FILÓSOFO JOSÉ ALCIMAR*: SOBRE EMPINAR PIPAS NAS ALTURAS CELESTIAIS: AO PAJÉ JORGE

IN MEMORIAM
Por José Alcimar de Oliveira *
Ao Pajé Jorge Mussa
(02 de julho de 1953-30 de janeiro de 2021),
que agora empina papagaio na morada eterna.
01. Escrevo sobre mim para escrever sobre o mundo. Recorro à
experiência pessoal para tatear sobre o universal de nossa condição
humana. Para pensar com o Mouro de Trier, admito que inexiste natureza
humana abstrata. Toda natureza, inclusive o conceito de natureza, só existe
enquanto natureza condicionada e modificada pela história do ser social.
Do mesmo modo, não existe morte natural, porque não se morre em
abstrato. Nesse triste dia 30 de janeiro de 2021, nessa Manaus transformada
em capital mundial da pandemia de Covid-19, fui surpreendido pela morte
do meu cunhado, Jorge Mussa Dib, o nosso Pajé Jorge, que perdeu a
batalha contra os efeitos imprevisíveis e devastadores desse vírus terrível.
Por minha condição de velhice, associada à perigosa profissão de professor,
acompanhava remotamente, com profundo sentimento de impotência, o
sofrimento e a luta de minha irmã Dulce Enilde, de seus filhos e familiares,
dos profissionais da saúde, para que o nosso Pajé escapasse às garras da
morte, mas o vírus foi impiedoso.
02. Manaus é a cidade do luto permanente. As mortes se sucedem e
nos dão o sentimento de viver na Comala descrita por Juan Rulfo, no seu
Pedro Páramo, em que era impossível contar os mortos e recensear os
vivos, porque mortos e vivos se transmutavam num espaço distópico em
que o além e o aquém conferiam aos moradores a condição de fantasmas
vivos e mortos reais. Nessa Manaus-Comala sinto que a memória começa a
embaralhar lembranças e fatos. O tempo da vida é modulado pelo tempo da
morte. Sem futuro no horizonte, nos refugiamos na falsificação retrotópica
do passado. O presente insuportável tornou saudoso o passado e converteu
em utopia as coisas mais prosaicas do cotidiano: reunir-se, conversar,
abraçar, visitar um amigo, uma amiga, voltar à sala de aula, jogar conversa
ao leu ao redor de uma mesa cercada de colegas. A morte é a prova
ontológica de que é o sentimento do vazio, muito mais do que o da
presença, que nos afeta e desola. Em seu livro A cerimônia do adeus, no
qual narra os últimos anos do sofrimento de Jean-Paul Sartre, Simone de
Beauvoir exprime, no final de sua narrativa, a força ontológica e inelutável
do vazio que lhe causou a morte do autor de O ser e o nada: “Sua morte nos
separa. Minha morte não nos reunirá. Assim é: já é belo que nossas vidas
tenham podido harmonizar-se por tanto tempo”.
03. Fico a imaginar o que pensou o meu cunhado Jorge Mussa antes
do procedimento de entubação do qual não pode mais sair. Resistiu o que
pode, mas aceitou conscientemente submeter-se a essa medida extrema.
Minha irmã Dulce me relatou que ele suspeitava não mais retornar e, por
isso, entregou-se a Deus e pediu que lhe perdoassem os pecados. Que
pecados, meu Deus? Se a medida dos pecados do mundo fosse a medida
dos pecados do Pajé Jorge, estaríamos no melhor dos mundos. A última vez
que estive com ele, foi na Banca Dulce das Ervas, de minha irmã Dulce, no
Mercado Adolpho Lisboa. Era um sábado pela manhã. Desconfiava de tudo
que dissesse respeito aos Estados Unidos. Tinha orgulho de sua
ascendência árabe e adorava a culinária sírio-libanesa, cujas iguarias
preparadas com esmero pela Dulce ele fazia questão de partilhar com seus
amigos de copo na Feira do Jardim dos Barés, na rua Jardim Botânico.
Minha infância e parte da adolescência estão ligadas a essa Feira desde os
anos 1970, onde por algum tempo nossa mãe Ana Nilda tinha uma pequena
banca de verduras. Minha irmã Dulce morava na rua da Feira. Há poucos
anos mudou-se de lá para um apartamento, não sem o protesto do Pajé.
Obediente à sabia decisão da esposa, aceitou o processo de
desterritorialização, sem abdicar de regularmente voltar a São Jorge para
assistir aos jogos de seu Flamengo, sempre entre amigos e inter pocula. E a
cada ano, no Carnaval, vinha movimentar a Banda Pimentão, da qual ele e
meu irmão Chico Márcio são sócios fundadores.
04. Qual era o seu pecado público? Frequentar o bar da Feira?
Sempre que podia, voltava aos sábados para se encontrar com os amigos da
rua Jardim Botânico, na Feira do Jardim dos Barés. Confesso que a mais
bela definição de um bar encontrei no grande Luis Buñuel, em seu livro
autobiográfico Meu último suspiro: o bar é para mim um lugar de
meditação e de recolhimento sem o qual a vida seria impossível. Estou
certo de que o Pajé Jorge, que nunca leu Luís Buñuel, estaria de pleno
acordo se algum dia eu tivesse mostrado a ele a definição do grande
cineasta espanhol. E mais: admito meu pecado e me penitencio por não ter
frequentado mais vezes o seu reduto etílico e saudável, na Feira do Jardim
dos Barés. Ele me chamava de Sabazinho, e quando ia à casa de minha
irmã Dulce, sempre parava para conversar com ele e seus amigos, e
aproveitava para uma rápida hidratação etílica da língua. Reconheço
também que o Pajé tinha uma capacidade etílica instalada muito superior à
minha. O Pajé cuidava muito da família, dos amigos, e muito pouco de si.
Era a figura inteira do pai provedor e guardava carinhosa obediência à sua
batalhadora companheira Dulce, que desistiu do curso de Serviço Social
para se dedicar à sua banca de produtos regionais e medicinais no Mercado
Adolpho Lisboa.
05. Morador do grande bairro de São Jorge, do qual nasceu o Jardim
dos Barés, o Pajé frequentava a igreja de São Jorge (onde recebi a
ordenação sacerdotal em 26 de fevereiro de 1983) e era devoto do Santo
Guerreiro. Guardava a fé das pessoas simples, mais devocional que
sacramental. Ele viveu uma santidade diferente, bem ao seu modo. Era uma
pessoa de fé e Deus, sendo Mãe e Pai, sabe disso mais do que todos nós.
Reconheço que foi teimoso e cabeça dura em relação ao poder traiçoeiro
desse vírus. Toda a sua família foi contaminada, mas ele não resistiu. Eu
seria hipócrita e leviano se o chamasse de negacionista. Não era do seu
feitio formular construções teóricas. Apenas, como tantos, não imaginava
que pudesse ser acometido pela doença que nos privou de sua presença.
Aqui na terra o Pajé se comunicava com os céus por meio da arte de
empinar papagaios ou pipas, como se diz também. Tenho certeza que Deus
não vai impedir que ele continue a empinar seus papagaios lá nas alturas
celestiais. Assim como Nietzsche, que afirmava não acreditar num Deus
que não soubesse dançar, também duvidaria de um Deus que proibisse
nosso Pajé de empinar papagaio em sua morada eterna.
06. Lamento e fico triste por não ter ido me despedir pessoalmente do
nosso Pajé por força dessa terrível pandemia. Foi mais do que justo e
merecido o sepultamento digno do companheiro de vida de minha irmã
Dulce. A morte é uma contingência inelutável. É paradoxalmente um
contingente ontológico e necessário. Não é possível medir o valor de uma
vida pela duração de sua contingência histórica. O texto bíblico do Gênesis,
cuja verdade não guarda comensurabilidade com os procedimentos da
razão científica, nos manifesta uma verdade fundamental e ao mesmo
tempo ontológica e ecológica: viemos do pó da terra e ao pó da terra
retornaremos. Se nessa transição do pó terreno à vida humana há a
intervenção de uma sabedoria suprema, de um princípio superior e
organizador de tudo que há ou, como encontramos nos sábios fragmentos
de Heráclito, de uma inteligência divina que governa todas as coisas,
entramos, inevitavelmente, no campo do mistério.
O velho Kant, que consumiu boa parte de sua existência para estabelecer os limites da razão
humana, julgava conveniente e prudente, em relação ao mistério, manter
uma posição agnóstica, ou seja, sobre Deus ou uma inteligência superior, a
razão pura, para ser honesta, deveria se eximir do procedimento
peremptório, tanto de sua afirmação quanto de sua negação.
07. Posso dizer que o Pajé Jorge foi uma das pessoas mais
desapegadas e generosas que conheci. Era o último a pensar em si mesmo.
Ele viveu para a família e para o próximo. Certa vez o grande Ariano
Suassuna relatou ter conhecido uma figura que dividia e classificava as
pessoas em dois grupos: aquelas que foram e as que não foram à
Disneylândia. O nosso Pajé nasceu, viveu e morreu convicto de nunca sair
do segundo grupo. Fugia de shopping center como o diabo foge da cruz.
Fazia de tudo para não se afastar do centro do mundo, que para ele se
localizava numa mesa entre amigos, num pequeno e sóbrio bar, à rua
Jardim Botânico, nas imediações da Feira do Jardim dos Barés. Sua última
alegria foi observar lá das alturas que o seu cortejo, a pedido dos amigos e
das crianças, e preito atendido pela minha irmã Dulce e seus filhos, Jamyla
e Jorginho, se desviasse da rota e passasse pela rua Jardim Botânico. E
assim foi feito. O seu cortejo passou pelo centro do mundo.
Siga em paz, meu irmão. Você lutou até o fim, preso no leito de sofrimento, mas bem
amparado pela esposa, filhos, parentes, amigos e pelos profissionais da
saúde. Você partiu no dia nacional da saudade. Desde já declaramos o 30
de janeiro de cada ano como dia nacional do empinador de papagaio. E de
você, saudoso Pajé Jorge, só podemos guardar em nossas memórias o que
há de melhor e alegre. Do seu cunhado e irmão, José Alcimar de Oliveira.
* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia, teólogo sem cátedra e filho do
cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, capital mundial da pandemia de
Covid-19 e a gritar por socorro Urbi et Orbi, aos 31 dias de janeiro do ano (ainda) coronavirano de
2021.
Emocionante esse texto, que traduz em palavras a dor que todos nós estamos sentindo pelas perdas de muitas pessoas queridas, principalmente em Manaus, neste final de janeiro de 2021. A lembrança de seu cunhado é aquela lembrança que estamos sentindo de todos os que se foram, e que deixam a dor muda pela indignação à situação em que estamos submetidos de sofrer as perdas consecutivas, sem sequer podermos nos abraçar para aliviar a dor emocional. A dor emocional é processada no cérebro no mesmo lugar em que a dor física o é. Por isso doi e muito. Agradeço pelas palavras que fizeram desrepresaram as minhas lágrimas pelas perdas que sofri nestes últimos dias. Parecia que eu tinha desaprendido de como é chorar. Com esse texto, resgatei minha capacidade de banhar meus olhos no mar da imensidão da expectativa do nada. Sou um ser que não pensa mais no amanhã, porque a cada dia o tempo parece trazer mais dores. Foi bom saber que outras dores também são sentidas e que mesmo que nossos mortos sejam diferentes, o seu vai soltar pipa no céu. É uma alternativa ainda não pensada, para dizer meus sentimentos pela partida de alguém que você amou e esse amor ficou eternizado.