THAÍS FIDELIS BRUCH: A EDUCAÇÃO NÃO DEVE SER ÂNCORA, MAS LEME
A educação não deve ser âncora, mas leme
por Thaís Fidelis Alves Bruch
Há poucos dias foi publicado o Decreto nº 12.686/2025, que instituiu a “Política Nacional de Educação Especial Inclusiva” e a “Rede Nacional de Educação Especial Inclusiva”. O Decreto vem gerando acalorados debates, especialmente entre profissionais e instituições que se dedicam às pessoas com deficiência (PCDs), tais como as escolas especiais e APAES. Isso porque a interpretação das normas contidas no citado regulamento dá conta que as matrículas das PCDs terão de ocorrer em escolas de ensino regular (art. 1º, §3º do Decreto nº 12.686/2025).
Registre-se que a Lei Brasileira de Inclusão (LBI – Lei nº 13.146/2015) também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPCD), nesse aspecto, estabelece o direito ao acesso e à permanência em todo tipo de instituição de ensino. O EPCD definiu como crime, inclusive, a recusa de matrícula de alunos com deficiência, sob pena de até cinco anos de prisão, além de multa (artigo 98).
Os benefícios da educação inclusiva para todos, PCDs ou não, já estão solidamente comprovados, e é inegável que, nos últimos 30 anos, o Brasil avançou nessa área – ainda que a implementação tenha se dado precariamente, uma vez que não houve uma transição planejada. Dentre as falhas, destaca-se, dentre outras, que (i) o treinamento dos professores para lidar com alunos PCDs foi insuficiente, redundando no despreparo de professores e sobrecarga de trabalho, gerando adoecimento mental; (ii) os ambientes de sala de aula não são apropriados para acolher todo tipo de deficiência; (iii) há subdimensionamento da força de trabalho e (iv) há indisponibilidade de adaptação de material.
Ou seja – e sem desconsiderar a complexidade do tema – embora a legislação, teoricamente, figure como avançada, não se pode dizer o mesmo em relação à sua efetividade e à sua operacionalização no mundo dos fatos.
A complexidade inicia-se desde o momento da manifestação do interesse da vaga para o aluno que é PCD, pois, “de repente”, abre-se uma janela de criatividade ilimitada de como elaborar desculpas de “chá de sumiço” da vaga. Prossegue na atenta observação das atividades escolares de cada dia de seu filho ou filha: completamente diferentes dos coleguinhas. E aqui repousa a razão da escrita desse pequeno artigo, realizada no dia do aniversário de 6 anos do meu filho mais novo, Thomas, autista, nível 3 de suporte (não verbal).
Talvez, caríssimos e caríssimas, a felicidade dele e da nossa família não esteja na educação inclusiva e especial na escola regular. Talvez, daqui a alguns anos, decidamos matriculá-lo na escola especial. Isso porque a melhor interpretação jurídica é a sistêmica, e lei específica estabelece a “preferência” e não “imposição” dos pais e cuidadores. Mas, sobretudo, porque, às vezes, é preciso desistir.
Estamos tão condicionados a determinados estereótipos que os conceitos a ele atrelados ficam sedimentados. Um deles é o do “perseverar a qualquer preço”. Um exemplo que extraí foi do livro “O Velho e o Mar”, de Ernest Hemingway. Explico: a personagem principal, o já bem envelhecido e empobrecido pescador Santiago, que estava há 84 dias sem pescar, ingressa sozinho em alto mar, afastando-se da costa, na tentativa de provar para seus colegas que iria acabar com a “má-sorte”. Ele vivia em um casebre, em que não havia praticamente nada; cobria-se com jornais para dormir e a única ajuda que recebia era de um menino chamado Manolin, que era uma espécie de aprendiz, mas estava proibido de acompanhá-lo devido ao seu “azar” dos últimos tempos.
A pesca em alto mar dura três dias e Santiago consegue pescar um marlim gigantesco, a ponto de não caber em seu pequeno barco. Ele luta por mais de um dia com o peixe, até conseguir matá-lo, causando vários ferimentos. No retorno à terra, sua presa é atacada diversas vezes por tubarões, e ele gasta todas as suas energias lutando, em vão, contra os predadores, chegando à costa apenas com a carcaça do peixe e quase desfalecido.
Esta obra, obviamente, possui múltiplas interpretações; umas das mais conhecidas é a tal da “resiliência”, muito ligada ao caduco sonho norte-americano, e à música da Xuxa “tudo pode ser, só basta acreditar”. Infelizmente, nem “tudo pode ser”; só algumas coisas. Será que esse senhor não estaria descansando se tivesse uma aposentadoria digna? Será que ele arriscaria a sua vida e sofreria tanta dor física e emocional se houvesse algum suporte estatal ou familiar? Eu prefiro outra interpretação para embasar as respostas desses questionamentos: às vezes, é sábio desistir, mas também para isso é necessário que se tenha um terreno para pousar.
No caso de não ocorrer a contento o direito à educação das crianças e adolescentes PCDs na escola regular, é importante que tenhamos a possibilidade de escolher outros caminhos, como as salas especializadas e as escolas especiais. É imprescindível que a elas também sejam reservados papéis e financiamentos de destaque. Eis a razão pela qual o Decreto nº12.686/2025 deve ser alterado para estar em consonância com os demais diplomas legais que regem a matéria.
Thaís Fidelis Alves Bruch– Mestra em Direito: Fundamentos Constitucionais de Direito Público e Direito Privado (PUC/RS). Procuradora do Trabalho (MPT/MPU). Ex-Procuradora Federal (AGU/PGF). Membra do IPEATRA. Membra do MP Transforma. Integrante do Grupo de Estudo Inteligência Artificial e Automação: Impactos na Ergonomia e no Meio Ambiente de Trabalho – Saúde Mental e Riscos Psicossociais.