletiva e reguladora da atuação do crime — inclusive com milícias.

Ponto 2 – a disputa territorial

O massacre de 28 de outubro de 2025 ocorreu nos complexos do Alemão e da Penha, palco de uma sangrenta disputa entre o Comando Vermelho (CV) e o Terceiro Comando Puro (TCP).

  • O TCP tenta retomar áreas dominadas pelo CV, especialmente em zonas com tráfico e milícia.
  • O CV expande sua presença em antigos redutos do TCP.
  • Ambas as facções impõem controle brutal sobre a população, regulando comércio e circulação com base no medo.

O TCP se identifica como cristão evangélico, autodenominando-se “Soldados de Jesus”. Inspiram-se em uma “guerra santa”, usando a estrela de Davi como símbolo. Seu líder, conhecido como Peixão, domina o Complexo de Israel — um conjunto de favelas da Zona Norte, batizado como referência à “Terra Prometida”.

Segundo o policial federal Roberto Uchoa:

“Nos últimos anos, CV e TCP conquistaram territórios antes dominados por facções ligadas ao PCC, que passou a focar no mercado internacional, onde os lucros superam os do varejo interno. Estima-se que o PCC fature bilhões de dólares por ano com a venda de cocaína boliviana na Europa.”

No Rio, o controle territorial envolve também milícias e a facção ADA (Amigo dos Amigos).

Um dia antes do massacre, houve confronto entre CV e TCP no Morro da Pedreira, com quatro mortos, incluindo civis. O jornalista Sérgio Ramalho observou que a ofensiva policial mirou apenas o CV, poupando o TCP.

Não houve ocupação dos territórios. Após o massacre, as forças policiais se retiraram, deixando dezenas de corpos nas matas. O enfraquecimento do CV abre espaço para o avanço do TCP — e para mais mortes. E para seu principal concorrente, as milícias cariocas, ponto de partida para a carreira política de Jair Bolsonaro.

Durante a GLO (Garantia da Lei e da Ordem) comandada pelo general Braga Neto, as milícias foram ignoradas. As operações se concentraram em áreas dominadas pelo tráfico, com raríssimos confrontos contra milicianos.

Peça 3 – a disputa política

A matança ordenada por Cláudio Castro teve dois efeitos principais:

  • Reforço da ofensiva da direita, após o desgaste causado pelo caso das tarifas.
  • Criação de um clima de insegurança no Rio, justificando novas ações policiais.

A tendência é clara: ações orquestradas contra comunidades, sob o pretexto de combater o crime organizado, espalhando insegurança pelo país.

Em 2020, a rebelião da PM do Ceará gerou instabilidade nacional e abriu espaço para operações de GLO. Algo semelhante parece estar sendo preparado em estados governados pela direita — como Minas Gerais, Goiás e Paraná — a julgar pelas declarações de seus governadores.

A direita bolsonarista nasceu da aliança com milícias de Rio das Pedras. O governador Cláudio Castro pertence ao baixo clero carioca, com votações em redutos dominados por facções. Governadores de direita têm resistido ao Plano Nacional de Segurança Pública.

Na campanha de 2018, Bolsonaro afirmou que áreas controladas por milícias “não têm violência” e que elas seriam uma forma de proteger as comunidades. Chegou a sugerir que sua atuação deveria servir de modelo.

Durante seu governo, houve ações que favoreceram o crime organizado:

  • Liberação indiscriminada de armas para CACs.
  • Transferência dos registros da Polícia Federal para o Exército, com flexibilização.
  • Redução da fiscalização da Receita e da PF no porto de Itaguaí, facilitando o contrabando de armas.

Mesmo assim, seu eleitorado atribui a insegurança ao governo federal, ignorando a resistência dos estados ao plano nacional.

Peça 4 – os próximos passos

No massacre de 2006, em São Paulo, as execuções só diminuíram após o MPF, com apoio do Conselho Regional de Medicina, enviar médicos legistas ao IML. A partir das autópsias, abriram-se os inquéritos.

Ontem, o MPF do Rio tomou medida semelhante: enviou ofício ao diretor do IML solicitando informações sobre os protocolos adotados, especialmente o DVI (Desastre Victim Identification) e o Protocolo de Minnesota.

O Protocolo de Minnesota sobre a Investigação de Mortes Potencialmente Ilícitas é um documento das Nações Unidas que define padrões internacionais para investigar mortes causadas por agentes do Estado — especialmente quando há suspeita de execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias.

Ele nasceu em 1991 (daí o nome: a primeira versão foi redigida em Minnesota, EUA, por especialistas da ONU) e foi revisado em 2016 para refletir avanços em direitos humanos, ciência forense e justiça criminal.

O MPF exige que os laudos necroscópicos incluam:

  1. Descrição completa das lesões externas e internas.
  2. Identificação e extração de projéteis para perícia.
  3. Exames radiográficos dos corpos.
  4. Croqui das lesões.
  5. Fotografias detalhadas das lesões e características individualizantes.
  6. Discussão sobre trajetória dos projéteis e distância dos disparos.

A resposta deve ser enviada em até 48 horas via Protocolo Eletrônico do MPF. Com os laudos, será possível avançar na responsabilização criminal.

Peça 5 – a cadeia produtiva do tráfico

O tráfico funciona como uma cadeia produtiva estruturada:

  1. Plantio
    Contratos com produtores.
  2. Transporte até o refino
    Por barco ou caminhão.
  3. Laboratório de refino
    Contratos com laboratórios e fornecedores de químicos.
  4. Logística até o ponto de venda
    Distribuição interna.
  5. Venda interna
    Parcerias com organizações criminosas locais.
  6. Venda externa
    Transporte até o porto, travessia oceânica e acordos com facções nos países de destino.

O empreendedor do tráfico organiza todos os elos da cadeia, podendo terceirizar partes. Recorre a doleiros, que apresentam o negócio a clientes. Após o acerto, os lucros são divididos e o dinheiro lavado.

Com o tempo, grandes facções — especialmente o PCC — passaram a dominar todo o fluxo, com capital próprio para financiar a operação. O financiamento migrou dos doleiros para parcerias com fintechs e fundos de investimento.

Diante desse contexto, a operação no Rio parece menos uma ação estatal de retomada de território e mais um ajuste entre facções.

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