JORGE BRANCO: O ESTADO NÃO É AUSENTE, ELE ESTÁ A SERVIÇO DA DESTRUIÇÃO

Indigenous people of different ethnicities protest demanding justice for the murder of British journalist Dom Phillips and Brazilian indigenist Bruno Pereira and for land rights, outside the Supreme Court in Brasilia, on June 23, 2022. (Photo by EVARISTO SA / AFP)
Jorge Branco
Há fatos que são capazes de revelar um conjunto intrincado e complexo de relações, várias vezes maiores do que a si próprio. Implicam na revelação de condicionantes e variáveis que permaneciam nebulosas e indecifráveis até que um fato, tal qual a descoberta de um arquivo histórico, relaciona outros entre si e torna compreensível toda a dimensão envolvida.
Este foi o caso, por exemplo, do atentado do Rio Centro em 30 de abril de 1981. O revés do ato, cuja intenção era evitar o desmoronamento da ditadura militar, permitiu à sociedade brasileira tomar conhecimento da atuação de setores da repressão e suas intenções. A explosão revelou a intrincada luta política no interior da ditadura e, como explica João Roberto Martins Filho – no livro O Palácio e a Caserna: a dinâmica militar das crises políticas na ditadura (1964 – 1969) -, a forma como seus aparatos repressivos se movimentavam, a luta pelos rumos do regime e a dinâmica de rupturas que conformou a existência e o declínio do regime autoritário.
A emboscada que matou Marielle Franco e Anderson Gomes, em 14 de março de 2018, é outro desses fatos impactantes. Os assassinatos revelaram a intrincada relação das milícias e do crime organizado com a política, as polícias e a economia do dia a dia das comunidades de trabalhadores. A vereadora Marielle Franco foi condenada à morte pelo crime organizado exatamente porque utilizou as relações da política para por luzes sobre esse mundo e investir contra o crime organizado protegido pelo do Estado.
Os brutais assassinatos de Dom Phillips e Bruno Pereira, neste junho de 2022, revelaram muito mais que a violência local em uma terra de leis privadas no interior da Amazônia brasileira. Bruno, acompanhado de Dom, investia contra uma rede de crimes e organizações criminosas que, ao arrepio da lei e da Constituição, exploram os recursos naturais da Amazônia, como o garimpo e a pesca ilegal.
Os assassinatos repercutiram na imprensa mundial e, com isto, esta pauta se impôs à mídia empresarial brasileira. Conforme repercutiam internacionalmente as denúncias das organizações indígenas, de direitos humanos e intelectuais em defesa dos povos originários e a política do governo Bolsonaro para a Amazônia foram sendo reveladas e expostas.
Bruno Pereira, um indigenista servidor de carreira da Funai, se afastou do órgão após ser demitido e, portanto, punido por combater o garimpo ilegal. Seu cargo, relacionado à defesa dos povos isolados, foi ocupado por um religioso interessado em “evangelizar” os indígenas e não os defender.
A claudicância da Funai, das forças policiais e das forças armadas em realizar as buscas pelos então desaparecidos, somada às declarações dúbias do presidente Jair Bolsonaro, se entrelaçaram com as denúncias das organizações indígenas sobre a presença nada discreta e industrial do crime organizado no interior da terra indígena.
Enganam-se os que acham que o Estado brasileiro é ausente da Amazônia. Ao contrário, o Estado brasileiro é presente e ativo. São bilhões de reais do orçamento público investidos em pessoal e equipamento militar e policial na região. O que ocorre é que o Estado está presente para proteger o crime organizado e o esbulho das riquezas amazônicas.
O intrincado mecanismo de relações entre agentes da exploração e os agentes do Estado foi exposto a partir da repercussão deste crime violento e brutal. Explicações frágeis, conclusões precipitadas, pressa em afastar as hipóteses de existência de mandantes poderosos, se somaram ao barulhento silêncio das forças armadas, estacionadas na região com meios modernos e suficientes para exercer seu papel de defesa da soberania e dos direitos fundamentais das populações amazônicas.
O cínico imobilismo do Estado para exercer a lei e combater o crime organizado contrasta com a conduta ativa do comando das forças armadas no questionamento às eleições presidenciais. Um desvio de função inaceitável para, ao menos, quem defende a Constituição Federal.
Assim como o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, por tortura sob custódia do Estado em 25 de outubro de 1975, repercutiu mundo afora e aprofundou o isolamento político da ditadura militar de 64, os assassinatos de Bruno e Dom expuseram a dimensão anticivilizatória e reacionária do governo Bolsonaro. E podem ter sido a pá de cal para suas possibilidades de continuidade.
*Sociólogo, Mestre e doutorando em Ciência Política. Diretor Executivo da Democracia e Direitos Fundamentais., Jorge Branco é colunista do Brasil de Fato RS.