“NEM DITADURA, NEM PARTIDO COMUNISTA, FOI A CIA QUE PRIMEIRO DESCOBRIU LULA, EM 1966”, AFIRMOU O BIÓGRAFO DE LULA,FERNANDO MORAES
 
                Inspirado por Assange, escritor descobriu que EUA produziram 819 documentos em ‘megaespionagem’ sobre presidente
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Os Estados Unidos têm essa obsessão pela espionagem, eles se consideram donos de todos nós
Em 2017, Fernando Morais foi a Londres, no Reino Unido, para entrevistar Julian Assange, o fundador do Wikileaks, que estava exilado na embaixada do Equador na época. Após horas de conversa sobre como o jornalista australiano tinha feito para vazar milhares de dados sigilosos sobre os Estados Unidos, o escritor brasileiro pensou: “mas será que eu não consigo fazer isso [com os dados] sobre o Lula?”.
Na época, Morais ainda estava escrevendo o volume um da biografia do presidente brasileiro, lançada no final de 2021. A segunda e última parte está prevista para este ano.
A inquietação do biógrafo rendeu. Ele utilizou uma ferramenta jurídica estadunidense que obriga o governo a compartilhar todos os documentos que possuem sobre a pessoa que está requisitando tais informações.
Assim, Morais teve que pedir para Lula, que na época estava preso em Curitiba (PR), assinar diversas folhas em branco em formato de procuração, para apresentá-las às autoridades.
Com apoio de um escritório de advocacia que atua nos Estados Unidos, chegou a primeira parte da informação: desde 1966 o país monitora Lula. De lá até 2019 já foram produzidos 819 documentos, totalizando mais de 3 mil páginas.
O conteúdo dos documentos deve chegar nos próximos dias. Morais recebeu apenas os títulos dos arquivos e a informação dos EUA de que o conteúdo completo pode ser compartilhado em um prazo de 20 dias, prorrogáveis por mais 20.
“Tem umas coisas assim: ‘registros de conversas entre o Presidente Lula e a presidente Dilma’. Mas, pô, presidente Lula e presidente Dilma conversam há 20 anos, conversa em público, conversa na televisão… Para caber num arquivo de documento secreto o que terá vindo nesse diálogo?”, comenta Morais em entrevista ao programa Bem Viver desta sexta-feira (19).
“A certa altura, eles dizem, ‘diálogos do presidente Lula com militares brasileiros sobre Petrobras’. O que será isso? Será que é pressão? Por que os Estados Unidos estariam interessados em uma conversa do Lula com o general brasileiro para tratar de petróleo?”
“Os Estados Unidos têm essa obsessão pela espionagem por uma razão, não é por casualidade, é por um espírito colonialista, eles se consideram donos de todos nós.”
Confira a entrevista na íntegra
Te surpreendeu esse volume de documentos?
É uma megaespionagem sobre o presidente. Eu me surpreendi, me surpreendi muito. Tem uma passagem curiosa do primeiro volume do [livro sobre] Lula, que eu questiono: “quem será que descobriu o Lula primeiro? O Partido Comunista ou a polícia?”
Porque o Partido Comunista andou de olho nele durante muito tempo e ele acabou se recusando a se filiar. E a polícia também andou atrás do Lula desde cedo. Eu tinha uma curiosidade… E cheguei à conclusão de que tinha sido a polícia.
Só que agora, com essas informações que vêm de Washington, eu descobri que não foi a polícia, foi a CIA [agência de inteligência do governo federal dos Estados Unidos].
O primeiro registro do Lula no Dops [Departamento de Ordem Política e Social] é um registro de 1974. Ora, se a CIA estava espionando o Lula desde 1966, ela já temia que o Lula viesse a ser o que virou muito antes da polícia e muito antes do partido [Comunista].
Eu me animei a fazer esse trabalho, para tentar fazer, né, porque não sabia se ia dar certo… Quando eu fui entrevistar o Julian Assange que estava ainda exilado na embaixada do Equador, em Londres, eu fiquei com uma pulga atrás da orelha que era o seguinte: ‘Olha, se ele [Assange], apesar de ser um especialista, um técnico de alta qualificação, conseguiu abrir segredos os Estados Unidos para o mundo inteiro’.
Eu fiquei com aquilo na cabeça, “mas será que eu não consigo do Lula?” E descobri o caminho, descobri que a legislação americana tem brechas que te permitem, é algo semelhante ao habeas data, que foi criado aqui no Brasil, dependendo das circunstâncias, você pode requerer a sua ficha nos órgãos de segurança.
Mas descobri que um estranho não pode. Ou seja tem que ser você, ou um procurador seu.
Quando eu descobri isso, o presidente Lula estava preso. Então numa das viagens que eu fiz a Curitiba, eu pedi a ele que me desse 16 folhas de papel assinadas em branco. Por que 16? Porque os Estados Unidos têm 16 agências de inteligência, voltadas para as mais diferentes atividades.
Então nós e a editora [da biografia do livro] contratamos um pesquisador especializado nessa área nos Estados Unidos. Mas os Estados Unidos ficaram empurrando o caso com a barriga, dizendo que a gente tinha pedido muita coisa, que ainda não estava pronto… Aquilo me pareceu muito suspeito.
Cheguei a pensar que era por conta do governo Trump, que isso pudesse ser uma objeção do governo.
Aí eu soube que eu podia contratar um escritório de advocacia ou britânico ou norte-americano para poder levantar esses dados para mim.
Coincidiu que um grande escritório anglo-americano, que está defendendo – veja vocês, as coincidências – o povo de Brumadinho e o povo de Mariana [atingidos pelo rompimento de barragens da mineração em Minas Gerais] no processo contra a Vale lá nos tribunais de Londres. E, por uma dessas coincidências, eu sou nascido em Mariana.
Então eles toparam me defender sobre os arquivos americanos, sem cobrar.
E aí na semana passada eles disseram “olha, tem uma grande notícia pra você, saiu a lista com os documentos”. Eu falei: “o que é que significa?”. Significa o seguinte: “eles têm 20 dias, propagáveis por mais 20, para te dar os documentos que aparecem nessas listas que estão te dando hoje”.
Então eu acho que mais duas, três semanas a gente tem isso na mão.
E o que o senhor acredita que pode estar nesses documentos?
Muito difícil saber, porque você não sabe o que eles estavam buscando. Tem umas coisas assim: “registros de conversas entre o Presidente Lula e a presidente Dilma”.
Mas, pô, presidente Lula e presidente Dilma conversam há 20 anos, conversa em público, conversa na televisão… Para caber num arquivo de documento secreto o que terá vindo nesse diálogo?
Tem coisas assim, muitos suspeitas. A certa altura, eles dizem, “diálogos do presidente Lula com militares brasileiros sobre Petrobras”. O que será isso?
Será que é pressão? Por que os Estados Unidos estariam interessados em uma conversa do Lula com o general brasileiro para tratar de petróleo?
O que tudo isso diz sobre a postura dos Estados Unidos?
Olha é muito difícil saber o que estavam bisbilhotando, mas ao mesmo tempo é muito fácil aceitar, reconhecer que eles têm agências montadas para isso desde o fim da Segunda Guerra Mundial [1939-1945].
Eu sou capaz de passar aqui uma hora, duas horas, relacionando casos que eu conheço de trabalho da CIA em Cuba. O que a CIA fez em Cuba, ao longo dos últimos 60 anos, dá uma biblioteca inteira.
Os Estados Unidos têm essa obsessão pela espionagem por uma razão, não é por casualidade, é por um espírito colonialista, eles se consideram donos de todos nós.
O presidente João Goulart foi derrubado por eles. Hoje está provado isso. Então não surpreende que haja uma quantidade tão grande [de documentos sobre o Lula] e nem que ele esteja coberto com um espaço tão extenso.
E você tem interesse nos registros de depois de 2019?
Olha, assim que eu recebei esse material, que também eu não quero pedir o outro sem receber esse, porque eles podem se vingar e não me passar esse. Então, assim que eu conseguir esse material aí, eu vou entrar com outro pedido considerando de 2019 até 2024.
Que posição você acha que o governo brasileiro deveria tomar?
Eu acho que o governo só deve tomar alguma iniciativa na hora que virem os papéis oficiais. O que eu tenho até agora é uma relação do que tem, não é o documento.
E como a Gleisi Hoffmann [deputada federal e presidente nacional do PT] disse que é preciso olhar se não houve aí uma violação da soberania brasileira nessa investigação.
E o senhor chegou a conversar já com o presidente Lula? O senhor levou essa informação?
Não, não levei. Ele estava fora do Brasil e se ele passar fim de semana em São Paulo, eu vou ver se arranjo uma meia horinha dele para levar os documentos lá para ele ver.
E essas 3 mil páginas a que o senhor vai ter acesso, elas devem atrasar a publicação do seu livro?
Não, eu vou tentar ao contrário, eu vou tentar me livrar dos trabalhos paralelos que eu estou fazendo e pegar na enxada.
Tá todo mundo me cobrando. O presidente me cobra, sabe? A editora me cobra, amigos, todo mundo, eu saio na rua, a pessoa pergunta “e o livro?”
 
                       
                       
                       
                      