FILOSOFO ALCIMAR* O JESUS DE NAZARÉ DO EVANGELHO DE MARCOS OU DO DIÁLOGO COM ENGELS, GRACILIANO E BRECHT EM SETE REFLEXÕES À MARGEM DA ORTODOXIA

REFLEXÕES À MARGEM DA ORTODOXIA
José Alcimar de Oliveira *
01. No Evangelho escrito por Marcos, o mais curto e todo ele tomado
pela vida concreta do povo, Jesus de Nazaré parece nunca ter tempo para si.
O povo dos pobres não lhe dá folga. É o evangelho dos fatos. Ele cobre os
fatos e parece ter pressa. Não cede a derramamentos epidérmicos e
catastrofistas de muitos pregadores que vendem milagres em tempo real. O
evangelista Marcos tem consciência de que testemunha a irrupção de um
tempo que não cabe na medida cotidiana do tempo vivido, o chronos,
menos ainda no tempo das projeções ideológicas e das conspirações que
sempre indicam o fim do mundo para a semana entrante. A despeito da
concisão, Marcos é um narrador que se preocupa com os pormenores dos
fatos, gosta das repetições, porque é um conhecedor do que agrada à
audição da gente semítica.
02. Diferentemente da língua portuguesa, o grego possui duas
palavras para nomear o tempo: chronos e kairos. Kairos, que significa uma
medida qualitativa e reflexiva do tempo, é o tempo em que se move o
Evangelho, e é o termo de que se utiliza o evangelista Marcos para registrar
as primeiras palavras ditas por Jesus de Nazaré no início de sua missão:
“Completou-se o tempo (impletum est tempus), e o Reino (a utopia) de
Deus se aproxima. Convertam-se (reorientem o rumo de suas vidas) e
acreditem no Evangelho (a Boa Notícia)” (Mc 1,15). Boa Notícia porque
verdadeira. O Evangelho é movimento, saída, devir, vai ao encontro. Ao
contrário da religião, que imobiliza, se acomoda no templo e subtrai ao
tempo sua potência transformadora. Em Marcos são visíveis esses fluxos
que afirmam a vida.
03. Hoje os estudos apontam que o relato de Marcos é o mais antigo
de todos os evangelhos. Ele, mais do que os demais evangelistas, é quem
nos mostra de maneira direta e concreta a face mais humana de Jesus de
Nazaré. É um evangelista repórter e seguramente poderia entabular um
excelente e fecundo diálogo com o jornalista e militante John Reed, com
seu relato substantivo dos dez dias que abalaram o mundo em 1917.
Premido pelo tempo que agora passa do chronos ao kairos, o evangelista
Marcos se obriga a reter o essencial, a filtrar em meio à hipocrisia dos
fariseus e doutores da lei, o conteúdo emancipatório da vida e obra de Jesus
de Nazaré. Fiel aos fatos, não se limita a descrever e sabe imprimir em cada
situação particular a força ontológica do universal. Consegue com
sobriedade e lucidez escapar às armadilhas da fulanização dos fatos e das
generalizações vazias.
04. O estilo de Marcos, numa comparação heterodoxa, parece o de
um Graciliano Ramos da Palestina: simples, substantivo, direto. Marcos
seria um leitor potencial de Vidas secas e a cadela Baleia seria logo
identificada entre o povo que seguia Jesus de Nazaré naquela Palestina
sertaneja. Para incômodo de interpretações marxistas ortodoxas não custa
lembrar que o Velho Graça, comunista declarado, incluía a Bíblia como sua
leitura preferida. Engels, cujo bicentenário de nascimento se completou em
2020, tinha um interesse especial pelos estudos bíblicos. Num breve texto,
de 1883, no qual ele se debruça numa exegese sobre o livro do Apocalipse
de São João – exegese seguramente desautorizada pela ortodoxia religiosa
e marxista –, faz referência à seguinte afirmação de Ernest Renan: se
desejamos ter uma ideia precisa da vida comunitária dos primeiros cristãos
não deveríamos compará-la às congregações paroquiais de nossa época:
estaria mais próxima das seções locais da Associação Internacional dos
Trabalhadores.
05. Em seu relato humano, muito humano, o evangelista Marcos
revela que o Deus humanizado em Jesus de Nazaré tem direito a manifestar
tristeza, sono, cansaço, sofrimento, raiva. Ele se compadece do povo, mas
não cede à miséria do populismo, tão ao gosto de lideranças medíocres. Ele
não cai na tentação de separar da palavra libertadora o pão que sacia a fome
do povo. Por isso, há algo de brechtiano no Jesus de Marcos e no Marcos
de Jesus, pois bem o afirma o autor da peça A exceção e a regra que a
justiça é o pão do povo. Fome saciada sem fome de justiça pode levar ao
comodismo pequeno-burguês. É necessário que a saciedade da fome de pão
favoreça a solidariedade coletiva e o crescimento da fome de Deus. Ouvi
esta afirmativa de João Paulo II, o João de Deus e também muito próximo
de Reagan, numa celebração em Villa El Salvador, Lima, no Peru, em
fevereiro de 1985, quando ali estive durante um mês num curso para
Formadores Franciscanos da América Latina, que coincidiu com a visita do
Papa àquele país.
06. Não há registro de que o evangelista Marcos fosse um leitor da
Filosofia Antiga Grega. No circuito territorial palestinense de seu relato evangélico não havia livrarias nem banca de revistas. Um pouco como a
Manaus desses tempos pandêmicos e regressivos em que desapareceram as
livrarias e não mais encontramos jornais e revistas nas bancas. Mas não
seria difícil compatibilizar o evangelho de Marcos com dois princípios
fundamentais e socráticos da filosofia política: a isonomia, como igualdade
de todos diante da lei, e a isegoria, como direito do povo ao uso político da
palavra. Por isso Jesus pouco frequentava as sinagogas. Ele preferia a
ágora. O seu tempo, marcado pelo tempo kairológico, deslocava-se pelo
devir concreto da vida do povo. O que Jesus de Nazaré viveu e denunciou,
e Marcos registrou, não é muito diferente dos tempos de hoje, em que há
cada vez menos espaço nos templos para o tempo do kairos evangélico.
07. No capítulo e versículo 6,52 de seu relato, o palestino Marcos
registra que o povo, que recebera o pão, não havia compreendido o milagre
da partilha feito por Jesus de Nazaré: non enim intellexerunt de panibus:
erat enim cor eorum obcaecatum. O povo não havia compreendido o
milagre dos pães porque, sob o poder tirânico, tinha um coração
endurecido, uma inteligência obcecada. Na linguagem marquiana
atualizada para hoje poderíamos dizer: estava encegueirado pela
ignorância. Mas Jesus de Nazaré se recusa a fazer concessões aos que
manipulam a miséria humana para manter-se no poder. Não abdica da
pedagogia libertária que se recusa a dicotomizar distribuição de pão e
combate à ignorância, sempre utilizada pelos opressores para manter o
povo carente de pão e escravo de seus favores. Nele encontramos que a
Verdade que liberta é a Verdade que se faz conhecimento como
experiência. O verbo conhecer do citado “Conhecereis a verdade e a
verdade vos libertará” (Jo 8,32), bem mais do que uma operação
intelectual, significa antes de tudo fazer a experiência de uma presença, de
tal modo que o fator de libertação não é a verdade, mas o conhecimento
(experiência) da verdade.
* José Alcimar de Oliveira iniciou o curso primário em Jaguaruana – CE. É professor do
Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas e filho dos rios Solimões e
Jaguaribe. Em Manaus – AM, 24 de janeiro do ano (ainda) coronavirano de 2021.
Parabéns Alcimar, excelente análise!