FILÓSOFO JOSÉ ALCIMAR*: BRASIL: DA REGRESSÃO POLÍTICA RUMO A UM ESTADO-PÁRIA: NOTAS FILOSÓFICAS

0
depositphotos_25054333-stock-photo-tsunami-asteriod-impact

 

José Alcimar de Oliveira *

Assim, a filosofia se vê rodeada de inimigos, a maioria dos quais não tem consciência dessa
condição. A autocomplacência burguesa, os convencionalismos, o hábito de considerar o bem-estar
material como razão suficiente de vida, o hábito de só apreciar a ciência em função de sua utilidade
técnica, o ilimitado desejo de poder, a bonomia dos políticos, o fanatismo das ideologias, a aspiração
a um nome literário – tudo isso proclama a antifilosofia. E os homens não o percebem porque não
se dão conta do que estão fazendo. E permanecem inconscientes de que a antifilosofia é uma
filosofia, embora pervertida, que, se aprofundada, engendraria sua própria aniquilação (Karl

Jaspers, 1883-1969).

01. Na Gaia Ciência Nietzsche fala que cabe aos filósofos
prejudicar a estupidez, dela subtrair a sua “boa consciência”. Nietzsche não
era um leitor entusiasta de Hegel, para quem a “a consciência infeliz”
corresponde àquela figura dialética indicativa da contradição da
consciência se experimentar, simultaneamente, como consciente do mundo
e de se afirmar como espírito. Noutros termos: quando a consciência se
apreende como conceito. Sempre ir pelos conceitos, afinal para Kant é
sempre “prejudicial plantar preconceitos, porque terminam por se vingar
daqueles que foram seus autores ou predecessores destes”. A “boa
consciência” da estupidez na Gaia Ciência nietzschiana é cognitivamente
imune ao estado da “consciência infeliz” referida na Fenomenologia do
Espírito hegeliana. O Brasil de 2021 tornou-se abrigo seguro para o
contentamento e o alargamento da “boa consciência” da estupidez ou da
consciência feliz, blindada e imporosa à contradição dialética própria da
“consciência infeliz”. No Brasil de 2021 Hegel e Nietzsche não se criam,
mas são necessários.

 

02. Como envergonhar a estupidez da consciência feliz? Como
introduzir infelicidade e sentimento de vergonha numa consciência que,
despossuída de si, vive do cultivo de si mesma sem si mesma, para recorrer
a Adorno, que tanto quanto Nietzsche não tinha relação de boa vizinhança
com Hegel? Adorno, a compor uma tríade com Hegel e Nietzsche, também
não se cria neste Brasil cada vez mais apoucado. Estaremos fadados a
compor um samba triste, raso, sem graça e bem abaixo do estatuto musical
de um tango ou de um fado? Um samba fardado? A tradição de resistência
do samba não merece tal regressão musical. Se possível fosse tal samba, o

título caberia ao saudoso Millôr Fernandes, ao afirmar há tempos, sob
ordem de coturno: “como vale o verde no verde vale”. Em 2021 nosso vale
já não está tão verde. Alargam-se as fronteiras das cinzas sobre a Amazônia
e o Brasil. E como valer-se da Vale e de sua publicitária campanha de
compensação ecológica depois que tornou ácido um rio Doce e alargou
nosso vale de lágrimas? Por faltar má consciência à estupidez e infelicidade
à consciência feliz, é que se alarga a “filosofia pervertida” que, segundo
Jaspers, aniquila a própria filosofia. Quem fecha as portas à filosofia
sempre bloqueia o pensamento.

 

03. Segundo Hegel, “Do ponto de vista do espírito que pensa,
devemos considerar a filosofia como o que há de mais necessário”, e para
que a “a filosofia surja no povo, é preciso que esse povo comece a
abandonar sua vida concreta, a satisfação que lhe proporciona sua vida
real”. Mas no Brasil a vida real apartou-se do real. O Brasil oficial
converteu-se numa usina para substituir o real pela sensação que o nega. O
Brasil do ódio ao pensamento, da aversão à teoria, do fascismo cognitivo,
expõe, sem que sobre isso caiba responsabilidade a Hegel, uma lacuna na
fenomenologia que o monumental pensador de Iena construiu sobre o
espírito: seria um capítulo sobre a consciência feliz da pós-verdade. Exitoso
laboratório de falsificação da história e de destruição da memória, o Brasil
da pós-verdade daria a Hegel a oportunidade de elaborar a figura final e
apoteótica de sua Fenomenologia: a consciência feliz da pós-verdade,
repito. Estou certo de que diante dos dilaceramentos sociais que se
aprofundam no Brasil desde o golpe de 2016, Hegel, Marx e Adorno, a
convite de Lênin e sob o beneplácito e a presença de Aristóteles, Descartes
e Kant, aceitariam, com philia, o convite para um simpósio político na Bela
Vista em que nasci, em Manacapuru, AM, às margens do portentoso
Solimões. Ou em Jaguaruana, às margens do Jaguaribe, lugar da parte
nordestina de minha infância.

 

04. O que mais apavora o desatino e o arbítrio de um governante
autoritário é o acesso do povo ao bom senso, ou seja, às mediações
necessárias ao uso público da razão. Aristóteles, Descartes e Kant, para
aqui mobilizar outra tríade de peso, e cada um a seu tempo e termo,
guardam o princípio comum de que a única autoridade aceita no domínio
do conhecimento é a que procede da razão. E a razão deve estar a serviço
do bem comum. Aristóteles, na Metafísica, admite como natural a
inclinação humana ao saber. Descartes principia seu Discurso do Método
com a tese de que o bom senso (a razão) é o bem do mundo mais bem
dividido. Kant em seu texto programático do iluminismo, Resposta à
pergunta: o que é o “Esclarecimento” (Aufklärung), concebe o
esclarecimento como uma “determinação original” da própria natureza

humana. Ser humano é ser racional. Ser racional e ser social. Como trazer o
real à razão? Como manter o princípio ontológico de que o modo de ser do
real é a verdade? Como fazer a busca de verdade retomar o itinerário da
práxis histórica e dialética?

 

05. Heidegger atribuía à filosofia a missão de ser a própria “guarda
da ratio” (razão). Por ser humana, há sempre a possibilidade da ratio
exorbitar de suas medidas e ceder ao arbítrio, aos caprichos de quem se
julga depositário de seu destino. O mau uso da razão pode tomar a parte
pelo todo e, assim, tornar falso o todo. Numa crítica a Hegel, para quem a
verdade é o todo, Adorno argumentou que o todo é o falso. Marx, em sua
sabedoria fundada na práxis, fez a necessária mediação materialista,
histórica e dialética, ao fazer ver aos dois notáveis contendores que o todo é
a síntese contraditória de múltiplas determinações. Mas se Hegel e Adorno,
um pela positividade da razão e outro pela negatividade, e ambos
dialéticos, dificilmente se criam no Brasil, menos ainda Marx. O que fazer?
A saída é pela porta política, dirá Lênin. Somente em linha com a tradição
dialética e histórica do método da luta de classes a política pode encontrar
no povo sua força material, e o povo encontrar na política sua força
intelectual. Resistir à política da morte, do crime e da destruição implica ir
além da cômoda militância mediática. Onde há luta por democracia aí se
encontra a filosofia.

 

06. O que é uma Constituição senão uma ratio política? No
Brasil, a guarda dessa ratio cabe ao Supremo Tribunal Federal. Mesmo que
formal e burguês, o Estado Democrático de Direito brasileiro nos assegura
o direito de criticar o Supremo. Fechá-lo ou amordaçá-lo, nunca. O pior
Supremo será sempre preferível a um Supremo fechado ou amordaçado. O
mesmo aplica-se ao Congresso. País laico, portanto, nem confessional,
nem ateu, a Suprema Lei do Brasil é a Constituição promulgada em 1988,
não a Bíblia, menos ainda os arroubos exegéticos de sua leitura
fundamentalista e fanática. Em que pesem as contradições de uma
sociedade secularmente dominada por uma predatória autocracia burguesa,
cujos interesses oligárquicos imprimiram suas marcas na Lei Maior do país,
a Constituição da República Federativa do Brasil foi elaborada por uma
Assembleia Constituinte formalmente representativa do povo brasileiro,
com todas as contradições implicadas nesse processo. Guardião e intérprete
coletivo credenciado da Lei Maior, o próprio STF é filho legítimo da
Constituição.

 

07. Afinal, o que querem os que se julgam donos da vontade do
povo? Que povo? Representa o povo a parte do povo sob manipulação de
setores arbitrários do executivo, do judiciário e do legislativo? Podem ser

tomados pelo povo a burguesia financeira, as Forças Armadas, as
corporações mediáticas, os setores milicianos e parte dos fieis de
denominações várias, muitos fanatizados pela pregação de lideranças
fundamentalistas? Não há poder soberano, nem do povo, sobre a
Constituição. Como, então, ficaria o cristianismo se cada denominação
religiosa, ou lideranças “terrivelmente evangélicas”, de forma arbitrária, se
atribuíssem o poder de alterar a Bíblia? Se as instituições da República não
impuserem freio aos arroubos golpistas em curso, o Brasil poderá entrar em
perigosa rota de regressão política e dilaceramento social. “O sono da razão
produz monstros, diz Goya. É pela democracia, e somente por ela, quando
politicamente enraizada nos princípios da justiça coletiva, que o Brasil
pode acertar o seu rumo. “Traidor da Constituição é traidor da Pátria”, diz
Ulysses Guimarães.

 

* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do
Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA – Seção Sindical e filho do
cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 7 de setembro do ano do morticínio de 2021.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.