FILOSOFO JOSÉ ALCIMAR*: LÁZARO: O BRASIL ENTRE A METAFÍSICA DO MAL E O REAL DIALÉTICO

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Fiquei realmente muito animado com essa revelação – a sombra que pode ir mais rápido que a luz! –
mas também bastante decepcionado. Em minha resistência à aceleração generalizada do mundo,
contava com os físicos para que lhe colocassem uma barreia intransponível. Finalmente, a natureza é
como as rodovias: os limites de velocidade fixados são facilmente burlados. As leis físicas não são mais
respeitadas que qualquer outra lei! (Jean-Marc Lévy-Leblond, A velocidade da sombra).

 

01. Dentre os quatro ídolos apontados por Francis Bacon (1561-
1626), célebre filósofo empirista inglês, como os obstáculos
epistemológicos que turvam o intelecto humano contam-se os ídolos do
teatro (idola theatri), que se referem às representações falseadas da
realidade. De Bacon aos nossos dias esse processo de falsificação da
realidade aprimorou-se como um mecanismo político de mistificação (ou
mitificação) das consciências. Por força das tecnologias mediáticas, a
velocidade das imagens e dos textos (em geral carentes de reflexão e a ela
aversivos), em segundos viralizados, como se diz hoje, inclui a todos no
circuito da falsificação do real e em tempo real. Tudo obedece ao império
da imagem. E a imagem, quanto mais interdita o conceito, mais fideliza
consumidores. Afinal, refletir dá trabalho.

 

02. Que importa a realidade? Ou seu penoso e crítico trabalho
de objetivação? O mundo agora é o que vemos ou cabe na tela. Não
importa se o que vemos foi modulado pela heteronomia do ver. Apareceu
na tela é verdade. Borrou-se a fronteira entre aparência e essência. A
aparência é a essência do processo e palpável. É necessário pegar o mal
com a mão. Ver com os olhos. Nem o mal metafísico, porque isso é
artimanha de teólogo (ou filósofo), nem o mal objetivado pelo materialismo
histórico e dialético, que introduz relações sociais no que aparece sob o
estatuto do mal. O mal tem que ser personificado, revestido de plasticidade,
tocável. A religiosidade medieval, num mundo de insignificante
letramento, a fé vinha pelo medo e pelo temor. Alfabetizava-se pelas
imagens e pelo recurso ao obscurantismo. O Brasil do século XXI está mais
próximo da cristandade medieval do que do catolicismo romanizado do
Vaticano.

 

 

03. Desde 28 de junho de 2021, com a prisão e morte de Lázaro,
há uma sensação de que a paz e a segurança voltaram a todos os lares dos brasileiros de bem. Aprisionado e contido, o mal foi exposto ao espetáculo
mediático. É sempre um alívio ver o mal sob controle, carregado numa
viatura. Como escrevo na condição de teólogo sem cátedra, já não sei se ao
caso Lázaro é aplicável a teoria do mal menor. Mas é inegável, se
consciente ou não dessa teoria, a aplicação ideológica do mal menor. No
caso Lázaro, preservou-se o mal maior, a serviço do qual ele sobrevivia,
para restar salva e protegida pelo Estado burguês a indústria do latifúndio,
da grilagem, da especulação, que necessita de um exército de mal menor
feito de jagunços de nome Lázaro. Para recorrer a Karel Kosik, estamos
diante do modelo acabado da dialética da pseudoconcreticidade. Ou da
impossível materialização da coisa-em-si kantiana. Com Lázaro a justiça
prendeu o mal-em-si. Seguramente será proibida ou desautorizada a leitura
do relato evangélico sobre a ressurreição de Lázaro. Mas Lázaros, no
Brasil, nunca estarão em falta.

 

 

04. Continuará incólume a mais regressiva e cruel realidade
social, ao abrigo das sombras produzidas pela burguesia genocida. Lázaro é
um instrumento descartável e facilmente substituível. Porque o padrão
capitalista de produção, consumo e exploração dos trabalhadores é
presidido pela lógica férrea da obsolescência programada: descarte e
substituição. Nesse teatro abominável e avesso à estética, Lázaro entrou e
saiu de cena numa peça dos horrores e sob direção de uma burguesia ávida
de sangue e avessa à justiça. Com Lázaro a espetacularização promovida
pelas corporações mediáticas burguesas cumpriu religiosamente seu papel
de promover medo e insegurança aos desavisados, reforçar o apelo
ideológico da população armada e segura e legitimar o heroísmo
patrioteiro do aparato policial. O Brasil pode perder o rumo, mas sempre
vai garantir a sensação de segurança.

 

 

05. Sensação é a palavra mágica. No período do engodo pós-
moderno o que vale é criar a sensação de. A sensação é da lógica do
imediato e dispensa conceitos. É uma cognição epidérmica. É pré-
cartesiana, porque torna ocioso o pensamento. Nada de res cogitans
(substância pensante). Ser é sentir. E pensar impede o sentir. Mas,
parafraseando Brecht, é pena que a palavra pão alimente tão pouco,
inclusive o pão sem justiça. Porque, ainda com Brecht, “a justiça é o pão do
povo”. Três princípios me referenciam o pensar e o agir: 1) a precedência
ontológica do real sobre o legal; 2) o real, natural ou social, é regido pela
contradição; 3) a verdade é o modo de ser do real. É impossível subtrair a
contradição ao real, sobretudo ao real das relações sociais. Por mais
artificiosos que sejam os simulacros que tentam velar o mundo do ser social, a força ontológica da contradição cedo ou tarde irrompe e desfaz as
representações falseadas do real. Mas demora.

 

 

06. É uma verdade triste, mas verdade: continuamos na sociedade do espetáculo (Guy Debord, 1967) ou na Sociedade excitada
(Christoph Türcke, 2010). Dois textos que nos ajudam (os que gostam de
ler e de se deter na artesania de conceitos enraizados na práxis) a
compreender a miséria cognitiva do mundo e, sobretudo, aquela em que o
Brasil submerge. Hoje o movimento frenético da postagem compulsiva de
imagens reforça e revela o estado social de progressiva imbecilização do
mundo nesses tempos que abrem o século XXI. José Paulo Netto chama a
isso de decadência ideológica. Em Marx: miséria da filosofia. Num e
noutro, um estado ideológico e venal de desativação dos conceitos. Tempos
de fascismo cognitivo, que se apoia no ódio organizado como política.
Edgar Morin, que no próximo 08 de julho de 2021 deverá entrar na lista
dos filósofos centenários, chama a isso de “barbárie do pensamento”.

 

 

07. Consolida-se uma espécie de inteligência visual regida por
sofisticados e eficientes aparatos mediáticos que operam uma universal
heteronomia cognitiva. Vou resumir para facilitar a compreensão: é quando
o ver com o olhar do outro substitui o pensar. Pensar dá trabalho. A única
pessoa a afirmar que "pensar é uma festa" é o iconoclasta e saudável
Nietzsche. Mas o conceito é trabalhoso e exige paciência. Ao contrário da
imagem, que excita, opera pelo imediatismo e arrebanha seguidores. Por
isso o velho Hegel, cuja vida se moveu pelas trilhas do conceito, assegura
que a “ave de Minerva só alça voo ao cair da tarde”. A filosofia não tem
pressa, nem pode abdicar do conceito. A filosofia não tem lugar de
mercado. Filha da cidade, resiste em precário abrigo, inclusive nas
instituições acadêmicas. A democracia burguesa e seletiva, a prefere nos
salões, ritualizada e domesticada. Mas seu verdadeiro espaço é o da
democracia proletária, o único que lhe garante força material.

 

*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do
Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA – Seção Sindical e filho do
cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 29 dias de junho do ano (ainda) pandêmico de 2021.

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